domingo, 8 de fevereiro de 2015

Capítulo Sessenta e Cinco

KOCH-GRÜNBERG


Dia quente de céu azul. Valentin chega com a tripulação a uma aldeia. O espaço é amplo, circundado por mata de folhagens luzidias. Uma tenda preta se alinha com as fachadas de uma choça e de uma maloca de onde sai uma índia anciã. Ao vê-los, grita palavras repetidas.
-- O que ela diz?
-- Tá assustada com o senhor e chama por alguém.
-- Acalme a mulher e pergunte de quem é aquela tenda.
Wenceslau se adianta e, na Língua Geral, fala que o branco é amigo e procura um viajante. A mulher continua a repetir as palavras.
O procurado surge na porta da choça e observa o grupo. Estatura mediana, magro, tem trinta e dois anos. Usa a camisa para fora da calça e um sapato raso sem cadarço, feito de tiras de couro. Os cabelos e os olhos são escuros, a pele está bronzeada pelo sol e a barba crescida. Com ar reservado caminha em direção dos visitantes. Teme que sejam seringueiros em busca de nativos para trabalhar. Valentin se adianta.
-- Theodor Koch-Grünberg?
-- Sim, responde.
-- Valentin Lopes de Santarém. Sou repórter fotográfico e trago para o senhor uma carta de apresentação de Andreas Schaeffer do Museu Goeldi.
A informação faz Grünberg mudar o foco da sua apreensão de seringueiros para globetrotters. Contratados por editoras afoitas em aferir lucro com enredos aventureiros, esses viajantes do mundo tendem a relatar a realidade de povos de terras distantes sem a veracidade que deve imperar até no conhecimento popular. Espera que o Museu Goeldi não tenha caído no conto de um deles e o enviado de presente.
-- Uma longa viagem de Belém até aqui, diz com um sotaque carregado.
-- Necessária, depois de ter ouvido falar tão bem do senhor.
-- Andreas Schaeffer é um homem generoso. Esta é a avó da tribo.
Grünberg faz as apresentações e traduz a fala da anciã, que diz do seu medo de que os recém-chegados fossem gente ruim. Avisa que, ao cair da tarde, os homens voltarão da mata e as mulheres do roçado, com as crianças. Depois se põe a conversar com os tapuios. Grünberg chama Valentin para acompanhá-lo. No trajeto, comenta sobre a sorte de tê-lo encontrado porque já era para ter ido embora da aldeia.
-- Aguardo Schmidt, meu assistente. Foi buscar suprimentos em São Felipe.
-- Na boca do Içana com o Negro.
-- Passou por ali?
-- Pretendia. Estive com George Hübner em Manaus e ele me disse que lá era a sua base. Mas Ricardo Cluny me deu seu paradeiro. Viajamos juntos até São Gabriel.
-- Bons ventos sopraram em seu caminho.
-- E mandaram saudações.
-- Muito obrigado. Veio pelo Uaupês?
-- Sim e perguntei pelo senhor por onde parei.
-- As notícias correm por aqui. Por favor, queira entrar.
Sustentada a espeques e coberta por espessas folhagens, as vertentes da choça tocam o chão. Valentin observa o espaço transformado em um gabinete de trabalho com apetrechos da expedição. Entrega a carta de Schaeffer e se senta numa cadeira dobradiça, enquanto Grünberg lê a correspondência, sentado em outra. O pesquisador constata a ausência de referências sobre a qualificação etnográfica do visitante, mas gosta dos atributos pessoais apresentados pelo secretário do Museu Goeldi: “um sujeito de temperamento fraterno, dotado de conhecimentos literários sobre a Amazônia e cujas reflexões revelaram habilidades para coletar e transmitir adequadamente informações de cunho científico”. O receio de estar diante de um globe-trotter diminui. 
-- Busca conhecer tribos intocadas?
-- Fotografar e escrever um texto breve para situar o leitor.
-- Será um exercício de síntese. Há muito para dizer.
-- Imagino que sim. Mas meus editores preferem imagens a palavras.
-- Devem alegar que trabalham para divertir o público.
-- Conhece a pressão?
-- E bem! Mas desde que não sejam fantasiosas, as publicações populares são importantes. Na adolescência, fui despertado para as expedições por uma delas: Globus. É ainda publicada. Conhece?
-- Sim. Escrevo para uma parecida, a Gaia.
-- Sei. Diga-me: tem obrigação ou interesse de coletar artefatos?
-- Não, e o senhor?
-- Tenho. Como fala o meu patrocinador, devo pôr minha ambição nesse alvo. Infelizmente pesquisas não atraem visitantes para os museus, apenas belos artefatos.
-- Tem sido bem-sucedido?
-- Tento ser. Sem êxito, sem estudo de campo. Pesquiso a linguagem indígena. 
