EM BELÉM
Belém do Pará, 25.05.1904.
Escrevo em uma pequena casa amarela, para
onde me mudei há quase dois meses. Atraiu-me à primeira vista e me fez desejá-la
quando entrei na sala e vi o bucólico emoldurado pelas janelas azuis. Schaeffer
intermediou o contato com o proprietário do imóvel, que se dispôs a alugá-lo
para mim.
Num arranjo de gente hospitaleira, a casa
erguida em uma rocinha, como são chamados os sítios na região, foi mobiliada
com o essencial. Preferi assim. Quis conhecer o mínimo que preciso para
sobreviver. Comprei rede de dormir e outra só para balançar. E balancei
bastante na companhia de uma preguiça dependurada lá fora no caule de uma
árvore. Afeiçoei-me ao seu olhar infantil e o seu gemido tristonho dialogou
muitas vezes com o meu. Para alegrar essa interlocução, havia o canto dos
passarinhos. Meu espírito agradeceu tão suave prazer.
Li também bastante. Schaeffer me emprestou
livros escritos por naturalistas que percorreram o rio Negro e o Amazonas entre
os anos de 1781 a 1852. A descrição do cenário humano me interessou mais que a
do cenário natural, apesar de ter chamado a minha atenção a visão acerca dos
efeitos da floresta sobre o peregrino, que se sente encantado com a exuberância
e, ao mesmo tempo, inquieto com a solidão da selva. A descrição do brasileiro
como um povo cordial, apreciador da música e de festas está sempre presente nos
relatos. E há apreensões comuns nem sempre boas com relação à falta de capricho
com o cultivo das plantações.
Um dos viajantes narrou sobre a nação
indígena Manao. Ferrenhos combatentes da ocupação territorial pelos portugueses,
essa nação mantinha relações comerciais com os espanhóis e soldados brasileiros
desertores, para quem capturavam índios em troca de armas e outros produtos de
interesse. Seu líder era Ajuricaba. Destemido, dominou o rio Negro, com a
bandeira dos holandeses arvorada nas canoas da sua flotilha. Certa vez atacou
uma aldeia e, no embate, matou o paxé, um afeiçoado da oficialidade do
Grão-Pará. Houve intensa represália oficial e ele foi preso. Durante a
travessia para Belém, jogou-se nas águas, acorrentado, numa tentativa de fuga.
Sua história quebra as lentes complacentes
que infantilizam os silvícolas e as também equivocadas com relação à evolução
do homo sapiens. Revela um perfil humano similar ao dos piratas ou corsários
dos mares, com a diferença de que Ajuricaba era o governante do seu próprio
corso e o defendeu ao longo dos rios e nas matas. Assaltou tribos com o intuito
de comercializar a vida humana, em vez de uni-las para juntos lutarem contra os
colonizadores. Não, não posso ser tão taxativo. Vai que tentou e, malsucedido,
concretizou a máxima “ou está comigo ou contra mim”.
Conversei com Schaeffer sobre a escravização
dos índios pelos próprios nativos e depois a realizada pelos brancos. Não soube
me dizer nada além do predomínio da lei natural sobre a artificial. Criada pelo
Marques de Pombal, essa lei acenava aos índios brasileiros direitos iguais aos
demais vassalos de Portugal. A barbárie dos brancos predominou ora em luta para
capturar escravos, ora para vingar ataques. A escravidão perdura em novas
formas de cativeiro por esses sertões afora.
Fiz da devolução de cada livro lido uma
oportunidade de visitar Schaeffer e de apresentar-lhe e a sua família minhas
estimas e reconhecimento pelo fraterno apoio. Voltei a pintar aqui e os
presenteei com uma marinha. Gostam de embarcações.
Estive outras vezes também com Dr. Matias.
Providenciou quininos e piretros para minha viagem e acompanhou minha
recuperação física. Dei-lhe uma tela do Forte do Presépio, que fica à beira do
Guamã, um rio de Belém. Ele aprecia a vista de lá. Sensibilizou-se com a
lembrança e me encorajou abraçar a pintura de vez.
Ao longo dessa minha temporada, fui cuidado
por Dona Maninha, mulher forte no corpo, doce na alma e desinibida no espírito.
Filha de português e de índia, ela viveu com freiras até se casar. Achou-me
magro: -- vou cevar o senhor para aguentar a fadiga puxada da viagem acima,
disse-me logo que começou a trabalhar aqui. E me cevou. Engordei alguns quilos.
Mais alguns dias de convivência já falava de rezas que desembaraçavam
tristezas. Pedi que rezasse por mim. Acendeu velas e me benzeu. Deu para me
aconselhar também: -- coração solto não descansa porque não tem pouso. Casa com
moça de bem que o alívio vem. Talvez ela tenha razão, mas os pensamentos
continuam na estrela de grandeza maior que daqui não consigo avistar.
Para Dona Maninha, pintei Nossa Senhora de
Nazaré. Apreciou a tela, porém sentiu falta da cobra-grande que diz ter sido
esmagada pela santa com a força da sua fé. Prontifiquei-me a corrigir o erro.
Respondeu-me que não carecia. Pairava a dúvida de que a cobra renascera
avariada, fugira para dentro da terra de Belém e lá desmaiou. Mas, se acordar,
como aconteceu certa vez, a cidade tremerá e as águas grandes engolirão o povo.
Os fiéis rezam sempre em outubro para a Santa, numa procissão que percorre toda
a cidade a fim de evitar esse intento e outros mais. Embora absolvido do meu
erro, decidi remediá-lo. Pintei o que bem conhecia: Dona Maninha farta em um
vestido branco, sentada com os braços arredondados sobre o colo e o cabelo
negro lustroso escorrido de lado em trança grossa, pontilhada com flores coloridas.
Esfumacei todo o espaço ao redor com tons de verde. Dona Maninha deslumbrou,
acanhou-se e comentou: -- poliu demais o atual. Mas no passado fui formosa
assim. Feliz, seguiu para casa levando a eternidade de si.
Conheci ervas no mercado, ouvi lendas e
casos, fotografei paisagens, pessoas e folguedos e, a despeito dos perrengues
da alma, das saudades sobre as quais nem ouso falar e da preguiça em viajar, é
hora de partir, de deixar a proteção dessa pequena casa amarela e das amizades
feitas em Santa Maria de Belém do Grão-Pará.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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