TRAVESSIA E CARTAS
Combalido
pelas decepções vividas nas terras cariocas, Valentin conhece a bordo
dissabores até então inusitados em sua experiência marítima. Mareia, sua frio,
tem tonturas e dor no corpo. Três dias se consome nesse terrível mal-estar.
Acorda gripado. Queima de febre. Purga com vômitos e disenterias. Pensa que vai
morrer. Do nono dia em diante, o nível da indisposição começa a diminuir. Um
imediato o consola.
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Viveu
o inferno. Tá no purgatório. Conhecerá o céu quando chegar.
Desmilinguido
de fraqueza, atado a si por um fio de percepção, Valentin não consegue indagar
se o presságio revela a recuperação da sua saúde ou se anuncia a última etapa
do desenlace da sua alma rumo ao além. Continua a seguir à risca as recomendações
do médico do navio: comidas leves, descanso no convés e olho fixo em qualquer
poste do navio. Fraco, desembarca em
Belém do Pará.
Rio de Janeiro, 19 de março de 1904.
Rainha, o bota-abaixo na Avenida Central tem
sido um sucesso e publicamos os regulamentos da Justiça Sanitária. A publicação
exacerbou o ânimo da oposição. Por esta razão, ainda que as saudades sejam
enormes e ao contrário do teu desejo de voltar, prefiro que permaneças na
fazenda até os feriados que está tão próxima quando irei te buscar. Transmitas
minhas lembranças aos teus pais e continues a usar os préstimos do chefe da
Estação de Trem no envio de cartas. Assim tuas notícias chegarão mais rápidas
até a mim. Beijo-te todinha, aliada amada de todas as horas e de todos os meus sonhos,
Theodoro.
Divisa, 21 de março de 1904.
Amado, meu coração tem estado todo o tempo
contigo. Confesso que preferia voltar para nosso ninho de amor. Mas já que teu
desejo guia o meu, aguardo-te aqui. As quaresmeiras já se enchem de cor antes
de abril, e eu floresço com as alegrias de saber que mais um pouco estarei
novamente contigo. Com devoção e carinho, beijo-te também todinho. Tua rainha,
amante, esposa, cúmplice dos teus desejos, Catarina.
Indisposta,
envelopa a carta. Não deu conta de escrever mais. A menstruação está atrasada
e, em vez de lhe vibrar docemente a alegria do indício de gravidez, o corpo
padece de um crescente mal-estar. Rouba-lhe forças para expressar a felicidade
desse jubiloso prenúncio de concepção. A indisposição é tanta que desconfia de
quebranto. Tenta reagir com seus recursos habituais. Reza e apega-se ao lado
bom da situação. Imagina o calor gostoso do bebê em seu colo, o prazer de
acariciar suas mãozinhas, a delícia de beijar sua pele macia... Mas a azia, o
refluxo, a lombeira sobrepõem-se ao brilho das imagens e tornam-se ineficazes
suas tentativas. No inverso do que sonhou, vive o início da desejada concepção.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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