KOCH-GRÜNBERG
Dia
quente de céu azul. Valentin chega com a tripulação a uma aldeia. O espaço é
amplo, circundado por mata de folhagens luzidias. Uma tenda preta se alinha com
as fachadas de uma choça e de uma maloca de onde sai uma índia anciã. Ao
vê-los, grita palavras repetidas.
-- O
que ela diz?
-- Tá
assustada com o senhor e chama por alguém.
--
Acalme a mulher e pergunte de quem é aquela tenda.
Wenceslau
se adianta e, na Língua Geral, fala que o branco é amigo e procura um viajante.
A mulher continua a repetir as palavras.
O procurado
surge na porta da choça e observa o grupo. Estatura mediana, magro, tem trinta
e dois anos. Usa a camisa para fora da calça e um sapato raso sem cadarço,
feito de tiras de couro. Os cabelos e os olhos são escuros, a pele está
bronzeada pelo sol e a barba crescida. Com ar reservado caminha em direção dos
visitantes. Teme que sejam seringueiros em busca de nativos para trabalhar.
Valentin se adianta.
--
Theodor Koch-Grünberg?
--
Sim, responde.
--
Valentin Lopes de Santarém. Sou repórter fotográfico e trago para o senhor uma
carta de apresentação de Andreas Schaeffer do Museu Goeldi.
A
informação faz Grünberg mudar o foco da sua apreensão de seringueiros para globetrotters. Contratados por editoras
afoitas em aferir lucro com enredos aventureiros, esses viajantes do mundo
tendem a relatar a realidade de povos de terras distantes sem a veracidade que
deve imperar até no conhecimento popular. Espera que o Museu Goeldi não tenha
caído no conto de um deles e o enviado de presente.
-- Uma
longa viagem de Belém até aqui, diz com um sotaque carregado.
--
Necessária, depois de ter ouvido falar tão bem do senhor.
--
Andreas Schaeffer é um homem generoso. Esta é a avó da tribo.
Grünberg
faz as apresentações e traduz a fala da anciã, que diz do seu medo de que os
recém-chegados fossem gente ruim. Avisa que, ao cair da tarde, os homens
voltarão da mata e as mulheres do roçado, com as crianças. Depois se põe a
conversar com os tapuios. Grünberg chama Valentin para acompanhá-lo. No
trajeto, comenta sobre a sorte de tê-lo encontrado porque já era para ter ido
embora da aldeia.
--
Aguardo Schmidt, meu assistente. Foi buscar suprimentos em São Felipe.
-- Na
boca do Içana com o Negro.
--
Passou por ali?
--
Pretendia. Estive com George Hübner em Manaus e ele me disse que lá era a sua
base. Mas Ricardo Cluny me deu seu paradeiro. Viajamos juntos até São Gabriel.
--
Bons ventos sopraram em seu caminho.
-- E mandaram
saudações.
--
Muito obrigado. Veio pelo Uaupês?
-- Sim
e perguntei pelo senhor por onde parei.
-- As
notícias correm por aqui. Por favor, queira entrar.
Sustentada
a espeques e coberta por espessas folhagens, as vertentes da choça tocam o
chão. Valentin observa o espaço transformado em um gabinete de trabalho com
apetrechos da expedição. Entrega a carta de Schaeffer e se senta numa cadeira
dobradiça, enquanto Grünberg lê a correspondência, sentado em outra. O
pesquisador constata a ausência de referências sobre a qualificação etnográfica
do visitante, mas gosta dos atributos pessoais apresentados pelo secretário do
Museu Goeldi: “um sujeito de temperamento fraterno, dotado de conhecimentos
literários sobre a Amazônia e cujas reflexões revelaram habilidades para
coletar e transmitir adequadamente informações de cunho científico”. O receio
de estar diante de um globe-trotter diminui.
--
Busca conhecer tribos intocadas?
--
Fotografar e escrever um texto breve para situar o leitor.
--
Será um exercício de síntese. Há muito para dizer.
--
Imagino que sim. Mas meus editores preferem imagens a palavras.
--
Devem alegar que trabalham para divertir o público.
--
Conhece a pressão?
-- E
bem! Mas desde que não sejam fantasiosas, as publicações populares são
importantes. Na adolescência, fui despertado para as expedições por uma delas:
Globus. É ainda publicada. Conhece?
--
Sim. Escrevo para uma parecida, a Gaia.
--
Sei. Diga-me: tem obrigação ou interesse de coletar artefatos?
--
Não, e o senhor?
-- Tenho.
Como fala o meu patrocinador, devo pôr minha ambição nesse alvo. Infelizmente
pesquisas não atraem visitantes para os museus, apenas belos artefatos.
-- Tem
sido bem-sucedido?
