DO VENTRE ESTÉRIL
Lá fora, a lua despede-se da fase
crescente e, a cada noite, surge mais cheia e mais cedo no céu. Acontece então
o indesejável: a menstruação desce como uma enxurrada que inunda Catarina com a
sensação horrível de ser uma mulher estéril. Vergada pela decepção, recolhe-se
sem comparecer à mesa do jantar. Nem os receios com as lições de Levana a
impedem de expressar sua raiva contra a natureza, que lhe nega a maternidade
enquanto enche de filhos mulheres pobres. Como
pode ser possível?
Na manhã seguinte, o otimismo já
veste sua determinação em se livrar do mal que a impede de engravidar. No coche
conduzido por Adias, tem à mão um recorte de jornal, onde está escrito “Thereza
Cruz – Médica Parteira – Diplomada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
– Rua Riachuelo, 241”.
Thereza, próxima dos quarenta anos,
tem um ar tranquilo. Seu diploma de médica se exibe emoldurado em uma parede do
consultório. O ambiente lembra o de uma moradia, decorado com espelho de
cristal sobre aparador, poltronas com almofadas, vaso de flores sobre a
escrivaninha e bibelôs nas prateleiras entre livros. Um biombo separa o espaço
do local de exames. Catarina sente-se à vontade com a médica.
-- Eu nunca fico doente, não sofro
de melancolia e nem maldigo a vida. Estou sempre bem disposta. Minhas
enfermidades são regulares e abundantes. Talvez esse seja o problema. Nem
benzeção deu conta. Meu ventre não quer conceber.
-- Disse-me que tem um médico. O
que ele pensa a respeito?
-- Nada de conclusivo, pelo menos
para mim. Recomenda-me poupar o cérebro, boa alimentação e banho de mar. Mas
meu marido resiste ao banho. Não que seja conservador, é apenas cuidadoso.
Precisa ser discreto por causa da profissão.
-- Compreendo.
-- Meu pai também é médico e me
receitou remédios de plantas que ele mesmo faz. Tomei todos e nada funcionou.
Quero muito, muito mesmo, ter o meu bebê. Meu marido precisa ser pai. Todo
homem precisa, não é mesmo?
Thereza sorri.
-- As mulheres da sua família
tiveram filhos?
-- Mamãe teve três. Eu e meus dois
irmãos menores. Hoje homens feitos. Moram em São Paulo. E minha tia-madrinha
teve quatro. O primeiro morreu adolescente. Varíola. Já os outros morreram
anjinhos, sem ninguém saber a razão.
-- O que espera de mim se a senhora
tem um médico e é filha de outro?
-- Explicação. Além de preparada, a
senhora é também mulher. Pode entender o que eu falo e responder as minhas
dúvidas. Impossível conversar abertamente com meu médico. E papai, apesar de
querer me ajudar, põe panos quentes e diz que a natureza sabe o que faz. Mas eu
é que quero saber o porquê da minha natureza não responder ao que é natural.
Por favor, Doutora, fale-me com toda franqueza que puder: por que não consigo
engravidar?
-- D. Catarina, questões
importantes sobre a concepção ainda continuam sem respostas. Dos conhecimentos
à disposição, alguns precisam ser considerados. Um deles, e fundamental, é que
a gravidez não depende só da mulher. Nunca lhe ocorreu que talvez o problema
possa ser do seu marido?
Catarina se sente como em queda
livre para as profundezas escuras do submundo. Não sabe como lutar contra essa
realidade.
-- Oh, não! Não pode ser.
-- Melhor seu médico conversar com
seu esposo sobre esse ponto.
O conselho amplia o desconforto de
Catarina. A possibilidade de Theodoro ser o problema já é horrível por si só,
para ainda ter de expor o problema à empáfia de Dr. Eugênio. Só ela pode falar
com Theo. E ainda assim lhe falta coragem para tanto.
-- Meu marido é um homem vigoroso e vem de uma
família de homens saudáveis. O irmão dele já vai para o terceiro filho.
-- Ainda assim, a possibilidade
precisa ser considerada.
-- Mesmo que... os fluidos sejam
abundantes?
-- D. Catarina, como lhe disse,
conhecimentos sobre a concepção ainda precisam ser descobertos. Dê mais tempo.
-- Estou casada há quase nove anos.
-- A natureza é misteriosa. Conheço
uma senhora que engravidou quase depois de quinze anos de casada.
-- Há esperanças, então.
-- Sim, sobretudo em se tratando de
uma pessoa saudável como parece ser. Porém, insisto que seu marido converse
sobre esse particular com vosso médico.
-- Não há um único modo para saber
se o problema é meu?
-- Há e não recomendo, se a senhora
me entende.
A ideia de uma aventura
extraconjugal eclode em Catarina. Um tremor corre seu corpo, enquanto possibilidades
pululam em sua mente: de se entregar a Valentin, de vir a ter uma criança
parecida com os sobrinhos, do segredo que carregará para sempre e da
necessidade de retardar a participação do nascimento para que o verdadeiro pai
nunca venha a desconfiar. Não sabe se terá coragem para tanto. Melancólica, retorna para casa e se recolhe no
quarto. Ali se surpreende com a chegada do marido que a presenteia com delicado
colar.
-- É lindo.
-- Ainda longe do que quero lhe
dar.
Abraça-o.
-- E se eu não conseguir ser mãe?
-- Não diga isso.
-- O que faremos se não pudermos
ser pais?
-- Calma.
-- E se o problema não for...
Theodoro a cala com um beijo
ardente e depois sussurra, entre carícias: -- você é minha, minha. Catarina
acha que o marido cogita a possibilidade de ser ele a causa que os impede de
ter um bebê: como deve sofrer.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário