O SARAU
Catarina está ainda mais bela. Usa
luvas longas, uma flor nos cabelos em coque e a delicada corrente entremeada
com contas de opalas que ganhou de Theodoro. Nela, colocou o pingente de
estrela. O vestido modela o corpo e possui um caimento farto. A manga cobre
apenas o início do braço e é feita de renda que decora o decote.
O colunista social de um grande
jornal a contempla: merveilleuse! E
escreve em seu bloco de notas o comentário que fará dessa maravilha na sua
coluna do dia seguinte: a elegância é um
dom especial, uma particularidade, um dote tão difícil, louvável e precioso
como a graça e a inteligência. A senhora Theodoro de Alcântara Avelar demonstrou,
mais uma vez, ter esse dom. Com decoro, propriedade e dentro do espírito
inovador dos tempos atuais, uniu tradição à modernidade. O vestido feito de...
Theodoro também está bonito e elegante. Mais
parece um lorde inglês. Recebe os convidados, ao lado da esposa, no pórtico do
solar. Após os cumprimentos, criadas contratadas para a ocasião, de olhos
claros e impecavelmente uniformizadas, conduzem os recém-chegados pelo terraço
que contorna a ala de recepções.
Colunas brancas e redondas
erguem-se espaçadas e majestosas. Esculturas de pequenos pássaros, de flores e
de ramagens enfeitam as colunas no seu encontro com o teto. No jardim que
margeia o terraço, há bancos de pedra debaixo de frondosas árvores. Tochas
fincadas no gramado serão acessas tão logo caia a tarde de verão.
Salões contíguos foram abertos para
o sarau. Um piano de cauda e cadeiras para os músicos se destacam diante de
graciosas poltronas que formam o espaço da plateia. Mais tarde serão afastadas
para liberar o local para as danças. O próximo salão destina-se às conversas e
à degustação de iguarias que também podem ocorrer ao redor de mesas redondas
que ocupam o salão seguinte. Arranjos de flores e frutas decoram os móveis de
todos os ambientes. Candelabros completam a iluminação.
Os cavaletes com as fotografias de
Valentin se exibem no terraço e são ladeados por outros que expõem croquis da
reforma da avenida central e de outros espaços urbanos. Para cada painel da
realidade atual, há dois para ilustrar a modernidade aspirada. Exemplares da
Kosmos estão sobre pequenas mesas. Músicos tocam violinos, enquanto garçons de
libré servem refrescos, ponches e champanhe de boas-vindas aos convidados que
se espalham pelo ambiente e apreciam os painéis.
-- Quem sabe essas praças
ajardinadas despertem no povo o gosto do belo?
-- Com certeza, hão de influir em
seu caráter, modificar seus hábitos.
-- Devo confessar. Temi quando
soube que iam rasgar a Avenida Central.
-- E eu não? Receei que fosse ser
entregue ao mau gosto de algum mestre de obras, a exemplo do que se construiu
nesses últimos tempos.
-- Mas esta exposição aplacou meu
susto.
-- O meu também. São uns artistas
esses engenheiros arquitetos!
-- Sabe dizer se a venda de
terrenos já começou?
-- Não, mas Theodoro poderá nos
informar.
Mais à frente, mulheres analisam as
fotos de Valentin.
-- Estou em dúvida: não sei se acho
bonito ou feio.
-- Eu também: não sei se gosto ou
não.
-- Ah, como vocês se desorientam
facilmente.
-- Mas tem um brilho...
-- O brilho é da fotografia e não
dessa gente do retrato.
-- Confunde, então.
-- Nada parece ser o que é.
-- Poderíamos ter sido poupadas
dessa imprecisão.
-- Definitivamente não há nada a
ser apreciado aí.
Valentin surge. Olhares de través
examinam seu cabelo longo, o terno de linho claro que usa e contrasta com os
trajes pesados dos demais. Observações são trocadas.
-- Veja aquilo.
-- Como se estivesse em um
balneário! Só faltou o chapéu palheta.
-- Mas com todo aquele cabelo fica
difícil. Conhece a pessoa?
-- Não tive o desprazer de ser
apresentado. Que descortesia com os anfitriões.
-- E conosco também.
Valentin encontra-se com Bilac, que
justifica a ausência do retorno esperado.
-- Foi uma semana infernal.
-- Imprevistos acontecem.
-- Mas lemos o artigo: é um
diligente esforço de compreender o Brasil.
-- Foi alcançado?
-- Ideias sempre precisam de
arautos, porém, há na vida coisas que se dizem, mas não se escrevem; coisas que
só se escrevem e outras que nem se escrevem nem se dizem, mas apenas se pensam.
-- Casa de ferreiro, espeto de pau,
é isso o que quer me dizer?
-- Reflita, senhor Valentin, e me
dê licença.
Sozinho, o aconselhado depreende
que, se suas ideias sobre o Brasil podem ser pensadas, mas não faladas nem
escritas, as reformas da cidade têm muito de encenação. Sente-se um otário por
ter se envolvido no que já considera um capricho de Theodoro por
exclusividades. Afinal, o Rio possui fotógrafos fazendo o que foi convidado a
fazer. Não tinha porque me chamar.
