INTERFERÊNCIAS
Imerso na banheira, Valentin ouve
batidas na porta. Enrola-se numa toalha e se dirige à saleta. Ouve a voz de
Catarina:
-- Sou eu.
-- Aconteceu algo?
-- Posso lhe falar?
-- Se preferir, posso ir ao seu
encontro na sala.
-- Não é preciso.
-- Aguarde um instante e depois
entre.
Destranca a porta e dirige-se para
o quarto pensando no que ela quer.
Catarina espera. Seu olhar percorre
a escuridão do jardim. Impacienta-se.
-- Já posso entrar?
Não ouve resposta. Penetra
vagarosamente o espaço e deixa a porta aberta.
-- Estou aqui...
Observa o ambiente: a câmara
fotográfica sobre uma poltrona, a mesa ocupada com material de desenho, a
garrafa de vinho aberta e uma taça já servida. Procura por outra e não
encontra. O que se passa com Josefa? Pelo
menos três taças devem estar sempre aqui. Serve-se na usada. Abre a esmo o
caderno de viagem de Valentin. A folha aberta revela o desenho de um rosto. A
feição lhe parece familiar.
-- Firo o bom-tom se me apresento à
vontade?
Catarina se surpreende em vê-lo
vestido com uma túnica.
-- Firo o bom-tom se vejo seu
caderno sem permissão?
-- Bobinha. Você pode. É uma
querida.
-- Hã! - Exclama disfarçando o
incômodo com a irônica imitação de si. Volta os olhos para o desenho. -- Quem é
a modelo?
Valentin pega a taça da sua mão,
com um olhar provocativo.
-- Você.
O corpo dela afogueia-se.
Afasta-se, dissimulada.
-- Está impossível hoje. Mas o
desenho é excelente.
-- Faz parte da minha coleção
particular.
-- É uma honra ser tema de suas
criações mais caras.
-- Sua visita faz parte da
modernidade do Rio Civiliza-se?
-- Estou na minha casa, com um
cavalheiro, quase parente, e a porta está aberta.
-- Admirável a sua autoconfiança.
Catarina senta-se numa poltrona.
Valentin bebe de um gole só o vinho e se serve de mais. Caminha e lhe estende a
taça.
-- Agradeço. Só queria saber se era
bom.
-- O que não é bom no solar dos
Alcântara Avelar?
-- Só você pode responder.
-- A visão do seu marido.
-- O que pensa fazer?
-- Partir.
O coração de Catarina bate forte.
-- Imagino quão difícil é resolver
um impasse desse modo.
-- Dificuldade alguma. Apenas sigo
em frente.
-- Movido por uma aceitação
passiva.
-- Para que prolongar debates
infrutíferos?
-- Não falo de debates, mas de
ação.
-- Theodoro mandou você aqui?
-- Sabe que vim porque quis e para
pedir que tire os retratos da cidade.
-- Não sou um delator nem me
envaidece criar um cartão-postal mentiroso.
-- Que, no entanto, pode promover
seus dons e lhe dar os aplausos que têm direito.
-- Prefiro ser reconhecido por
outros feitos.
-- Um passo leva a outro.
-- E, nesse caso, para mais
degenerações do bem.
-- Deixe de analisar tudo de modo
tão amplo e profundo.
-- Inexiste estreiteza e rasura no
nefasto.
-- Não pode apenas fotografar os
cortiços e deixar o resto para a história julgar?
-- O presente tece a sentença de
tornar a vida do povo mais ingrata.
-- Livre-se do peso do mundo.
-- Sou dado a acanhamentos que não
consigo vencer.
-- Por que tanto amor ao próximo e
tão pouco para com você mesmo?
Valentin se ressabia.
-- Sem sentido a sua afirmação.
-- Torne esse momento uma
oportunidade, não outra fonte de desistência.
-- Não diga o que não sabe.
-- Pense então em tudo que não sei
e, depois, parta se é o que quer, ainda que seja triste ver você ir embora.
-- Partidas são sempre
desagradáveis.
-- Principalmente quando não as
desejamos.
-- Seja clara, Catarina, o que quer
dizer?
-- O momento é inapropriado.
-- Talvez não haja outro.
-- Que diferença faz, se o seu
coração está fechado para ouvir o meu?
Catarina sai. Acaricia seu berloque
enquanto caminha: Faça-o ficar, minha
Estrela-guia.
Pela janela, Valentin observa Catarina
se distanciar após tumultuar a certeza de que partir seja a decisão certa. Raia
a percepção de ser um errante que sempre se move não porque enxerga algo melhor
à frente, mas, sim, porque não vê na permanência a solução para seus conflitos.
Com a angústia que as suas razões deploram, afasta-se da janela e prepara o seu
condão de bem-estar.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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