O ESTOMPIM DA REVOLTA
Enquanto políticos celebram a aprovação da vacina,
na Casa Rosada, Theodoro penetra os aposentos de Ninon e a encontra à
escrivaninha a conferir contas do negócio.
-- Já devo descer?
-- Advinha quem está aí?
-- O presidente!
-- Valentin. Mande vinho, ópio e alguém para
fazer companhia pra ele. Está lá no aposento reservado. Tem um cartão?
Ninon abre uma gaveta; Theodoro vê no
interior algo que lhe interessa.
-- Posso ficar com isso?
Ninon ri do interesse despertado pelo seu
porta-níquel de veludo. Retira o objeto e o cartão solicitado e lhe entrega.
Saudações escritas, Theodoro dá a ela o bilhete.
-- Faça chegar até Valentin e o segure lá.
-- Tentarei fazer o melhor.
*
A aprovação da Lei da Vacina traz de Minas
Gerais o barão Campos Altos, que aconselha cautela ao filho.
-- Afaste-se das reuniões. A hora é de ação
nos bastidores.
-- Preciso estar presente para defender
nossos interesses.
-- Pinto de Andrade o fará.
-- Um acautelamento como esse pode me alijar
do movimento.
-- E lhe dar o álibi de que é um apoiador da
livre-expressão, se algo der errado.
-- Covardia não me credencia no novo governo.
-- Tolice! Entramos com a bufunfa e Sodré tem
um pacto firmado conosco. Em todo caso, amanhã mesmo, eu falo com Ouro Preto
sobre esse ponto.
-- Penso em ir para São Paulo ouvir
Leopoldino quanto aos próximos passos.
-- Isso sim. Aproveita a estada e visita
também Aureliano. Tem se revelado um estremado apoiador e a ocasião é oportuna
para estreitar os laços com a jovem Eufrásia. Faça a corte e eu acerto o
casório.
-- Prefiro pensar em matrimônio quando tiver
clareza do meu futuro.
-- Por causa de apreensões tolas deixa
escapar o que tem na mão?
-- Apenas quero organizar melhor a minha
vida. Mal cheguei do exterior.
-- Casar faz parte dessa organização. A
República é paulista e nossa família precisa enraizar-se lá. Agarre essa
oportunidade de ter uma esposa rica e um sogro influente. Tudo o mais se
resolve depois.
*
Fabrício não comparece à reunião do levante. Sua
ausência é justificada por Pinto de Andrade: -- teve de ir pra São Paulo. Os
demais não se detêm no assunto e iniciam as deliberações sobre as próximas
ações, pós-aprovação da vacina.
-- Já é hora de convocar o povo para a luta, diz
Varela.
Vicente de Souza, em noite de estreia no
grupo, fica alarmado.
-- Melhor não. Pode assustar a população
ordeira, pondera.
-- Pois vamos transformar o medo em coragem.
-- Isso só dando razões pessoais para o
combate, pondera Herculano. -- Que homem não pensaria em pegar em armas se a
filha ou esposa tivesse que se desnudar para um estranho?
-- Há o decoro, mas chamar de desnudamento o
mero levantar de uma manga, parece-me algo demasiado, comenta Agostinho.
-- Não, se a vacina for aplicada em outra
região do corpo.
-- O que não será.
-- Pode haver uma versão que diga que sim.
Brito se constrange com a proposta. Fita
Herculano e mais tarde, o questiona.
-- Isso é manipulação. Não estou te
reconhecendo.
-- É tudo ou nada. Não podemos perder essa
oportunidade. A população tem de estar disposta a pegar em armas, se for
preciso.
-- Não é por aí. Preciso ir, mas a gente volta
a conversar depois, diz e vai embora.
Sessão da Câmara. Lima discursa.
-- O que esperar de uma regulamentação que
pretende lancetar braços e sabe-se lá que outras partes dos corpos das mulheres
e moças de bem do Brasil?
Em pouco tempo, e para além da Casa do Povo,
o local da aplicação da vacina migra dos braços para as coxas, nádegas e
virilhas. Indignação e revolta agitam os ânimos e a dignidade de senhores e
senhoras pela cidade afora.
-- Onde já se viu uma coisa dessas? Vá lá que
a messalina tire a roupa, mas a moça donzela, a esposa, a mãe? Isso não!
-- É o bota-abaixo da decência.
-- A perdição da família!
-- Podemos pegar a
moléstia da virulenta e até da degradação.
-- E pelas mãos de um
homem qualquer. Que vexame!
-- É a lei cega e surda
aos abaixo-assinados.
-- A nossa autoridade
debaixo da bota alheia.
-- Como um homem volta
pra casa no fim do dia sem poder afirmar que a honra da família está do
jeitinho que deixou quando saiu para o trabalho?
-- Não sou um fracalhão
nem capacho de mata-mosquito. Sou homem e cidadão. Boto pra correr o primeiro
cafajeste que bater em casa.
-- Não adianta
embezerrar. Ou arruma um da esmeralda pra te dar o atestado ou se prepara para
a espetada da despudorada e ponto final.
-- Você que pensa. Vem
luta por aí e das boas.
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by Maria Tereza O. S. Campos
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