AVANÇA, FRAQUEZA DE GOVERNO.
Ainda está escuro quando o Chefe de Polícia
lê as manchetes dos jornais que logo chegarão às ruas. Começa o dia mais cedo.
As notícias, em primeira mão, também despertam outras autoridades. O presidente
convoca uma reunião extraordinária.
A caminho do Palácio, Theodoro passa os olhos
no artigo de Apolônio Cidadão, sem entender como Herculano teve cabeça para
escrever. Cogita que ele não recebeu a encomenda. Deixa o jornal de lado e
pensa em jogadas para mover as peças do tabuleiro a favor dos seus objetivos.
Algum tempo depois, pessoas se reúnem no
Largo de São Francisco, indiferentes à proibição dos comícios. Herculano e
Brito observam a concentração. Os Materialistas e os Bons de Briga se distribuem pelas margens do Largo e Juliano, Zé da
Baiana e os outros escudeiros, pelo centro do espaço. Estudantes mobilizam
pedestres para ouvir o comício da Liga contra a Vacina, que começará ali em
breve. Em cada esquina, guardas a cavalo estão atentos à insubordinação
popular.
Em passos apressados, Pinto de Andrade aproxima-se
de Herculano e Brito.
-- O comício foi mudado para amanhã à noite,
no CCO.
-- Por quê?
-- Não sei dizer. Só me mandaram dar o recado
e falar que qualquer coisa é pros senhores irem pra lá – responde e se afasta.
-- O que pode ter acontecido?
-- Seja o que for, não justifica, responde
Herculano a Brito.
-- E agora, como fica essa gente toda?
-- Terão o protesto que vieram ouvir.
-- Você não irá discursar.
-- Não. Minha hora não chegou. Mas os alunos
podem e quem mais quiser.
-- A coisa pode ficar feia, Herculano. Os
guardas nem piscam de tensão.
-- Pois eles que decidam o lado em que querem
lutar.
-- Não se trata de decisão, mas de obrigação.
-- Que façam corpo mole. Vamos. Não há tempo a perder.
Caminham pelo Largo, onde as picaretas já
trabalham. No centro, a estátua de José Bonifácio, o Patriarca da Independência,
se destaca sobre um alto pedestal com degraus ao redor. Herculano conversa com os
estudantes, depois, com a tropa popular. Retira Juliano e Zé da Baiana de uma
das fileiras.
-- Serão mais úteis como mensageiros.
-- O senhor que manda, diz Flecha Negra.
Enquanto o grupo penetra um casarão
desocupado, no Palácio, o presidente se reúne com Theodoro, Oswaldo Cruz e o
Ministro Seabra. Pede certezas científicas para defender a vacina e um discurso
único sobre a necessidade da sua obrigatoriedade.
-- Impossível essas visões distintas, ainda
mais dentro do governo. Espero que cumpram vossas missões a contento. Essa
torre de babel não pode continuar.
O trio compromete-se em convocar a comissão
de saúde para afinar o discurso e também analisar os regulamentos.
-- Quanto ao comício, presidente, alguma
orientação?
-- Mantenha a força na rua pronta para
intervir caso haja badernas.
A orientação presidencial chega ao Largo em
momento de grande animação. Aos pés do Patriarca da Independência, mímicas
substituíram as palavras de protestos. Já houve morras ao chefe de polícia
Sonso, ao prefeito Bota-Abaixo e ao Diretor de Saúde Mata-mosquito e, neste
instante, o morras é para o presidente Soneca. A autoridade policial decide
acabar com a fuzarca e manda guardas retirar o orador do momento.
À medida que os guardas se aproximam, crescem
as vaias e as provocações dos manifestantes. Pé na Medalhinha entra em ação.
Tira uma navalha e ordena.
-- Abre espaço, minha gente, porque o
rabo-de-arraia vai chispar.
Outro do grupo dos Bons de Briga, Juca Pancada, também se põe em ação.
-- Avança fraqueza de governo.
Senha dada, corpos se atracam e a luta
encrespa o mar de gente. O policial em comando ordena a carga da
cavalaria que se desloca com sabres em punho. Os Materialistas lançam pedras na retaguarda da tropa. A investida
inesperada desorienta os alvejados. O revide desorganiza a configuração no
Largo. Pelos flancos e dianteira da cavalaria, a enxurrada humana vaza, em
fluxos para a fuga e refluxos para o contra-ataque com ferros e paus das
demolições. Gritos, xingamentos e rojões soam, vidros estilhaçados se
transformam em armas, estabelecimentos fecham as portas, tiros espocam e o sangue jorra.
Da janela do casarão, Herculano instrui Juliano
e Zé da Baiana a impulsionarem o recuo dos rebeldes pelas ruas estreitas
tomadas pelas obras. Ordem cumprida, o espaço reduzido impede o encalço
compactado da cavalaria e favorece a corrida dos rebeldes. Às janelas e das
soleiras das portas, curiosos assistem à fuga. Satisfações desabrocham.
-- O governo pensa que pode tudo! Tá aí o
troco.
-- Bananas, isso nós não somos.
Reprovações também se expressam.
-- Obra de vagabundos, de empreiteiros da
arruaça.
-- Decerto. O povo verdadeiro é cordato.
Os tumultos se prolongam pela manhã.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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