REGISTROS DE VIAGEM
Belém do Pará, 24 de março de 1904.
Há mais de uma semana, hiberno no quarto do
hotel, com a sensação de ainda estar no mar. Confesso que temi a morte, a bordo
do Alagoas. Morrer com a percepção de ser um inadequado da espécie é uma
perspectiva tão desabonadora que me ata à vida. No entanto, sinto-me sem forças
para prosseguir.
Ao longo desses dias, inteirei-me da chuva
miúda e diária de Belém. Da janela comecei a desvendar a cidade: as cumeeiras
dos telhados, as torres altas das igrejas, as frondosas mangueiras das ruas
largas, o céu nublado em prata. Desse meu solitário posto de observação, Belém
se mostra caiada em branco molhado pelo céu e banhada pelo rio quase mar, sem
morros a modular a paisagem. É amplidão de terra, água e céu. Majestosa até
para meus olhos descorçoados de se iludir com o belo. No aconchego do quarto me
acostumo com a nova realidade na qual devo me mover.
Enviei um recado para o senhor Andreas
Schaeffer, secretário do Dr. Emílio Goeldi. Preocupado com as notícias da minha
indisposição, veio me visitar e trouxe o médico Carlos Matias. Pessoas
gentilíssimas. Dr. Matias acha que a gripe agravou a mareação, ou vice-versa;
fez várias recomendações para eu me recuperar e como devo me cuidar na
floresta. Evite o álcool, disse-me. Nem precisava. Já plaino suspenso em mim
mesmo. Alcancei o entorpecimento em plena abstemia imposta pelo mal-estar.
Valer-me de qualquer remédio para abrandar minhas tristezas é correr o risco da
minha mente desatar de vez do meu corpo. Não quero pagar para ver.
Para a expedição à Amazônia, Dr. Matias
receitou doses diárias de quinino e aconselhou o uso de bota o tempo todo,
camisa fechada para dentro da calça, meia sobre a barra da calça, para vedar o
corpo e impedir os piuns, durante o dia, e os carapanãs, durante a noite.
Recomendou-me dormir sempre protegido por um mosquiteiro e acender piretros
para afugentar os voadores da febre amarela e malária. Disse que a fumaça
narcotiza, tonteia o carapanã, mas não o mata. Posso imaginar o delírio dessa
criatura de Deus.
O
senhor Schaeffer confirmou minha suspeita do Doutor Goeldi já ter ido para o
seminário na Europa. A surpresa foi saber que os meus telegramas chegaram e
foram respondidos. Sei lá porque não os recebi. Decidimos falar sobre as
possibilidades da minha expedição quando me sentir melhor.
Hoje me empurrei para fora do quarto. Tomei
um bonde e passeei a esmo pela cidade. Acolhi Belém. A cidade possui praças com
belos jardins, ruas amplas e arborizadas. Navios de muitas nações movimentam o
porto e barcos à vela deslizam pelos rios que contornam a cidade. Diversas
casas comerciais estrangeiras estão presentes e a população em grande parte
revela traços indígenas.
Fui ao Museu Goeldi. Tudo lá é exuberante e
grandioso: espaço, árvores, folhagens, vitórias-régias. Ali a natureza se
mostra organizada somente com o seu melhor. Um sonho aberto ao público. O nome
do Museu é um reconhecimento em vida ao seu diretor, e a instituição possui uma
história de realizações de brasileiros e suíços aqui radicados. Bem-aventurados
aqueles que se dedicam a um trabalho que dá sentido a sua vida e ainda
contribuem para engrandecer a experiência humana.
Novamente eu e as minhas questões. Mas, dessa
vez, recuso-me a ter expectativas com relação ao meu trabalho. Meus editores
terão o que querem sem um pensamento destoante do oficial. Chega de ser tratado
como um sujeito que, no meio de uma missa, arranca a roupa e nu quer consagrar
o sangue do desatino que se derrama sobre nós.
Com Schaeffer, analisei dois roteiros de
viagem. No primeiro, sigo pelo rio Purus rumo ao sul para me integrar a uma
expedição do Museu que está em algum ponto dessa região. No segundo, viajo pelo
Rio Negro em direção ao noroeste da Amazônia com a expectativa de me encontrar
com Theodor Koch-Grünberg, um etnólogo alemão que estuda indígenas não
aculturados. Outro Theodoro em minha vida. Schaeffer o conheceu em sua passagem
por Belém do Pará, no ano passado. Esta opção me atrai em razão do estudo do
etnólogo ser o objeto da minha reportagem, ainda que possa haver desencontros e
eu acabe fazendo o percurso sozinho. Estou sem pressa para decidir e partir. Só
de pensar em embarcar, sinto calafrios.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
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