DIVINA NEGRÃO
Abdias
atravessa o Largo da Carioca, ainda eriçado com o cerco da Brigada Sanitária, e
acena para Benevides Vidal, outro empregado de Theodoro. Pequeno e moreno,
quarenta anos recém-feitos, usa chapéu de coco, casaca curta sobre colete,
calça de listras negras e botinas bem engraxadas, num todo em que a elegância
da indumentária resiste ao tempo pelo esmero com que é tratada. À sela do
também escovado e lustroso Tufão, BV, como gosta de ser chamado, trota rumo à
Praça Tiradentes, situada mais adiante.
Ladeada
acima pela Rua da Carioca e, abaixo, pela Sete de Setembro, a Praça é ampla,
arborizada e famosa pelos teatros e cafés-cantantes de suas cercanias. O nome
homenageia o dentista Joaquim José da Silva Xavier que morreu enforcado, em
1792, por ter tentado realizar, de uma única vez, o que precisou do concurso do
tempo para ocorrer em duas etapas: a independência do Brasil de Portugal, em
1822, e a proclamação da República, em 1889.
Divina
Negrão mora quase à esquina da Sete de Setembro, na São Jorge, que corre aos
fundos da Praça. Na cozinha, mexe um doce ao fogo de um potente fogão de lenha.
Louças secam ao peitoril da janela e tabuleiros de madeira, tachos de cobre,
cestos de vime e bacias de alumínio, cobertos por panos alvos, repousam sobre
os móveis. De fora, chega o canto em duas vozes femininas: Perdão, Emília,
se te faço sofrer, quisera amar-te, mas não posso, porque gelado trago o peito
meu; não me recrimines que não sou culpado, amor no mundo pra mim morreu. Era
eu um...
Pensa
no seu coração solitário e reconhece: cedeu de menos, exigiu demais e anelou o
impossível: um homem trabalhador, de olhar iluminado e palavras sábias que a
arrebatasse de paixão. Reconhece também que a providência não quis. Jamais pôs
no seu caminho esse ser capaz de almofadar com seus braços a dureza da vida a
ponto de fazê-la preterir a liberdade que custou para comprar pela labuta
diária compartilhada com alguém. No desenrolar do fado de senhora da própria
vida, curadora, consoladora e protetora de gente, o tempo passou, a juventude
se foi e um desmemoriado vazio se formou. Às vezes, como neste instante, o
vazio se alembra de si e recorda do amor anelado de um modo tão saudoso, que
parece coisa de encantamento, por que como é possível sentir saudades do que
nunca se conheceu? Divina suspira! O doce borbulha, desgruda do fundo do tacho,
dá o ponto. Chamados substituem a cantilena.
--
Divina! Corre, espia o muro. Ó Divina, chega cá!
A
mulher afasta o tacho do fogo, tampa a trempe e chega à porta aberta para o
terreiro. A banda do lado esquerdo não é muito grande, apesar de possuir pés de
goiaba, bananeiras e uma bica de lavar roupa. A frente é avantajada: toalhas de
mesa secam em varais de bambu fincados no chão e outras toalhas quaram sobre
pedraria ao lado, perto de uma cerca de madeira. Desse lado, a propriedade se
estende em uma imprecisa área retangular. Há árvores, canteiros de horta e de
ervas, além de galinheiro, chiqueiro e dois pares de casinholas geminadas.
Conceição, de cinquenta e alguns anos, passa roupa em uma das casas. Por sofrer
de baixa audição, não ouviu os chamados de Corina e de Delfina no quintal dos
varais. Mais moças, avental molhado, mãos na cintura, as duas fitam BV, que
parece em ascensão do outro lado do muro enquanto saboreia uma fruta. O homem ergue
o chapéu para Divina.
--
Bom dia, senhora!
--
O que faz aí, assustando o povo?
--
Peço mil perdões, mas a culpa é desta goiaba. A boca encheu d’água.
--
E precisou apanhar assim?
--
Sou filho de Cosme e Damião. Subi no dorso do meu Tufão e cá estou a fazer a
vontade dos meus protetores enquanto aprecio a paisagem.
--
Num brinca com os santos que eles num são bobo, ralha Corina.
--
E isso aqui é propriedade particular, acrescenta Delfina.
--
Que propriedade! Quase não se vê uma com tanto espaço vazio, pelo menos tão
juntinho do centro da cidade.
Divina
não gosta do comentário. O alargamento da Rua Sacramento em curso, perto da
Praça, despertou o olho grande na casa, onde há décadas mora, em uma história
de realizações que lhe gera receios de ter um final infeliz. Aos vinte anos,
obteve permissão do seu senhor, Caetano Negrão, para vender quitutes no final
do dia e fazer dinheiro para comprar sua alforria. Com o passar do tempo, criou
clientela e a fama se espalhou. Sempre tinha alguém a dizer que seus doces e
salgados eram bom demais e outro alguém a indagar que Divina era aquela: -- A
do Negrão.
Certa
vez, ao tabuleiro, conheceu Constância do Rosário, mulher viúva, sem filhos, que
sabia se virar muito bem sozinha. Enturmada com o pessoal da Alfândega e dos
navios, Sinhá Cota do Rossio, como era conhecida, comprava artigos importados e
os revendia a preço superior. O lucro emprestava a juros em percentual inferior
aos da praça, o que lhe garantia muitos clientes. Intermediado pelos quitutes e
pela mútua simpatia, o contato entre as mulheres se estreitou, e Divina
solicitou para Sinhá um empréstimo para comprar sua liberdade.
--
Com os ganhos do tabuleiro, pago vosmicê com os mais dos juros.
--
Empréstimo é coisa de gente livre. Cativo num tem garantia pra dar.
