DE DEMOLIÇÕES E DE UM DISCURSO
Amanhece e a Avenida
Central exibe a sua materialidade desfalcada. Mais parece um local fantasma,
com o abandono devassado dos seus imóveis. Nos últimos dias ocorreu ali a
desocupação final. Quem pôde levou telhas, pisos e o que mais conseguiu remover
da propriedade. Outros deixaram portas e janelas velhas, que batem ao sabor do
vento de quando em vez. Entulhos também ficaram para trás, nos passeios. E
avisos do novo endereço, fixados nas fachadas, caem e voam, perdendo-se
adiante.
Antes do sol
madrugador se levantar, operários despontam na Avenida. Como pelotões em armas,
carregam pás, picaretas, cordas e dinamites. Distribuem-se ao longo do espaço.
Afugentam indigentes de casarios e preparam a artilharia.
Sinos da igreja
repicam os chamados dos fieis para a missa das seis deste domingo de 28 de
fevereiro de 1904. Soam como vozes de comando para aqueles na Avenida. Lá alvos
são mirados e grande parte do passado de São Sebastião do Rio de Janeiro começa
a vir abaixo. O temporal de verão desaba no final do dia.
É
manhã de abertura do ano letivo na Escola Militar da Praia Vermelha. Mestres, estudantes,
familiares e convidados acomodam-se no auditório da Escola. À coxia, Hilário
está com os nervos à flor da pele. As rajadas de vento da véspera destelharam o
palco do auditório, a água jorrou e os estragos quase suspendem a solenidade.
Só não o foi porque Correia, conhecido daquele telhado, não lhe faltou. Prontamente,
atendeu seu pedido de socorro e acaba de repor as telhas no lugar. Pelo
madeirame, confere se tudo está em perfeita ordem para proteger a solenidade do
instável humor do verão.
A
vistoria, que nunca termina, exacerba Hilário preocupado também com o atraso do
orador escolhido para encerrar a cerimônia. Olha por entre as abas da cortina
do palco e constata o auditório lotado. Vira-se e avista um mensageiro que
adentra a coxia. Pressente o pior. Como uma bala disparada, sai ao saber que o
orador não virá, pois foi acometido de um repentino mal-estar. A trajetória
termina no gabinete do comandante da Escola, diante de quem, Hilário avisa
sobre a inesperada ausência e solicita a indicação de um substituto. Após breve
reflexão, Costallat indica Herculano.
Na eminência do comandante se
dirigir com a sua comitiva para o auditório, Hilário faz o que precisa ser
feito, sem tempo para estranhar o nome indicado. Chama Herculano na coxia e lhe relata o contratempo e seus
desdobramentos.
A
escuta do novo orador se processa em mente rápida. Lembra-se do discurso que Benjamin
Constant proferiu no palco adiante e que o projetou nos eventos responsáveis
pela deposição da monarquia. Percebe-se diante de oportunidade similar.
--
Estou às ordens.
--
Por favor, então, senhor doutor Capitão, aguarde num lugar onde eu possa vê-lo,
ali, por exemplo, porque um imprevisto a mais nesta manhã eu não respondo mais
pela minha habitual tranquilidade.
Indiferente
à insubordinação nervosa de Hilário, Herculano senta-se na banqueta indicada e
avista o operário, estirado em uma viga do urdimento. Ainda o ouve mandar
Correia descer ou ficar quieto onde está porque a cerimônia irá começar em
instantes. Depois o som e a movimentação ao redor lhes são alheios. Nem mesmo o
início da solenidade quebra a sua concentração no que dizer para instigar ou
adensar a oposição ao governo da plateia. Pensa até em se valer de palavras de
quem nunca respeitou, mas de apelo aos florianistas ali reunidos. Estabelece-se
a tensão entre a força do querer e a da retidão num campo emocional contaminado
pela indisposição a se sacrificar mais em nome de uma inflexibilidade que o
afasta das lutas de poder.
Chamado
ao palco, a imagem da República lhe vem à mente. Diante da plateia espera o
final dos aplausos enquanto depreende a satisfação de Brito e a surpresa de
Agostinho e de Aurélio em vê-lo como orador. Cumprimenta as principais
autoridades e inicia o discurso.
--
Sinto-me honrado em celebrar o início de mais um ano eletivo. Instruir é atender
a necessidade vital que os humanos possuem de desenvolver a si mesmos e o meio
onde vivem. Quando esse desenvolvimento se dá por meio da inteligência
esclarecida, de aptidões capacitadas pela técnica e da cooperação decorrente do
culto das afeições altruísticas, mais os resultados provenientes dessa tríade
se somam aos da próxima geração, os desta aos da seguinte, e assim por diante.
Em paralelo, durante essas sucessões, a educação cumpre a sua missão de força
propulsora da civilização.
Nossa
Escola tem contribuído para a evolução de nossa sociedade e defendido a Pátria
ao longo da sua marcha histórica. Filhos e mestres desta Casa asseguraram no
passado nossa integridade territorial, lutaram por uma sociedade brasileira
mais humana na vitoriosa causa que decretou o fim da escravidão e ainda
proclamaram a República, imbuídos da convicção de ser a forma de governo mais
elevada para o aprimoramento continuado dos indivíduos e de suas instituições.
De forma similar, filhos e mestres dessa Casa, na atualidade, defendem nossas
fronteiras, edificam pontes e estradas de ferro, unem regiões longínquas do
país também por meio da instalação de linhas telegráficas, sem se esquecer dos
inúmeros que promovem a ordem, a segurança e servem à Pátria nos mais diversos
campos de atuação.
