UM POUCO DE CADA UM
É madrugada alta, quando Valentin sai de um bar. Caminha
em passos trôpegos e remói a culpa de ter caído na farsa montada por Catarina e
Theodoro. -- Fui um otário, diz. Penetra a Santa Luzia escurecida também pelas
copas dos tamarindeiros e flamboyants. De repente, um tiro alveja a sua cabeça.
Tomba. Um homem se aproxima, atira novamente e corre.
Catarina
folheia o caderno de viagem do morto. O filho dorme ao lado, no conforto de uma
cesta. O assassinato suspendeu a viagem para a fazenda e as investigações estão
a cargo de Silva Castro. Theodoro providenciou o enterro e despachou os
pertences do amigo para a casa do pai dele, em Portugal, sem saber que ela
reteve aquela lembrança.
Uma lágrima
cai e borra a página lida. Enxuga a página com um lenço. Fecha o caderno e
aninha o filho no colo. Imagina o céu de opala descrito no diário; à luz desse
brilho, pensa no dia em que entrará no Palácio do Catete com César Augusto e
como a esposa do novo presidente do Brasil. Exibe um novo berloque na corrente
que usa. Na peça em formato de coração, as letras iniciais do seu nome e do
marido entrelaçam-se grafadas em diminutos brilhantes.
Ninon lê o cartão de participação do nascimento de César Augusto. Coitado do Valentin! Deveria ter se chamado Inocêncio, pensa.
Depois, retira-se para supervisionar o ensaio da comédia musical “Boas Festas”
que as suas pupilas apresentarão logo mais no palco da Casa Rosada.
O julgamento íntimo de Abreu Vaz se conclui com sentença favorável a ele.
Despacha as filhas para suas residências e vai atrás do seu elixir no L’ Onde Bleue. Neste instante, acaba de
pedir Mariinha em casamento.
-- Aceitas?
-- Sim, meu ioiô. Ó, como sou feliz!
Os sinos da igreja badalam a meia-noite. Expira o mandato judicial que
garantia o funcionamento da Maison
Moderne. Duzentos homens com marretas e picaretas começam a demolição. O prefeito
assiste ao bota-abaixo, em companhia de Barroso e de Raposo. Ao raiar da alva,
a antiga casa de diversão de Pietro já não mais existe.
Euclides desembarca na cidade, ainda atônito com a
morte de Herculano. Jamais supôs que o colega se lançasse num ato temerário
como aquele. Visita Páscoa, oferece seus préstimos e lhe pede que escreva para
sua esposa, Ana Emília, sempre que precisar, enquanto ele estiver na Amazônia.
-- Saninha saberá me localizar e a quem acionar em
caso de ajuda imediata.
-- Muito agradecida.
-- Faço questão. Tem uma pena e um papel?
-- Por favor, me acompanhe.
Dirigem-se à biblioteca. Euclides encanta-se com o
quadro na parede.
-- A República!
Páscoa observa o mesmo ar embevecido que tantas
vezes viu no marido. Ouve-o discorrer sobre a beleza da imagem que inspirou o
ideal republicano de muitos. Entende como se livrar daquela presença.
-- Quero que fique com o quadro.
-- É muito gentil, mas não sei se posso aceitar
tamanha deferência.
-- Essa seria a vontade de Herculano. Posso enviá-lo
para sua residência.
Euclides aceita o presente por mera delicadeza, sem
compreender como a viúva se afasta de algo que foi tão caro ao marido. A treze de dezembro, embarca do
Pharoux, à testa da expedição de demarcação das fronteiras do Acre com o Peru e
a Bolívia.
Alguns dias depois. A publicação de um decreto do governo federal
exaspera Ernesto. Discute a questão com Theodoro e sentencia.
-- Agora sim a Corrente se inviabiliza.
-- Vamos desembaraçar esse cipoal. Não vê que a eletricidade está na
nossa mão?
-- O prazo herdado não deixa, a menos que Deus diga de novo faça-se a
luz.
-- Dirá. Não há como puxar linhas de transmissão sem desapropriações.
-- Seja realista. O governo não dormirá no ponto.
-- Acontece que funcionários se confundem, documentos se perdem. Outros
são esquecidos dentro das gavetas. Não sendo um problema nosso, é causa ganha.
-- Não conseguirá molhar a mão de tanta gente.
-- Aposto a minha participação que sim. E você, o que aposta?
-- Não sou um jogador, Theodoro.
Este caderno esteve prudentemente
escondido trinta dias. Não fui ameaçado, mas temo sobremodo a violência dos
governos do Brasil. Inocentes vagabundos são recolhidos na Ilha das Cobras,
surrados e mandados para o Acre. Um progresso! Até aqui se fazia isso sem ser
preciso estado de sítio; o Brasil já estava habituado a essa história. Durante
quatrocentos anos não se fez outra coisa pelo Brasil. Creio que se modificará o
nome: estado de sítio passará a ser estado de fazenda. De sítio para fazenda,
há sempre um aumento, pelo menos no número de escravos. Profecia: dos
militares, mais ou menos envolvidos nas mazorcas, nenhum sofrerá pena; dos
civis, alguns se suicidarão na prisão. Essa rebelião teve grandes vantagens: 1)
demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter opinião e defendê-la com armas na mão;
2) diminuir um pouco o fetichismo da farda; 3) desmoralizar a Escola Militar, escreve Lima Barreto.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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