Munhoz se aproxima, trajando uma
sobrecasaca de lã.
-- Como tem passado?
-- Muito bem. Belo evento, não?
-- Incomparável. Tudo concorreu
para o melhor.
-- Até a tarde... Azulada, sem
nenhuma promessa das chuvas de verão.
-- Realmente. E fresca, não acha?
-- Agradabilíssima, responde dissimulando
a sua estupefação.
-- Muito trabalho?
-- Bastante. Aliás, o seu material
foi bem apreciado pela Kosmos: um diligente...
-- Esforço de compreender o Brasil.
-- Já esteve com Bilac!
-- Rapidamente.
-- Parece que chamam para o sarau.
Não vai entrar?
-- Ainda não. Mas, por favor, fique
à vontade.
-- Agradecido. Com sua licença.
Munhoz apressa o passo: tarde fresca! Irá se dar mal comigo!
Encostado à coluna, com nova taça de champanhe
à mão, Valentin observa a sujeição dos convidados à moda dos países frios. Como suportam? De fato os presentes se
vestem como os aristocratas europeus que tanto admiram. Porém, o observador só
percebe o sacrifício de vestir trajes inapropriados ao verão brasileiro e não a
satisfação que os convidados sentem de se diferenciar do povo com suas roupas
simples, leves e arejadas. Muito menos percebe que, com seu terno, com a
proposta da sua fotografia e com as críticas do seu texto, avilta crenças, fere
carismas e questiona o saber daqueles de quem busca a apreciação do seu
trabalho. Peixe fora d’água, desejoso de renovar a água do aquário para nele
poder nadar, Valentin se dirige ao salão, onde Theodoro, após saudar os
presentes, apregoa os novos tempos que se descortinam para o Brasil.
-- A reurbanização abrirá as portas de nossa
cidade para as forças do progresso. Decerto que viveremos alguns desconfortos
durante a execução dessa empreitada. No entanto, os suportaremos irmanados pelo
apreço ao progresso, pelo valor da ordem e pela luminosidade das artes. Com
esse espírito, organizamos este sarau para celebrar o lançamento da Kosmos.
Primorosa em forma e conteúdo, já se tornou a publicação menina dos olhos da
Capital Federal e a expressão do nosso ressurgimento como povo que quer ocupar
o lugar a que tem direitos incontestáveis no convívio das grandes nações. Nesta
ocasião, coube a mim a honra de anunciar os virtuosos de nossa sociedade que
nos brindarão com o seu talento, num repertório que reúne solos ao piano,
poesias declamadas com fundo musical, bel canto e ainda peças ligeiras para
música de câmara. Senhoras e senhores, com enorme satisfação, chamo minha
esposa, Catarina de Alcântara Avelar e o jornalista e poeta Olavo Bilac para
abrir este sarau.
Ao som de efusivos aplausos, os virtuosos
assumem suas posições. Iniciam o repertório. A melodia tocada expande os
sentidos da poesia declamada.
À porta, Valentin observa a sensualidade ao
piano, o prazer que parece extrair do som de cada nota, a fluidez com que
evolui nos tons e semitons do bemol ou do sustenido, como se inexistisse
esforço algum em tocar, apenas o deleite. Imagina-a em seus braços, em meio das
espumas brancas, no azul do mar.
Virtuosos se renovam, apresentações se sucedem
e a plateia aplaude o fim do sarau. Os convidados se dispersam. Catarina
circula como uma brisa. Beija uma querida aqui, cumprimenta outra ali e atende
à solicitação de uma caríssima mais adiante. A todas, dedica uma palavra
gentil, uma escuta encantada e um sorriso doce que amplia o prazer desfrutado.
Troca também olhares com Valentin. Theodoro observa de longe essa cumplicidade
até que a interrompe. Conduz o amigo para uma roda onde está Rio Branco,
ministro das Relações Exteriores da República brasileira, a quem trata pelo seu
antigo título nobiliárquico. O barão confirma que a expedição para o Acre ainda
não tem data marcada, mas acontecerá até o final do ano. Em seguida, conversam
com o ministro da Guerra, que vê amplas possibilidades de pôr Valentin em
contato com o major Rondon, porém, lembra que a expansão das linhas
telegráficas acontece neste momento entre Corumbá e Cuiabá, e não na Amazônia.
Um convidado tira Theodoro da roda. Catarina aproveita a ocasião para se
aproximar. Logo mais já dança com Valentin.
-- Decidiu me levar ao
mar?
-- Não me respondeu o
porquê de pedir para mim.
-- O que acha?
-- Não acho. Quero ouvir
sua resposta.
-- Posso ter a honra de
dançar com minha mulher?
Valentin faz uma mesura
e, a contragosto, entrega a anfitriã aos braços do marido.
-- Aguardava por você,
sussurra Catarina no ouvido de Theodoro.
-- Já lhe disse que está
maravilhosa?
-- E eu que você é o mais
raro entre os raros homens do mundo?
Theodoro sorri e a faz
rodopiar pelo salão, enquanto Valentin, aturdido com as intenções ambíguas de
Catarina, recolhe-se ao seu aposento, sem ver o final do evento.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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