Bastam
esses poucos exemplos para vivificar a compreensão de que nossa Escola não
forma apenas a força armada do país, mas cidadãos. Em particular, a partir do
decreto de nº 330 de 12 de abril de 1890, ensinamos que somos um “importante
cooperador do progresso como garantia da ordem e da paz públicas, apoio
inteligente e bem intencionado das instituições republicanas, jamais
instrumento servil e maleável por uma obediência passiva e inconsciente que
rebaixa o caráter, aniquila o estímulo e abate o moral”. De tal modo e
consoante com o referido decreto, a educação militar no Brasil visa atender aos
“melhoramentos da arte da guerra, conciliando as suas exigências com a missão
altamente civilizadora, eminentemente moral e humanitária que está destinada
aos exércitos no continente sul-americano”. Formar soldados-cidadãos, agentes
da ordem e do progresso, sob a égide de uma autêntica República.
Vivemos
momentos de mudanças inadiáveis. Urge que o Brasil e a nossa Capital Federal se
adequem às exigências da modernidade do recém-nascido século 20. Contudo, quando,
em nome dessa urgência, milhares de imóveis são desapropriados por um valor
radicalmente inferior ao que valem e inúmeras famílias despejadas do seu lar, sem
ampará-las e sem impedir a exploração do infortúnio, isso gera oportunismos,
como os atuais praticados pelo setor imobiliário, e injustiças de toda ordem.
Ao
mesmo tempo, quando se contrata antigos concessionários de um morro para derrubá-lo
e lhes faculta o lucro da construção e da venda de imóveis no terreno
resultante, isentos de impostos, tais projetos forjam um capitalismo
privilegiativo que, por um lado, vilipendia os recursos e as virtudes da Pátria,
por outro, prolifera a miséria e impõe o atraso à grande maioria da população e
ao país.
Quando
o Executivo propõe projetos como esses, que desviam para o mal os princípios
morais e as práticas materiais da Pátria, quando o Legislativo os aprova e o
Judiciário os defende, quando isso acontece os Três Poderes Republicanos cometem
um crime contra a própria humanidade. Afinal, esse Ser, formado por todas as
famílias-pátrias, não pode civilizar-se quando há exploração do homem pelo
homem.
--
Morra o Bota-abaixo, alguém grita na plateia.
Olhares
suspeitos se cruzam e Costallat se reacomoda da poltrona, surpreso com o orador
que escolhera. Já Herculano enuncia o tema da tensão que confrontou na coxia.
--
Estou certo de que esse maléfico cenário traz à lembrança de muitos a figura do
general Floriano Peixoto, quando, nos últimos dias do seu governo, disse à
mocidade militar de então: “A vós que sois moços e trazeis vivo e ardente no
coração o amor da Pátria e da República, a vós corre o dever de ampará-la e
defendê-la dos ataques insidiosos. Diz-se e repete-se que a República está
consolidada e não corre perigo. Não vos fieis nisso, nem vos deixeis apanhar de
surpresa. O fermento da restauração agita-se numa ação lenta, mas contínua e
surda. Alerta, pois!”.
Agora
as palmas interrompem a fala, em meio às exclamações de vivas ao general
Floriano. Herculano prossegue.
--
Como deixar de identificar a restauração de privilégios monárquicos nos
projetos de reurbanização em curso na Capital Federal?
Como
ignorar a supremacia de interesses particularistas na condução dos trabalhos da
União e de suas Unidades Federativas?
Como
permanecer alheio à ignorância, quando não à omissão, do Poder Executivo em
coordenar esforços eficientes para reduzir as desigualdades sociais no país?
Perguntas
que lanço confiante de que os integrantes das Escolas militares e do Exército
jamais se esquivarão em dar respostas patrióticas. Somos filhos do povo,
conhecemos na carne as necessidades dos humildes, e fomos instruídos para nos
tornar agentes cooperadores da edificação de um Governo efetivamente
republicano. É esse conhecimento e essa
cooperação que nos moverá em mais um ano eletivo.
Bem-vinda
Mocidade Militar! Salve Comando, Oficiais, Praças e Auxiliares. Façamos de 1904
outro marco da nossa missão de servir a Pátria, servindo a República, a Família
e a Humanidade.
Palmas
fortes são dadas, algumas, de pé. A visão inebria Herculano. Alunos o fitam,
maravilhados em vê-lo proferir em público reflexões que costuma fazer de modo
discreto. Ainda que preocupado com a
fala do amigo, a satisfação reluz em Brito, o entusiasmo, em Agostinho. Dirigem-se
para os cumprimentos, deixando um apreensivo Aurélio na poltrona. Outros que
caminham para as saudações são soldados afetados pelas desapropriações ou pelos
despejos. Sentem-se defendidos pelo colega e admiram sua coragem para criticar
o governo num auditório saudoso de bravura similar.
Correia
se espicha para ganhar altura superior ao grupo que rodeia o militar no centro
do palco. A oportunidade se realiza quando o olhar de Herculano cruza com o
dele na coxia: o operário faz um sinal de vitória com a mão fechada do braço
erguido. Obtém um deferente menear de cabeça e, satisfeito, deixa o local.
Costallat
segue com sua comitiva pelo corredor da Escola.
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Terás problema, diz um general ao seu lado.
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A ocasião é propícia aos arroubos de retórica, responde o comandante,
procurando minimizar os receios e arrependido em ter indicado Herculano para
falar.
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Queres passar por um defensor da livre-expressão militar?
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Até parece que não me conheces!
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Cuide então para isso não virar um barril de pólvora.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright
de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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