NÃO! NÃO PODEM SER TÃO TORPES ASSIM
Novembro
começa. Theodoro sai cedo e chega tarde ao solar, após desincumbir-se da agenda
tensa do dia. É um dos homens do governo federal escalado para conter a
oposição que explora a insatisfação popular desencadeada pela recente aprovação
da lei de vacinação obrigatória contra a varíola.
Catarina
também vive um período difícil. A insegurança despertada pela presença de
Valentin na cidade intensifica as sensações desconfortáveis do corpo grávido,
enquanto a hora do parto, cada vez mais próxima, amplia receios relacionados às
feições do bebê e aos riscos de dar à luz.
Valentin,
por sua vez, permanece no bordel, tanto porque não quis ir embora, como também porque
ninguém o obrigou a partir. Ao contrário. A proprietária da Casa Rosada lhe
concedeu condições melhores de estada. Franqueou-lhe o acesso ao cômodo
contíguo ao aposento ocupado por ele, além das tintas e pinceis ali deixados pelo
pintor que decorava o teto e interrompeu o trabalho por razões de doença. Desde
então, Valentin vive um mundo à parte, mergulhado na pintura. O lá fora se
resume ao que Olhos Orientais lhe conta e ao que ele vê, sobretudo da janela desse
ateliê que se abre para um pátio. No mais, farta-se de ópio, vinho e sexo.
Mas
nem tudo tem sido prazer. Tomado por tormentos vorazes, descarrega-os na
pintura. Ao longo da desenfreada vazão emocional, borrifa tintas das cerdas do
pincel para a parede ou as desliza de modo veloz, intenso e inquieto. Nada na
potência descarregada informa paisagens e objetos, exceto manchas e linhas em
trajetórias contínuas e descontínuas que se cruzam, afastam-se e se retomam em
sobreposições e com proporções que se inflam, deformam, afinam e subitamente
cessam. Olhos Orientais não entende essas imagens. Mas para Valentin ali estão
ocasos vis, luas cruéis, auroras capciosas e sóis egoístas que pairam sobre
mares ímpios, rios ardilosos, terras caídas e cipós estranguladores. Explosões
de cores e formas que expressam a revolta de não conseguir lidar com as
disposições de sua natureza rumo à superação das barreiras que os separam da
mais plena realização.
Sujo
de tinta, descalço, cabelos revoltos, mais uma vez procura transformar em arte
seus conflitos emocionais. Do pátio interno, chega-lhe o som da algazarra feita
pelas damas do bordel ao redor de um adolescente. Metido num terno apertado, o garoto
tenta recuperar seu chapéu lançado por uma a outra. Irritado com o som da
traquinagem, Valentin pega uma cadeira e se dirige à janela. Olhos Orientais o detém.
-- Não
faça isso.
Mobilizado
pelos braços femininos, percebe a própria agressividade e grita pedindo
silêncio. O grupo o mira, com o garoto esbaforido afrouxando seu engomado
colarinho. Uma dama ainda o arrelia, mandando lhe beijos. Uma senhora surge,
ralha com as damas em um português misturado ao espanhol, pega o chapéu e a mão
do menino e, com ambos, sai dali. Valentin se afasta, desce a escada e se joga
na cama. Adormece.
Acorda
antes do amanhecer e se põe na banheira, ainda entorpecido. Vem-lhe à mente a
figura do garoto visto da janela e, em seguida, a do mensageiro que, meses
atrás, trouxe a convocação da viagem inesperada de Theodoro para Petrópolis.
Abre os olhos, convicto de que os dois são a mesma pessoa e entende que o amigo
encenou a viagem para se ausentar do solar e se deleitar na Casa Rosada durante
os feriados de Carnaval. Sorri em lábios debruados de deboche, porém uma
intuição desmancha o sorriso e provoca o assombro.
--
Não!
Gira a
cabeça com a testa apoiada na borda da banheira, onde bate a mão, recusando a
crer que foi usado por Theodoro para realizar o que em anos de casamento não
deu conta de fazer: engravidar Catarina. Delírio ou lucidez, essa ideia lhe
esclarece o inesperado resgate da amizade e o convite para fotografar a reforma
urbana que outros já fotografavam. Evoca desejos insensíveis e desmedidos. O sangue
frio de um homem, que para ser pai, passa por cima do próprio sentimento de posse,
do ciúme, e entrega a mulher para ser possuída pelo enamorado de quem a tomou. As
atitudes de Catarina também se tornam compreensíveis: as promessas sensuais do
seu sorriso-olhar, as provocações durante o banho de mar, a coragem para fumar
ópio, a frieza que lhe dedicou após o ardor na cama... Tudo ganha sentido.
--
Não! Não podem ser tão torpes assim.
A
mente estarrecida flui em novas percepções que evidenciam o motivo da fatura da
estada ali não ter lhe sido emitida uma única vez pela proprietária da Casa
Rosada.
--
Está mancomunada com Theodoro para me tirar de circulação.
Desnorteado,
como um peru bêbado antes da degola da ceia de natal, sai da banheira. Alcança
o quarto com a cabeça a pesar e o peito amargurado. Veste-se, arruma as suas
coisas, pega a bagagem e ganha a rua sem ser visto por ninguém. Custa a achar
um coche, mas o condutor não quer levá-lo para o centro da cidade.
-- Não
vai dar não, seu doutor. Lá tá em pé de guerra.
--
Leve-me até aonde puder.
-- A
corrida hoje tá mais cara.
--
Vamos logo, homem. Tire-me daqui.
O cocheiro
o deixa em uma pensão nas imediações do Largo do Machado, onde se tranca sem
saber o que fazer. De repente, sai rumo a São Clemente. Caminha sem conseguir
um carro. Por onde passa, há guardas
em sentinela, trincheiras abertas, lampiões depredados, paralelepípedos arrancados e outros vestígios de
violência que lhe ecoam aquela que o martiriza
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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