PERVERSIDADE
Herculano
sentiu uma pontada no peito tão logo avistou o outeiro onde deviam aguardar a
ordem de avançar rumo ao ataque simultâneo. Para lá se dirigiu mapeando os
arredores de extensão coberta de vegetação baixa por onde seu olhar penetrava por
entre galhos retorcidos. Uma e outra árvore, de caule fino, se destacavam na
paisagem de céu intensamente azul, com algumas nuvens brancas, como pequenos
flocos de algodão. O belo ou o inóspito do cenário pouco lhe importava, apenas
a ausência de vantagem para a força inimiga naquele terreno. A tropa estaria em
situação mais favorável.
A
tarde caía quando terminaram de montar o acampamento e começaram os
preparativos do jantar. A presença das mulheres nos afazeres, com os filhos por
perto, dava ao local um ar de tempos de paz e trouxe a Herculano a lembrança da
família. Mas essa estada foi rápida, pois ele afugentou suas indagações de como
Páscoa poderia estar, o quanto Sofia crescera, se Quitéria as cuidava com o
desvelo de sempre e se a idade não pesava em Tião do Congo para protegê-las a
altura do seu passado de destemido sentinela. Não, não era hora de recordações,
nem de inquietações que sugassem a concentração no confronto
próximo.
A
noite já ia longe quando o abafamento da barraca integrou Herculano ao redor de
uma fogueira. Ali a prosa ainda corria solta, estimulada por Manuel Benício,
ex-militar e correspondente de guerra vindo da outra brigada há poucos dias. Contava
casos ouvidos durante a sua andança pela região e, de quando em vez,
aproveitando-se da empatia despertada, lançava perguntas, nas quais Herculano
reconhecia o interesse em obter material para reportagens. Calhou dos dois
ficarem sozinhos e os fatos relatados por Benício mudaram do pitoresco para
situações vividas pelas expedições anteriores. A cada palavra dita, na mente de
Herculano, vantagens militares eram destruídas por erros eficientemente
aproveitados ou estimulados pelos sertanejos.
Em
região desconhecida, por mais de uma vez, os soldados penetraram o território
dos adversários sem perceber que a estrada livre os levava para um cerco
avassalador. Surpreendidos, descarregaram munições sem alvo à vista e se viram
obrigados a fugir por estreitos desfiladeiros, onde tiros certeiros e uma avalanche
de pedras os esperavam. Erros mais elementares e não menos nefastos também
ocorreram. Uma expedição minguou de sede ao descobrir que carregara por léguas
a fio um macaco de levantar cargas ao invés de bate-estaca para perfurar o solo
e instalar a providencial bomba de água que transportavam. Ocorreu também de
uma tropa partir para o ataque após uma longa e exaustiva marcha sem
alimentação. Durante a investida ao arraial de Canudos, a fome era tanta que a
mira inimiga foi esquecida pela possibilidade de abocanhar um naco de carne
seca ou correr atrás de galinhas para ter o que comer. Em meio à perspectiva do
suculento repasto, muitos tombaram alvejados.
Os
sertanejos, por sua vez, tiroteavam com método e disciplina, sem desperdiçar
munição nem se abalar com as balas. Com maestria, convertiam em emboscadas e
ataques-surpresas o conhecimento das trilhas da caatinga fechada e das
passagens por entre escarpas íngremes. Mostravam-se ousados, dotados de uma
capacidade de recuperação surpreendente e, a cada recuo imposto ao Exército,
ocupavam posições estratégicas para a reorganização das forças legais, além de
se apossar de armas abandonadas pelos soldados durante debandadas atabalhoadas.
O
relato explicou para Herculano a origem de grande parte do poder bélico dos
adversários e da sua superioridade guerreira. Desfez a suspeita de que os
oponentes haviam recebido armamentos de rebeldes nacionais e sido treinados por força estrangeira. A ideia de um movimento restaurador da monarquia
propagada pela imprensa também lhe pareceu outra mentira e a desavença comercial
deflagradora da guerra se configurou numa cortina de fumaça a esconder as
causas do conflito.
Sua
expressão tensa inspirou confiança em Benício, que lhe revelou algo
comprometedor acerca do comandante-geral da operação, reunido na outra brigada.
