DE CASCAS DE BANANAS E DE SONHOS
Num
café na esquina da Rua Ouvidor com a Uruguaiana, Emiliano põe o Comendador a
par do encontro que teve há pouco com Theodoro, no Palácio do Catete. O relato
sem boas notícias enerva Ferdinando.
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Ainda mostro pra esse sujeito com quantos paus se faz uma canoa.
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Não destempere! Ele disse que agora terá mais tempo para ver o que pode fazer
pela desocupação do casario.
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Esse agora prolonga desde dezembro.
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Por causa das reformas. Não podemos negar que ele anda bem atarefado.
-- Pois se não mexer logo, mexo eu. Tenho casca de banana para jogar. Ele irá escorregar feio.
--
Escorregamos nós também. Conhece bem o tipo e o pai.
O
barulho de uma britadeira na Uruguaiana invade o espaço e enerva ainda mais
Ferdinando. Propõe ao amigo pagar a conta e irem para outro local.
Durante
o trajeto, a reurbanização se apresenta no som e no trabalho das picaretas, nos
escombros das demolições e no tráfego congestionado pelas obras que alargam as
ruas. Os amigos passam diante da venda Ambos
os Mundos, com a sua carcaça à vista e defrontada para a intacta loja Os Materialistas. No quintal do
estabelecimento, Fortunato e Correia conversam.
Fortunato
nasceu em León, na Espanha. O pai, militante anarquista, morreu num confronto
entre a polícia e trabalhadores. No mesmo ano, em 1873, o então garoto
desembargou na cidade, com o tio, fugitivo da repressão política, e ainda acompanhado
das irmãs e da mãe, que aqui se casou com um lisboeta. Após a morte do
padrasto, Fortunato assumiu a loja e a rebatizou com o nome atual. Prosperou no
comércio e, como o pai, tornou-se um anarquista.
Correia,
até onde sabe, tem sangue de índio, de alemão, de negro e de português. Não
professa doutrina política e se condói com a pobreza. Preocupado com a pouca
ação de Vicente na defesa dos desabrigados, comenta com o patrão sobre o
discurso de Herculano, que ainda ecoa na sua cabeça.
--
Penso em ir conversar com ele. Quem sabe pode ajudar o Vicente
nas coisas do CCO.
Fortunato
faz cara feia.
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Aposto que é positivista. Não se fie em falatório desse povo porque pregam a
ordem e a submissão. Ainda mais um militar que tem a lei da garrucha.
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Tive boa impressão dele. Chamou a família de cada um de pequena pátria e
defende a instrução, como o senhor.
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Vá lá, mas a Pátria é o mundo todo e toda a gente.
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Entendi que pro Capitão isso é a humanidade, o grande Ser.
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E a fortificação do espírito da rebeldia, ele prega? Duvido!
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Combateu a obediência servil. Disse que rebaixa o caráter e abate o moral
--
É. Mas pergunta pra ele, se acredita na igualdade. Descobrirá que não.
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Pra quem defende a República, perante a lei todos os homens são iguais.
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Lei! O grande problema, Correia. A do céu quer acarneirar todo mundo. A da
terra, pôr cabresto na gente a ferro e fogo. Não há como ser livre e igual
desse jeito.
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É muita filosofia, seu Fortunato. Tem de haver ordem.
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Sim, mas construída com o entendimento, Correia.
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Isso leva tempo e os desabrigados precisam de ajuda pra ontem.
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No imediato, só a fraternidade pode lhes prover.
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Não tem pra tanta gente. Esse é o problema.
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Infelizmente, a anarquia não acontece de pronto, mas devagar e sempre, se
houver as ferramentas certas. Teve um grego que disse: com uma alavanca, eu
levanto o mundo. Pois eu digo: dê ensino, explique para qualquer inteligência
como a opressão acontece, e ajude o povo a negar a autoridade dos
opressores que, com essas três alavancas e por conta própria, os oprimidos do
mundo todo descobrirão como sair da miséria e tocar suas vidas de um jeito
melhor que o da cartilha da religião e do governo.
Correia
acha que o patrão é um sonhador, como ele próprio. Sonha em ver os sofredores
todos se unindo de vez para exigir condições melhores de vida. Mas como isso pode acontecer? É a questão
que o faz pensar no Capitão.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S.
Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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