-- Schaeffer comentou. Disse que esteve no Xingu.
-- De 1898 a 1900. Segui da nascente, em Mato Grosso, até a desembocadura na foz do Amazonas, no Pará.
-- Uma longa travessia.
-- Inimaginável até para a mais fértil imaginação. Do bom ao ruim, houve de tudo.
-- Posso ter uma ideia pelo que vivi por aqui.
-- Espero que o resultado final seja tão positivo como foi o meu. Abriu-me novas perspectivas de carreira, tanto que estou de volta às matas brasileiras.
-- Espero, diz Valentin apenas para ser cortês e dá asas a sua curiosidade: -- Deve ser difícil estudar um idioma que não possui escrita alfabética. 
-- Disse bem, porque muitos possuem o grafismo e desenhos que são um tipo de linguagem. Porém a ausência da escrita exige um tempo maior de aprendizagem para poder se grafar e significar corretamente.
-- Imagino. Uma palavra geralmente tem mais de um sentido.
-- Aspecto essencial do meu estudo. Procuro identificar semelhanças e distinções culturais entre as tribos e, num futuro, estabelecer relações com as de outros povos.
-- Uma bela proposta.
-- Ambiciosa também, reconheço. Porém, necessária para se evitar generalizações evolucionistas ou de caráter classificatório acerca do valor das raças.
-- Que não nos levarão a ser uma humanidade melhor.
-- Exato e impõe o combate dessas crenças de modo enfático.
-- Terá muitos desafios pela frente.
-- Numa corrida contra o tempo. A Língua Geral suplanta as antigas com uma velocidade superior a da pesquisa. Seriam necessários muitos anos para que pudéssemos registrar e estudar todos os idiomas falados pelos nativos brasileiros.
-- Pressões de todos os lados.
-- E a pior vem dos barões da borracha. Como nuvens de gafanhotos, avançam pelas matas incendiando aldeias e arrastando os índios para os seringais assassinos. Vidas são perdidas, culturas aniquiladas e a história da humanidade destruída. Em troca, uma pseudocivilização pestilenta abate-se sobre os nativos sobreviventes.
-- Não me expressaria melhor acerca do que vi aqui e também alhures, no caso com relação a outras raças. Os negros do Congo são mutilados quando não dão cotas absurdas de látex para seus exploradores.
-- Li que o governo inglês está investigando essa atrocidade.
-- Espero que seja realmente uma investigação e não uma artimanha para ampliar seus domínios coloniais. Em vez de acabar, a barbárie se moderniza.
-- Que sina! Mas não podemos nos desencorajar. Vivemos a última hora para salvar vidas e documentos.
-- Infelizmente pouco posso contribuir com a minha reportagem.
-- Agradeço sua franqueza. Sua atividade de campo resultará num texto de cunho ilustrativo e a minha terá de ser completada por um trabalho de gabinete rigoroso. Desse modo, como podemos nos apoiar, sem prejudicar o que cada um precisa realizar?
Valentin percebe que desconsiderou essa questão. De fato nem pensou que seus interesses pudessem conflitar com os de Grünberg. Apenas focou o seu lado: encontrar o etnólogo, se integrar na expedição e cumprir suas obrigações contratuais rapidamente.
-- Estou às ordens para somar no que puder. O que precisa?
-- Objetos etnográficos e tempo para coletar dados.
-- Soube que usa fotografias.
-- Sim e, por medida de precaução, revelo as chapas no campo.
-- Terá um tempo maior se eu cuidar dos retratos. E disponibilizo para o senhor uma montaria e os presentes que trouxe para realizar a aproximação com os nativos. Poderá trocá-los pelos artefatos do seu interesse.
-- Boas ofertas. Da minha parte, ponho meu conhecimento a seu serviço.
-- Obrigado. 
-- O que me diz das fotografias que iremos tirar em conjunto?
-- Apreciaria se me informasse sobre aquelas que tem interesse na exclusividade. Terão mais valor se divulgadas pela sua pesquisa que pela Gaia.
-- Esteja certo de que direi. Novidades são apreciadas pelos investidores dos quais a continuidade da minha pesquisa depende.
-- No que me diz respeito, terá assegurada essa continuidade.
Grünberg se levanta e lhe estende a mão.
-- Bem-vindo. O senhor soma a expedição.
Valentin responde ao cumprimento satisfeito com a negociação. Agrada-o aplicar os recursos da Gaia para apoiar a criação de novos conhecimentos. Uma desforra não planejada que lhe compensa os limites impostos pelos editores ao seu texto.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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