--
Arthur Oscar comprou menos provisão do que devia.
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Como sabe?
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Tive acesso ao quartel-mestre; tem muito pouca coisa lá.
A
perspectiva de outro erro no carregamento de suprimentos adensou a inquietação
de Herculano – e o espírito de corpo falou mais alto.
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O comandante deve ter tido suas razões.
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Com certeza. Quando acha que será o combate?
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Não tardará. Estamos próximos de Canudos.
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Acho que haverá atrasos. Devemos atacar perto de 29 de junho.
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Não se desgasta uma tropa com retardamentos desnecessários.
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Nem para celebrar o aniversário da morte do Marechal de Ferro?
Herculano
intuiu denúncias a caminho e tateou com cautela a revelação.
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Um motivo de menor monta quando centenas de vidas estão em jogo.
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Contudo forte o bastante para unir os florianistas com a vitória e guiá-los
numa deposição do presidente.
Dessa
vez a cortina de fumaça se turbilhonou pra valer ante Herculano.
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Com base em quê diz isso?
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Em suspeitas que investigo. Tudo indica que um golpe de Estado está sendo
montado. Até o presidente já falou que, por detrás dos sertanejos, trabalha a
política.
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Desconheço essa declaração, mas penso que se refira às ideias do beato.
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Por que um penitente se daria ao trabalho de depor o governo se crê no
apocalipse em 1900 e vê na proclamação da República o sinal do fim?
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No entanto, pegou em armas.
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Em defesa ao ataque manejado pelos políticos da região. Conselheiro não passa
de um remédio atrasado da nossa moléstia social e que apareceu nessas terras
sob a forma da religião. Porém cometeu erros: esvaziou as lavouras ao atrair o
povo para sua comunidade cristã-socialista e apoiou a chapa da oposição que se
elegeu.
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A partir desses fatos, deduz que a guerra foi criada para servir ao golpe?
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Criada para os fins daqui e usada pelos florianistas para seus propósitos na
Capital Federal. Uniram a fome com a vontade de comer.
A
perversidade da má-fé conjecturada soou tão violentamente, que Herculano
desconfiou de que Benício estivesse lhe pondo a prova.
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Não está a exercitar em demasia a sua imaginação de escritor?
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Antes estivesse. Mas estou certo de que querem se valer da insegurança nacional
para derrubar o governo e pôr no lugar o vice que é egresso da tradição local.
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Essa suspeita esvazia a da quantidade de víveres e munições compradas. Combalir
a tropa é dar um tiro no próprio pé.
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Não para a soberba. Moreira Cesar subestimou a força dos sertanejos, ávido em
obter a vitória e se apresentar como um dos homens fortes no futuro governo.
Agora é a vez de Arthur Oscar tentar o feito.
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Arrisca-se com essas declarações.
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Não pode haver desconfiança com relação aos motivos da guerra que se trava nem
com relação às intenções do general que a comanda.
A
frase soou como uma bofetada em Herculano.
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O que espera de mim?
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Provas. Preciso saber quanto Arthur Oscar ganhou de verba.
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Comprovará apenas malversação de fundos, se tanto, ou outro erro de comando,
não a suspeita da conspiração.
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Mas a notícia abalará a reputação e atrapalhará o golpe.
Não
tardou para Herculano informar ao jornalista o valor da verba. Os olhos de
Benício brilharam ao saber que o montante era três vezes maior que o recebido
por Savaget, comandante da brigada do seu informante.
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Tanto dinheiro e um carregamento inferior ao de vocês! Arthur Oscar que preste
contas à sociedade porque vou denunciá-lo.
Jamais, como nesses dias à espera da ordem do comando-geral para avançar, Herculano carregou a certeza do menosprezo à vida alheia que determinados homens possuíam. A suspeita da
operação militar a serviço do golpe transformou-se em verdade e, como o irmão siamês do Exército, suportou a pressão dessa dependência engajado
nos exercícios praticados de sol a sol para adquirir destreza em correr pelo
chão irregular do sertão, para rastejar no solo espinhoso da caatinga, para
pular e sair dos barrocais da região, para sobreviver à criminosa guerra e
credenciar-se com seu mérito a um lugar na revolução que um dia adviria de
ocorrer no país.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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