quinta-feira, 9 de julho de 2015

Capítulo Cento e Dezenove

DA NOITE DE 14 DE NOVEMBRO


Hilário anda de um lado para outro diante de um cabreiro ajudante de ordens. Passou o dia sobressaltado com os rumores de uma sedição. Só se tranquilizou quando Costallat apareceu no final da tarde. Mas daí, as aulas terminaram e ninguém foi embora. Teme que essa desconformidade seja um sinal do que a Escola se levantará contra o governo. O ajudante de ordens se manifesta.
-- Será que o comandante não está mancomunado com os insurretos?
-- Nunca mais diga isso.
-- Mas ele não age.
-- Como não? Ordenou que ninguém entra ou sai da Escola sem ele ser notificado.
Mal acabara de falar, chega outro ajudante de ordens.
-- Arrombaram o depósito. Os alunos estão armados.
Quando os três surgem no pátio, tiros são dados para o alto pela mocidade militar. Hilário demora alguns segundos para entender os acontecimentos. Vê, então, Costallat cara a cara com Travassos, e do lado, Sodré, Varela e Herculano.
-- Como chefe do Exército revolucionário, venho destituir o senhor de suas funções e assumir o comando da Escola, diz Travassos.
-- Só o entrego por não ter meios de resistir. Considere-me seu prisioneiro.
-- O general é livre e terá acatado o seu direito de ir embora.
-- Não receio ser desacatado pelo senhor, conheço-o muito bem, mas tem clareza do vosso ato?
-- Sei que jogo a minha cabeça a prêmio, mas obedeço ao clamor revolucionário.
-- Seja feliz, general.
Costallat se retira, acompanhado de Hilário e dos ajudantes de ordem.
A mocidade militar comemora a deposição com vivas ao exército revolucionário. Herculano vê as horas, depois fita o céu, com os pensamentos na tropa popular e no desembarque de Realengo. Guarda o relógio e inicia o que lhe compete fazer nos preparativos finais da ansiada marcha.


Fogos de artifício estrelam o céu sobre a zona portuária. Rufam os atabaques nos morros da região e sucessivos conflitos eclodem pela cidade afora. Touro e sua tropa ocupam a Estação da Prainha. Ninguém embarca ou desembarca mais ali. Correia comanda um ataque nas imediações da Praça Tiradentes. Juliano, Zé da Baiana e os escudeiros levam instruções aos Materialistas e Bons de Briga, que lideram ofensivas pelas ruas em obras. Mais uma vez, comerciantes fornecem suprimentos aos revoltosos. Os filhos de Manoel do Porto ajudam a armar barricadas na Praça da Harmonia.  Por onde passam, os rebeldes quebram os lampiões. Em várias vias, sacos de areia, colchões, carroças e bondes virados bloqueiam a passagem da polícia, que são repelidas à saraivada de balas, de garrafadas, pedras e dinamites. Feridos e mortos são recolhidos dentro dos imóveis em demolições e outros acolhidos nas casas vizinhas.  
O informe à Rodrigues Alves sobre os motins atropela o relato sobre a deposição de Costallat. É a deflagração geral, pensa Theodoro.
Dentro em pouco, tudo no palácio gira em torno da reação ao levante. Vozes dão ordens, corpos agem e telegramas trazem notícias dos batalhões de São Paulo e Minas Gerais a caminho. Já a Praia Vermelha vive insucessos. O general Hermes da Fonseca abortou a sublevação de Realengo, o coronel Marques Porto reforçou a segurança da Fortaleza São João, de onde alunos voltaram sem as armas ali guardadas, e a polícia prendeu Vicente de Souza. Hora depois, ânimos são renovados com a integração do esquadrão de reconhecimento do Governo no movimento e com notícias animadoras da cidade.
-- O povo luta e a polícia apanha.
O entusiasmo se espalha pelo pátio da Escola e o fulgor do olhar de Herculano trai a sua sobriedade. Deixa adivinhar sua constatação de quão certo foi instruir com táticas militares a revolta dos populares que estão a lutar.
-- Vamos entrar em formação, ordena a sua brigada.


A tropa rebelde se põe em marcha. Reúne soldados de diversas patentes, a mocidade miliar em penso e alguns civis. Travassos trota na linha de frente, ao lado de Sodré. Do sentido do mar para a terra, Herculano fecha o lado interno dessa linha e Varela o externo.
Tião segue junto até a esquina da rua do casarão. Acena para Herculano, que meneia a cabeça, com a consciência da perfídia trancada no mais íntimo de onde desejou que fosse seu lar. Apreensões com relação ao futuro da filha o tensionam. Combate-as com a convicção de ser a honra do pai e ao pai que permite ao filho caminhar com altivez. O pensamento flui para progenitor, morto antes que pudesse guardar a memória do seu rosto. Honrou uma ideia de pai. Pensa na obstinação da mãe para mudar o seu destino e o da irmã. Revive a sensação de quando Pedro II pousou a mão sobre a sua cabeça e lhe assegurou as condições para aquela mudança. É assaltado pela vergonha de tê-lo traído para nada: “o desagravo está para ocorrer”, mais sente do que pensa. Deixa-se ser levado pela emoção de quando vestiu pela primeira vez a farda da Escola e, logo mais, pela epifania de quando descobriu a teoria de Estado de Comte. Outras recordações vêm à sua mente e se sucedem com rapidez como paisagens vistas da janela de um trem. Todas lhe mostram o esforço feito para não sucumbir à ruinaria do ideal republicano nas barbáries de Canudos. “Mostrarei a que vim”, responde à imagem de Euclides que lhe surge. Desse modo, marcha no tudo ou nada da sua vida, tomado por reminiscências que o vinculam na onipotência de se achar o homem predestinado da República, o filho do povo que irá derrotar a lógica da realidade mesquinha.
O encouraçado Deodoro penetra a enseada de Botafogo e seus holofotes apontam para a praia da Saudade. A luz corre ao longo do compactado militar. Espadas e baionetas reluzem. Corações batem forte, pupilas se dilatam, e Herculano espreita os riscos daquele facho de luz na travessia escura.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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