POR QUE EU?
Catarina escreve em seu
diário, recostada nos travesseiros. Lê o texto e não gosta. Acha que usou de
tantos subterfúgios para expressar suas expectativas de como aproveitar a
ausência inesperada do marido que o resultado lhe parece uma grande reticência:
um autorretrato vago, sem as cores
nítidas da minha personalidade. Nada
disso. Fora, fora. Arranca a página escrita. Como o esquecimento, o porvir terá de ser apagado também de suas
páginas, meu querido. Abraça o travesseiro de Theodoro e a perspectiva de
traí-lo intensifica o medo de ser estéril. Terá
sido tudo em vão. Nossa senhora, anjo Gabriel, me deem um sinal. Deixa o
leito, o quarto.
Logo mais, Valentin ouve
o som do piano ao longe: Toca para me
avisar que está acordada. O som atiça desejos, abranda dilemas e o faz
deixar a casa de hóspedes. Atravessa o jardim. Chega ao terraço da ala do
cotidiano do solar. Busca abrir a porta da sala de jantar. Está fechada. Segue
para a biblioteca. Gira a maçaneta e a porta se abre. Entra. Uma tênue
claridade vaza da sala de estar. Na penumbra, dirige-se para lá. À porta,
empaca, em muda e excitante contemplação.
Catarina vê a sua imagem
refletida no espelho. Antes de se sentar ao piano, destrancou a porta da
biblioteca e acendeu apenas dois abajures. Aprovou o efeito da iluminação:
branda para acalmar o pudor de se mostrar em trajes íntimos e o suficiente para
iluminar o caminho até ela. Então pediu: estrela,
estrela minha, me dê um sinal. Se for para eu me entregar, faça Valentin chegar.
A presença dele ali é a confirmação de que está sob a monção da graça divina:
poderá conceber sem pecado e para uma causa maior. Sim, porque sua criança
nascerá em berço especial, será filho ou filha de um futuro presidente da
República e, no futuro, o presidente ou a esposa de mais outro chefe da nação e
assim por diante, em uma sucessão de feitos, que assegurarão a continuidade do
poder da família.
-- Aguardava você.
-- Não conseguiu dormir?
-- Não. Talvez depois.
-- Do quê, Catarina?
-- Sente-se aqui, do meu
lado.
Sem esse chamado, talvez
Valentin permanecesse parado na sua contemplação, vagando nos limites do
território de Catarina e entregue aos devaneios de que poderia estar no lugar
ocupado por Theodoro. Estimulado por tanto, senta-se na banqueta. A proximidade
dos braços nus, dos cabelos soltos, do alvo colo, do delta oculto ao alcance
das incursões mais ardentes, tudo o excita e o retém ali.
-- Por que me esperava?
-- Para lhe dizer que
iremos ao mar amanhã.
-- Por que eu, Catarina?
-- Quem mais poderia me
conceder tamanha graça?
-- Theodoro não gostará
nada disso.
-- Abra o seu coração ao
meu pedido.
-- Já abri, mas não sabe
o que me pede.
-- Saberei com você.
Vamos sair às quatro e meia da manhã. Por segurança, Abdias nos levará. Agora
vá, durma bem.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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