--
Compra eu, então, do meu sinhô com o trato d’eu ficar na lida dos meus quitutes
porque o que quero é fazer meus réis para pagar minha alforria.
--
Queres morar na minha casa e trabalhar na minha cozinha de graça?
--
Cozinho pra vosmicê em troca.
--
Ah, assim fica melhor.
--
Então tá tudo combinado?
Sinhá
pensou. Imaginou o crescimento do negócio dos tabuleiros e apreciou a
possibilidade de ser sócia de Divina, bem como dela lhe fazer companhia, já que
suas mucamas, Anunciata e Josefa, não eram dadas à prosa. Pediu sociedade, com
despesas de moradia descontadas da futura receita, consonante com o seu lema de
que cada um tem que pôr seus tostões pra ajudar a fazer o forno e o bolo.
Termos aceitos, comprou a proponente, levou-a para morar consigo e, três anos
depois, lavrou no Oficio de Notas a liberdade daquela que filha de pai
desconhecido e sem sobrenome de mãe falecida passou a ser também aos olhos da
lei Divina Negrão.
Atualmente,
por causa da idade avançada, a saúde de Sinhá exige cuidados, ainda que o
espírito continue forte. Das posses amealhadas, sobrou-lhe algum dinheiro, o
imóvel de dois andares onde moram e o terreno vizinho. Há tempos, Divina
administra a casa e o trabalho de um grupo de mulheres empregadas no negócio,
que cresceu. Não só vende doces e salgados para restaurantes e casas de
família, como também lava, passa e cerze toalheiros, além de ler a sorte e
benzer os necessitados.
Com
exceção da já também idosa Anunciata e da madura Josefa, todas as outras
moradoras foram chegando aos poucos, cada qual com uma história de abandono e a
mesma precisão de trabalhar. Além de Conceição, Corina e Delfina, que é mãe do
jovem Juliano, há Bebiana e as filhas solteiras, Lindalva e Gracinda. As três
estão na entrega de mercadorias e coleta de serviços. Há também Belizária que,
como Josefa, é empregada em casa de família e, como as demais, contribui com as
despesas de moradia. Com tanta gente que depende do negócio e do imóvel, Divina
teme pelo destino da propriedade após o passatempo de Sinhá Cota, razão pela
qual as palavras de BV alvejaram seu coração receoso.
--
Já pegou o que quis, agora pica a mula que a gente tem o que fazer.
--
Estou de saída, mas antes posso saber quem é o dono da propriedade?
--
Tá perguntando demais.
--
Não me queira mal, só pergunto pra saber se o proprietário tem interesse de
venda. Às vezes calha d’eu conhecer um comprador e olha aí a oportunidade.
--
Bateu no muro errado e fim de prosa, diz Divina já andando para a bica.
--
Há o interesse ou a senhora não sabe dizer?
--
Num ouviu a ordem, não?
--
Óia que a gente chama a guarda!
Divina
aproxima-se do muro com um balde cheio de água.
--
Moço: ou sai por bem ou sai por mal.
--
Com vossa licença, bom dia.
BV
desaparece e as mulheres se entreolham.
--
Onde já se viu? Que sujeito intrometido!
--
Tá cobiçando a casa.
--
Só morta sinhá sai daqui.
--
O que será da gente quando ela for dessa pra melhor?
--
Basta a cada dia o seu fardo, Corina. Vamos trabalhar que é melhor, fala
Divina, que retorna para a cozinha. Ali adentra a sala de jantar conjugada a de
visita, vê Sinhá e Anunciata cochilando na cadeira de balanço – a visão da
velhice suscita a sua a caminho: oh, meu Pai, nos proteja! Chega à
saleta ao lado, separada por uma cortina. Dispostos num oratório, santos, em
estatueta, miram a porta da rua, enfeitados com pendões de flores de papel,
terços e cordões de miçangas. Nossa Senhora da Lampadosa ocupa posição central:
traz à palma da mão um coração circundado por um aro dourado e, no outro braço,
carrega Jesus menino, que segura uma pomba. Uma mesa está encostada à parede
que faz ângulo com a do oratório. Duas cadeiras ladeiam o móvel coberto por
toalha de renda branca sobre feltro, onde búzios, deitados em uma peneira,
dividem o espaço com uma cambraia dobrada, um baralho e um castiçal.
Divina
cobre a mão da Santa e do Menino Jesus.
--
Dadivosa e inocência, protegei esta casa.
Tudo
o que sabe sobre orixás, búzios, ervas e benzeção, aprendeu com o babalaô da
senzala do ex-senhor. Quanto aos mistérios católicos, os ensinamentos vieram da
esposa do seu Negrão. Mais tarde, ao tabuleiro, conheceu o baralho com a cigana
Najma. Só de ver as cartas, sortilégios vinham à sua mente. O acerto era tão
grande que Sinhá Cota lhe deu de presente um baralho que mandou trazer do
estrangeiro. Desde então, lê as cartas também.
Senta-se
à mesa, acende as velas do castiçal e invoca a permissão dos orixás para jogar.
Lança os búzios, que caem virados para baixo, num sinal de jogo fechado: por
que não quer falar, meu Orí? Afasta a peneira, estende a cambraia e traz o
baralho ao encontro do peito. A imagem de um coração trespassado lhe chega.
Pensa em São Sebastião. Embaralha e divide em montes o baralho, une as partes
em outra disposição e depois retira três cartas e as deita sobre o tecido. Um
céu carregado de nuvens se exibe na primeira; uma montanha, na segunda; uma
cruz, na terceira. Divina pressente tempos difíceis e não quer saber mais.
Porém uma dúvida se formula: o que aquele
homem tem a ver com isso?
O
homem vai longe, na marcha do seu Tufão e rumo ao encontro do patrão.
Copyright © 2013 by Maria
Tereza O. S. Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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