--
Tento ser. Sem êxito, sem estudo de campo. Pesquiso a linguagem indígena.
--
Schaeffer comentou. Disse que esteve no Xingu.
-- De
1898 a 1900. Segui da nascente, em Mato Grosso, até a desembocadura na foz do
Amazonas, no Pará.
-- Uma
longa travessia.
--
Inimaginável até para a mais fértil imaginação. Do bom ao ruim, houve de tudo.
-- Posso
ter uma ideia pelo que vivi por aqui.
--
Espero que o resultado final seja tão positivo como foi o meu. Abriu-me novas
perspectivas de carreira, tanto que estou de volta às matas brasileiras.
-- Espero,
diz Valentin apenas para ser cortês e dá asas a sua curiosidade: -- Deve ser
difícil estudar um idioma que não possui escrita alfabética.
--
Disse bem, porque muitos possuem o grafismo e desenhos que são um tipo de
linguagem. Porém a ausência da escrita exige um tempo maior de aprendizagem
para poder se grafar e significar corretamente.
--
Imagino. Uma palavra geralmente tem mais de um sentido.
--
Aspecto essencial do meu estudo. Procuro identificar semelhanças e distinções
culturais entre as tribos e, num futuro, estabelecer relações com as de outros
povos.
-- Uma
bela proposta.
--
Ambiciosa também, reconheço. Porém, necessária para se evitar generalizações
evolucionistas ou de caráter classificatório acerca do valor das raças.
-- Que
não nos levarão a ser uma humanidade melhor.
-- Exato
e impõe o combate dessas crenças de modo enfático.
--
Terá muitos desafios pela frente.
--
Numa corrida contra o tempo. A Língua Geral suplanta as antigas com uma
velocidade superior a da pesquisa. Seriam necessários muitos anos para que
pudéssemos registrar e estudar todos os idiomas falados pelos nativos
brasileiros.
--
Pressões de todos os lados.
-- E a
pior vem dos barões da borracha. Como nuvens de gafanhotos, avançam pelas matas
incendiando aldeias e arrastando os índios para os seringais assassinos. Vidas
são perdidas, culturas aniquiladas e a história da humanidade destruída. Em
troca, uma pseudocivilização pestilenta abate-se sobre os nativos
sobreviventes.
-- Não
me expressaria melhor acerca do que vi aqui e também alhures, no caso com
relação a outras raças. Os negros do Congo são mutilados quando não dão cotas
absurdas de látex para seus exploradores.
-- Li
que o governo inglês está investigando essa atrocidade.
--
Espero que seja realmente uma investigação e não uma artimanha para ampliar
seus domínios coloniais. Em vez de acabar, a barbárie se moderniza.
-- Que
sina! Mas não podemos nos desencorajar. Vivemos a última hora para salvar vidas
e documentos.
--
Infelizmente pouco posso contribuir com a minha reportagem.
--
Agradeço sua franqueza. Sua atividade de campo resultará num texto de cunho
ilustrativo e a minha terá de ser completada por um trabalho de gabinete
rigoroso. Desse modo, como podemos nos apoiar, sem prejudicar o que cada um precisa
realizar?
Valentin
percebe que desconsiderou essa questão. De fato nem pensou que seus interesses
pudessem conflitar com os de Grünberg. Apenas focou o seu lado: encontrar o
etnólogo, se integrar na expedição e cumprir suas obrigações contratuais rapidamente.
--
Estou às ordens para somar no que puder. O que precisa?
--
Objetos etnográficos e tempo para coletar dados.
--
Soube que usa fotografias.
-- Sim
e, por medida de precaução, revelo as chapas no campo.
--
Terá um tempo maior se eu cuidar dos retratos. E disponibilizo para o senhor
uma montaria e os presentes que trouxe para realizar a aproximação com os
nativos. Poderá trocá-los pelos artefatos do seu interesse.
--
Boas ofertas. Da minha parte, ponho meu conhecimento a seu serviço.
--
Obrigado.
-- O
que me diz das fotografias que iremos tirar em conjunto?
--
Apreciaria se me informasse sobre aquelas que tem interesse na exclusividade.
Terão mais valor se divulgadas pela sua pesquisa que pela Gaia.
--
Esteja certo de que direi. Novidades são apreciadas pelos investidores dos
quais a continuidade da minha pesquisa depende.
-- No
que me diz respeito, terá assegurada essa continuidade.
Grünberg
se levanta e lhe estende a mão.
--
Bem-vindo. O senhor soma a expedição.
Valentin
responde ao cumprimento satisfeito com a negociação. Agrada-o aplicar os
recursos da Gaia para apoiar a criação de novos conhecimentos. Uma desforra não
planejada que lhe compensa os limites impostos pelos editores ao seu texto.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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