DESPEDIDA
Rio de Janeiro, 29 de
fevereiro de 1904.
Estimada
Catarina,
Parto
logo mais e já me embarga a saudades da cidade e dos cantares apaixonados de
suas noites enfeitiçantes. Rios correm para o mar. Faço o trajeto inverso, na
vertigem provocada pelo refluxo das correntezas que, sem apelação, me empurram
para novas coordenadas. Carente de razão maior, exceto prosseguir, parto. Mas
não é do futuro que quero falar. Abro meu coração para lhe dizer do presente
que finda e levo comigo.
Aqui
fui surpreendido pelo mais doce, gratificante e inesperado acaso. Mágico,
encantou-me; eloquente, me fez desejar mudar o rumo da minha vida.
Imprevisível, me deixou a ver navios. Ainda que eu recuse aceitar a razão da
sua brevidade e me torture o vazio deixado pelo seu fim, parto ciente de que
viveria minha existência outra vez, para desfrutar novamente de tão sublime
acaso.
Com a
saudade agradecida de tanto, embarco. E lembro-a do selo que pedi para guardar.
Nada me é mais caro que esse acolhimento.
Valentin assina a carta. Em um envelope
lacrado, deixa sua despedida debaixo da flanela que cobre o teclado do piano de
Catarina. Fecha o tampo. Parte para o cais, no coche conduzido por Abdias.
Theodoro não pôde acompanhá-lo.
Em seu gabinete, Bilac escreve a coluna do
dia seguinte: desde ontem as picaretas
entoam um hino jubiloso pondo abaixo as casas condenadas da Avenida Central. No
aluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, há um longo
gemido. O gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio. A
cidade colonial, imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições,
soluça o soluçar dos apodrecidos materiais que desabam. Mas o hino claro das
picaretas abafa esse protesto impotente. Com que alegria cantam elas – as
picaretas regeneradoras! E como as almas dos que ali estão compreendem bem o
que elas dizem. No seu clamor incessante e rítmico, celebram a vitória da
higiene, do bom gosto e da arte.
O vapor Alagoas deixa a ilha Fiscal com
destino a Belém do Pará. No convés, Valentin avista a nuvem de poeira que sobe
das demolições da Avenida Central para o céu avermelhado do entardecer de São
Sebastião do Rio de Janeiro.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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