O BANHO DE MAR PRESCRITO
Dr. Eugênio, homem grande, de ombros largos, andar firme e ar autoritário, atravessa o feixe de luz da manhã que vaza pela claraboia do corredor do sobrado. Carrega uma valise de couro marrom na qual brilha uma fechadura dourada. Médico formado na Europa, com especialização nos Estados Unidos da América, desfruta da fama de saber tudo sobre doenças femininas. Os moradores da casa o seguem.
Em sua farda de capitão, Herculano controla o desconforto de
ter uma mulher que sofre de um mal incerto. Próxima do pai, vem Sofia, que olha
para as costas enormes do médico. A cada visita, o doutor lhe parece mais bravo
e ameaçador. Quitéria e Tião do Congo são os últimos da formação. Ex-escravos,
sexagenários, foram comprados, alforriados e agregados à família pelo pai de
Páscoa. Enquanto anda, Quitéria contorce as mãos sobre o peito farto e apela em
silêncio para que os deuses daqui e do além-mar protejam a menina que viu
nascer e que cuidou como se fosse sua, após a mãe morrer ao dar à luz. Já Tião,
cabisbaixo, carrega a suspeita do mal que aflige a sinhá. Contudo, nunca
conseguiu entender de qual cativeiro o espírito dela quer se libertar e para
qual pátria quer voltar, porque, para ele, é banzo o que ela tem e, como foi
com muitos dos seus, teme que seja mortal. Tião para à porta. Não cabe a ele
entrar.
Dr. Eugênio irrompe no quarto.
– Ora, pois, D. Páscoa, não está de pé para me receber?
Indiferente ao silêncio da paciente, põe a valise sobre a
cômoda e fita a caricatura impressa num jornal que ali está. Os
Passos de Passos diz a legenda
do desenho de um idoso, que, em trajes elegantes e ar enfurecido, anda sobre
uma monte de gente brava, aprisionada pelos próprios corpos. O médico balança a cabeça em desaprovação à sátira, gira o corpo e ordena,
batendo as mãos:
– Ano Novo, vida nova, minha cara! Vamos, levante-se.
Páscoa não se mexe, para irritação contida de Herculano. .
– O tratamento tem sido seguido à risca?
– Tem sim, responde a ama ao doutor.
– Interessante! Nada de bordado, leitura ou escrita?
– Nadinha de nada.
– Sem visita, nem companhia? – Insiste o médico com os olhos cravados
no rosto de Sofia, que treme de medo de que sejam descobertas suas incursões
até a mãe.
– Nenhumazinha – responde Quitéria, convencida de ser uma
injustiça chamar de visita os minutinhos que consente à pequena passar ali no
quarto.
– Sei. D. Páscoa tem estado em isolamento completo.
– Como o senhor recomendou – fala Herculano, irritado com o
interrogatório. – Eu mesmo só a vejo quando venho acompanhar vossa visita.
– Nem autoriza uma saída para uma prosa na varanda ou quem
sabe para tomar a fresca da tarde?
– Não.
Dr. Eugênio fita um, fita outro e depois Páscoa. Inclina seu
corpo para trás, como se a maior perspectiva ampliasse sua capacidade de
análise, então, aproxima-se.
– Caríssima, escute-me bem. Contarei até cinco. Se, no número
cinco, a senhora não se levantar, eu mesmo a boto de pé.
A contagem começa. De modos diferentes, as mulheres se
perguntam como Herculano permite ao médico agir como o senhor da casa. Acontece
que elas não conseguem ver na sua feição um traço sequer do esforço que ele faz
para se conter ante aquela arrogância. Tanto que Herculano decide se retirar a
ser confrontado com o que está por vir. Tarde demais. A contagem termina e, num
rompante, Dr. Eugênio apossa-se do corpo de Páscoa e o retira da cama.
O marido retesa-se diante da mulher vergada sobre aquele
braço, como uma boneca de pano rota e desconjuntada. Quitéria cobre o rosto com
as mãos. Sofia abraça a si própria, aterrorizada. Tião aguarda, compungido, em
alerta.
– Endireite-se, D. Páscoa.
Qual o quê! Tronco, cabelos, pernas e braços continuam
tombados – e a paciente decidida a não se render ao seu algoz.
– Se D. Páscoa se recusa a ouvir a voz da razão, que
enfrente a força do mar.
Dr. Eugênio solta o braço: o corpo da paciente se agita em
busca de amparo e cai. Herculano esboça um movimento de socorro...
– Fique onde está, Capitão – ordena o médico, com a mão
espalmada para o alto. Uma vez obedecido, olha para a mulher largada aos seus
pés, como uma trouxa de roupa, e esgrima os detalhes da prescrição: – Minha
cara, três imersões a esperam, e de cabeça para baixo, se não melhorar até a
visita da próxima semana.
Por um instante, os olhos de Páscoa, prostrada no chão, e os
de Herculano, com o tronco ainda inclinado pelo socorro imobilizado no ar, se
encontram, transbordando apelos impotentes.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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