DISCIPLINA INTELIGENTE E PENSANTE
Cedo na vida, Herculano conheceu a penúria das
crianças libertadas pela lei do ventre livre. Apartadas aos oito anos de idade
de suas mães, que continuam escravas, eram encaminhadas às instituições de
menor, mas nem todas ali permaneciam. Muitas fugiam dos maus tratos dos seus
cuidadores que podiam tirar proveito dos seus serviços, como aquelas que
ficavam nas senzalas. Mais tarde, já rapazola, Herculano se habituou a cruzar
com os sexagenários alforriados, que perambulavam pelas ruas e, a toda hora,
ouvia rumores sobre negociatas realizadas com os recursos do Fundo de
Emancipação, criado para apoiar ex-cativos. Ressentia-se com essa realidade e
com o arrastado abolicionismo que lhe suscitava a perspectiva sombria de ser
concluído com os libertos abandonados à própria sorte. Acima de tudo, revoltava-se com o parlamento,
a quem culpava pelo tempo e saber desperdiçados para pôr fim à tamanha
desumanidade.
No lugar de Pedro II, já teria recorrido ao poder
moderador, superior ao do parlamento, para fazer o que precisava ser feito:
acabar com a escravidão, integrar os emancipados na sociedade e inserir a
pátria na era industrial. Da mesma forma, teria sido inflexível na investigação
das denúncias do mau uso do erário público e no disciplinamento dos desviantes.
Para Herculano, nem a moral teológica guiava a conduta de muitos brasileiros.
Achava que esses indivíduos encontravam-se num estágio de evolução, no qual as
afeições egoístas suplantam as altruísticas e impedem os esforços comuns em
prol do progresso social e o da nação.
Outra questão decorrente afligia Herculano. Há
alguns anos, soldados infringiam a lei que proibia a classe de se manifestar.
Primeiro opinaram a favor da abolição, depois defenderam também a honra atacada
por políticos, que qualificaram de insubordinação os pronunciamentos.
Sucessivas punições e infrações acirraram os ânimos entre o Exército e o Visconde
de Ouro Preto, presidente do conselho ministerial da monarquia brasileira.
Nesse clima, o marechal Deodoro da Fonseca, leal monarquista e forjado, até
então, na mais rigorosa disciplina, ignorou a ordem de prisão a um oficial
infrator e foi punido com a transferência para Mato Grosso. A solidariedade ao
marechal contagiou as ideias e os debates dos jovens da Escola Militar da Praia
Vermelha.
Parte dos alunos associou o agravo à honra dos
oficiais a mais uma das moléstias da monarquia, num cenário em que a República
era o porvir necessário, único e inadiável dos povos humilhados e abatidos da
sua dignidade. Outros atribuíram o deplorável agravo ao despreparo moral do
gabinete imperial para reconhecer o valor do Exército na luta pelo fim da
escravidão. A solução estava na deposição do gabinete, não em mudar a forma de
governo. No meio do fogo cruzado, e de modo inusitado, Herculano se expressou a
favor da liberdade de crítica dos oficiais. Debaixo de aplausos esfuziantes
encerrou a exposição.
-- Os soldados são cidadãos. Têm o direito de seguir
uma disciplina que seja inteligente e pensante, e jamais poderão se calar
diante de uma ordem opressora.
Como dois rios caudalosos, o clamor antagônico da
mocidade militar convergiu para a ideia de que a livre expressão era um direito
superior ao dever da obediência. O consenso alcançado transformou-se em
reconhecimento e respeito a Herculano. Nunca antes o Exército e o jovem
formaram um só corpo harmonioso como nesses dias de debates acalorados e de
bandeiras desfraldadas em nome da liberdade dos negros e dos direitos dos
homens e do cidadão.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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