DA TROPA POPULAR
É
sábado. Herculano retorna com a família do arraial de Copacabana. Mal adentra a
casa, sai. Surge no escritório de Dr. Anacleto em visita não marcada. Na
antessala do advogado, espera para ser atendido. O som das imprecações contra a
reurbanização vaza do escritório. A porta se abre e o portal emoldura o
corpanzil de Manoel do Porto.
--
Somos homens da lei e da calma, mas se o governo não pagar o que deve aí a
coisa vai ficar feia.
Com
o comerciante estão os vizinhos afetados pela reforma do Largo da Carioca. O
grupo enche a antessala, alguns
meneiam a cabeça de modo formal para Herculano – e logo o ambiente se esvazia
novamente. O militar e o advogado se cumprimentam.
-- Só passei para saber se o senhor tem
alguma notícia do processo.
-- Nenhuma. A coisa está lenta. A prioridade
é julgar os infratores do Código Sanitário e expedir as ordens de demolição por
insalubridade. Mas te aviso tão logo venha saber de alguma coisa.
De volta à rua, Herculano depara-se com
Correia. O homem lhe sorri.
-- Tá lembrado de mim, Capitão? Do discurso
do senhor? Era eu na coxia.
-- Claro! Como está?
-- Bem e ainda pensando em tudo que ouvi lá.
Toma um café comigo?
-- Uma honra.
-- Correia Matheus, a vosso dispor, diz
estendendo a mão.
O militar responde ao cumprimento.
-- Herculano Dias, também a vosso dispor.
Durante o café, tomado à mesa de um bar, sem
clientes por perto, o marceneiro põe o militar a par das suas preocupações com
os desalojados e com as dificuldades de Vicente para liderar as defesa dos oprimidos.
-- Foi uma benção este nosso encontro. Há
dias penso em ir ter com o senhor para saber se pode ajudar a alumiar nossas
ideias lá, no CCO.
Herculano vislumbra a oportunidade de formar
uma tropa popular com operários que lhe dê poder para garantir o levante
aspirado.
-- Talvez eu o desaponte com o tipo de ajuda
que posso oferecer de imediato.
-- Não diga isso. Fez um apelo tão bonito
naquela manhã.
-- Para a reflexão. Só com o entendimento
dos nossos problemas podemos criar soluções para demolir as fundações do mal
que nos aflige.
Correia teme estar diante de alguém parecido
com o patrão.
-- Quem não entende que o governo deixou os
despejados ao deus-dará?
-- Resta então entender porque o fez e porque
obteve autorização parlamentar.
-- Ora são uns desalmados e o povo é
manso. Não todos. Tem gente valente,
pronto pra exigir amparo, e outros tantos pra engrossar o coro.
-- Porém antes de ir pra rua, cada cantor
precisa saber que governo quer e como torná-lo realidade; em seguida, é preciso
afinar as vozes. Se não, o coro irá cantar primeiro na delegacia central e
depois na Ilha das Cobras. Por isso, falei de reflexões.
-- O senhor está me lembrando do meu patrão.
-- Folgo em saber.
-- É um anarquista.
Herculano vê problemas nessa qualificação e
nos seus efeitos em Correia, um homem que pode se tornar um bom sargento da
tropa popular vislumbrada. Por outro lado, enxerga no patrão dele potencial
para arregimentar comerciantes que apoiem financeiramente os seus planos. Deixa
de lado seus pudores e ajusta sua visão de futuro com o intuito de ampliar a
empatia e a confiança despertadas.
-- Imagina uma reta com uma inclinação suave
para cima e contínua. É assim que vejo a evolução da humanidade: em direção ao
aperfeiçoamento superior e ilimitado dos indivíduos e numa marcha impulsionada
pela instrução, fraternidade e responsabilidade. De tal modo, o anarquismo pode
vir a ser a nova forma de organização dos indivíduos quando a era positivista
ou científica, alcançar a plena maturidade.
-- Meu patrão ficará surpreso quando eu
contar que o senhor pensa assim.
-- Terei prazer em conhecê-lo.
-- Passe na loja. Apresento o senhor pra
ele.
-- Na primeira oportunidade, passarei.
-- Mas no hoje, como a gente arranca o mal
pela raiz?
-- Que tal reunir uns amigos para pensarmos
juntos? Quem sabe no CCO?
-- Vou ver o que arrumo e aviso pro senhor
lá na Escola, pode ser?
-- Estarei à espera.
Herculano sai satisfeito do encontro. Das
perspectivas abertas por Correia às ameaças feitas ao governo pelos clientes de
Anacleto, tudo reforça suas certezas de que o presente gesta as condições para
um levante. Astúcia, diz para si, Ninguém pode desconfiar do que penso
e almejo. Regressa para o casarão. Tranca-se na biblioteca e planeja
conteúdos para refletir com a sua possível tropa de operários.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S.
Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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