ALMA GENTIL
Como
um ladrão, Valentin aproxima-se do solar. Espreita o jardim e o atravessa. Pela
varanda da ala íntima, adentra a sala de estar. Sem cruzar com uma alma sequer,
atravessa o espaço, sobe a escada e invade o quarto do casal. Catarina petrifica-se,
sentada na poltrona. Seu olhar gruda no intruso, que tranca a porta, caminha em
sua direção, se inclina, apoiando os braços nos da poltrona, e sussurra no seu
ouvido:
--
Sórdida.
Vira o
rosto de lado, mas o outro faceia o seu.
--
Entendo agora cada promessa do seu olhar, cada ardor do seu corpo. Quis que eu
a engravidasse.
-- Não
é verdade e, por favor, me deixe respirar.
O
pedido é ignorado.
-- Fui
escolhido como um escravo reprodutor.
--
Está fora de si.
-- Estou
sem chão, isso sim. Estarrecido com essa trama ignóbil urdida por vocês, diz em
gestos amplos que o levam a se afastar.
Catarina
sente uma contração e tenta sobrepujar a dor. A última coisa que quer é que
Valentin perceba a proximidade da hora do parto.
--
Respeite o meu estado.
--
Respeito? O que sabe desse sentimento se me jogou no limbo desse acinte?
-- O
que posso fazer para convencê-lo da minha sinceridade?
--
Nada. A farsa acabou. Ruiu por terra o álibi da viagem para Petrópolis.
Descobri onde Theodoro se escondeu para liberar sua cama para mim e quem mais o
ajudou nessa encenação. Não foi preciso muito esforço para eu entender o seu
papel primeiro de amante de voluptuosa, depois de adúltera arrependida.
Catarina
se espanta com a perspectiva de que Theodoro tenha tido a mesma ideia que a sua
para solucionar o problema da fecundação – e a sua mente opera em moto
contínuo. Lampeja a dificuldade dele para admitir a própria esterilidade e lhe propor
a transgressão. A rejeição ao seu corpo, como uma inesperada reação
conservadora à sua entrega a Valentin. A incapacidade em retribuir com ardor à sua
cumplicidade de lhe dar o atestado público de virilidade. Tudo se configura
como uma verdade insuportável: Theodoro não é o raro entre raros que pensou que
fosse. Recupera o controle.
-- Por
que diz isso? De onde tirou essas ideias? Que esconderijo é esse?
-- Tolinha!
Quem pergunta hoje sou eu: tramaram a farsa entre beijos e gozos?
-- Poupe-me
de suas ofensas e conte-me o que pensa saber.
Valentin
recusa a lhe dar armas para novas dissimulações.
--
Pergunte ao seu comparsa. E confesse: essa criança é minha.
--
Aceite a verdade: Theodoro é o pai.
-- Por
quanto tempo acha que pode esconder a mentira?
-- O que
preciso fazer para lhe convencer da minha sinceridade?
--
Hipócrita.
-- Por
que me trata assim?
-- Eu
que pergunto: por que se tornou tão vil?
-- Oh,
meu Pai! – diz sentindo a dor de outra contração.
Fecha
os olhos e inspira profundamente, como se o ar puxado pudesse extrair a dor.
Valentin entende a reação como medo e intensifica a pressão.
--
Irei defender a paternidade nos tribunais.
-- Não
faça isso, pelo amor de Deus.
--
Aguarde e verá.
--
Nenhum tribunal irá curar mágoas.
-- Mas
as compensará com a vergonha que sentirão.
-- Por
tudo que lhe é mais sagrado, livre-se da vingança de um desejo impossível.
-- Não
tem estatura moral para dizer o que devo fazer.
--
Pare de se martirizar. Se dê a chance de ser feliz.
--
Chama de chance resignar-se a uma trama sórdida como a que urdiram?
-- Não
existe trama alguma.
--
Isso quem decidirá é a justiça.
--
Será responsável por um mal irreparável. Marcará com escândalo sem razão de ser
a vida de um inocente e constrangerá a si mesmo no espírito dele. É o que quer?
A perspectiva
de prejudicar o filho o cala. Por um átimo permanece estuporado ante a própria
impotência para se vingar da violência sofrida e lutar pela criança. Mas a dor
não lhe dá paz e exige que imponha tormento similar à fonte do seu sofrimento.
-- Não
posso poupá-lo de conhecer a crueza da vida e dane-se o outro. Não foi isso que
sempre me recomendou?
--
Basta, Valentin.
-- Não
acha que tenho nas mãos um excelente enredo de um folhetim?
-- Irá
se jogar nos braços das trevas.
-- A
cada semana uma revelação picante e todos ávidos de saber mais.
-- Tão
logo caia em si, se arrependerá amargamente.
-- Será
um sucesso sem precedentes.
-- Não
se maltrate assim. Sua alma é gentil.
-- Por
que então me destruiu? -- ele grita.
--
Entenda de uma vez por todas: esta criança é de Theodoro e jamais, nunca, em tempo
algum, eu lhe faria mal.
Nasce em
Valentin a dúvida de que Catarina esteja falando a verdade, de que o plano
tenha sido maquinado somente por Theodoro. A dúvida o fragiliza de vez. Sai
antes que desabe em prantos, que implore amor. Na escada, esbarra com Josefa: sofrimento
e surpresa se miram, até que cada um segue seu rumo. A criada penetra o quarto
e encontra a patroa de pé, apoiada numa parede e o rosto marcado pela dor.
-- D.
Catarina!
--
Mande chamar a médica. Minha hora chegou.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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