DO CONDÃO DE BEM-ESTAR
Nesta noite de lua cheia, um
navio evolui no mar a menos de um dia de viagem da Capital Federal. Valentin
está sentado numa poltrona de uma elegante cabine. Seus cabelos claros
revolvem-se em cachos sobre os ombros. O peito se mostra pela fresta da camisa
aberta para fora da calça. Os punhos também desabotoados pendem dos braços
estendidos sobre os da poltrona e as pernas se dispõem estiradas em pés
descalços. Uma garrafa e uma taça com sobra de vinho estão no chão, ao lado da
poltrona. O ambiente, iluminado com luz aconchegante, emana uma sensação de
harmonia que contrasta com a expressão tensa desse homem de trinta e seis anos.
Nascido em São Sebastião do Rio
de Janeiro, veio ao mundo com a sensibilidade aflorada e o olhar ampliado para
as belezas e glórias da vida. Menino de tudo, já vagueava no faz de conta de
ter feito algo excepcional para o seu tempo. O feito não lhe era claro, porém
sua grandeza era nítida e proporcional à distinção das pessoas ilustres que em
sua imaginação lhe devotavam estimado reconhecimento.
Revelou cedo o dom de desenhar e
iniciou aulas de pintura. Vislumbrou para si um futuro promissor no mundo das
belas artes. Mais tarde, apaixonou-se pela filosofia e questionou as
iniquidades que impediam a vida de ser generosa com todos. Abraçou as causas
humanitárias e defendeu a abolição da escravatura nos últimos anos de formação
no Colégio Pedro II, quando então desistiu da pintura pelo bacharelado em Direito
na Universidade de Coimbra para onde partiu. Logo já era conhecido pelo ardor
de seus pensamentos libertários. Combateu o domínio português além-mar,
escreveu e fez charges a respeito para periódicos. Foi orientado pelos
professores para adotar o bom-senso no uso das liberalidades dentro e fora da
universidade e depois foi severamente repreendido pelo reitor por ferir a
sensatez em ambos os espaços. Acalmou-se na boemia e entre poetas. Amou,
reformou o mundo em sonhos, formou-se e se mudou para Paris, onde foi se
especializar em Leis e Jurisdição.
O fértil ambiente da capital
francesa o estimulou a retomar a pintura e a se engajar em movimentos de
organização operária. Taxado de anarquista pelo movimento e de utopista pelos
colegas advogados, abandonou as leis e as causas sociais, para dedicar-se somente
à pintura. Em breve, migrou para a reportagem fotográfica. Desde então, viaja
para países distantes, contratado por revistas, museus e sociedades
geográficas. Esteve na África, na Índia e na China. O próximo trabalho é
fotografar a reurbanização da cidade do Rio de Janeiro, de onde seguirá para a
Amazônia. Vem de um descanso em Portugal, país de seus antepassados e para onde
os pais se mudaram por época do exílio da família imperial brasileira.
Batidas à porta da cabine soam. A
tensão adensa em Valentin. Por um instante, ainda se mantém quieto, então se
levanta. Retira dinheiro do bolso da calça e abre parcialmente a porta. Vê um
marujo com a mão estendida e a ironia a debruar os lábios. Acena-lhe as notas e
ordena:
-- Abre.
-- Aqui?
-- É.
O marujo olha para cada lado do
elegante e ermo corredor. Desembrulha o volume que trazia na mão e o ergue em
um movimento serpenteado.
-- Magia pura.
Valentin fita grânulos feitos da
massa negra do ópio e imagina o reencontro com o prazer que exerce sobre ele
constante pressão. Troca o dinheiro pela mercadoria e fecha a porta,
indiferente ao que o marujo esboçou lhe dizer. Pega no chão a taça e dirige-se
para uma mesa, onde se senta numa cadeira e lança grânulos da droga dentro do
recipiente. Pela haste de cristal, faz o ópio girar na sobra da bebida e depois
o põe dentro da cabeça do cachimbo, que dividia até então a mesa com um
material de desenho e uma máquina fotográfica. O narcótico incendiado à chama
do álcool exala um aroma ocre. Fuma em tragos calmos... Entorpece-se, tomado de
expectativas e inquietações.
Está descontente com os
resultados do seu trabalho. Consegue vender seus textos sobre terras distantes
apenas com cortes e reescritas. Os editores recusam suas análises sobre o comum
dos povos. Exigem distinções fortes para evitar dúvidas entre as coletividades
atrasadas e as civilizadas. Da mesma forma, rejeitam críticas à exploração
humana que as potências europeias realizam nas suas colonizações. Já as
fotografias despertam interesse. São usadas para apoiar pesquisas de flora e
fauna ou para ilustrar a crença de existir raças superiores e inferiores, com
base na cor da pele. Outra possibilidade é deleitar olhares ávidos do exótico.
Ressente-se com esse uso ora limitado, ora inadequado do seu trabalho.
Desencantado, viaja de volta à cidade do Rio desejoso de achar os rastros de um
tempo em que tudo lhe era promissor e, a partir dessas marcas, traçar um novo
caminho para a realização de si. Traga novamente o condão de bem-estar.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de
adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário