NOITE DE SALOMÃO
Toques à porta soam e
Valentin pula da cadeira. Um suspiro imperceptível se esvai quando abre a porte
e contempla o que se apresenta: Catarina envolta em uma capa-capuz feita de um
tecido tão escuro como um céu sem estrelas. Mas o seu olhar... Esse cintila
promessas. Da angústia do vazio, Valentin migra para o frêmito da plenitude.
Coração também palpitante, desejos e receios entrelaçados, a recém-chegada
penetra o espaço e o examina como a antecâmara do quarto real onde cumprirá a
sua missão. Deixa o capuz cair e Valentin lhe pergunta se não quer tirar a capa.
-- Ainda não.
-- Quer que feche as
janelas?
-- A cortina. E aceito
uma taça de vinho.
Ocorre o atendimento dos
pedidos. Taças são erguidas.
-- A você.
-- A você.
Valentin nota a expressão
levemente inquieta: está nervosa. Não é
pra menos.
-- Não quer se sentar?
Caminham em direção à
mesa. Valentin se dá conta que deixou exposto o que não devia. Catarina observa
a matéria dessa percepção.
-- É o que suponho?
-- Não sou adivinho.
-- É o cachimbo dos
sonhos orientais?
-- Por que diz isso?
-- Li a respeito e ouvi
falar que o conheceu nas suas viagens
-- O que leu?
-- Que leva a um estado
excepcional do espírito e dos sentidos.
-- E ao inferno também.
-- Por que fuma, então?
-- Um bom remédio em dose
certa.
-- Sente-se mal?
-- Quantas perguntas.
-- Posso experimentar?
-- Não precisa.
-- De sonhos ou do
remédio?
-- De correr riscos. A
alegria gosta de você.
-- Nem para estar contigo
uma única vez no abrandamento das suas dores?
A pergunta reverbera
dentro de Valentin que não sabe precisar o que ilumina mais o rosto de Catarina:
se o olhar ou o sorriso. Cresce o desejo de possuí-la; de penetrar o seu corpo
iluminado por esse sorriso-olhar e, atado no aconchego tépido e úmido da carne,
tomado pela escuridão do prazer, gozar o fugidio êxtase e dele retornar
preenchido pelo amor compartilhado. Com esse desejo, conclui a preparação do
ópio. Silenciosos, fumam sentados à mesa.
Poucos tragos já inundam
Catarina de um onírico bem-estar. Levanta-se em languidez. A luz da saleta flui
com reflexos que lembram lantejoulas e lhe agradam. Desvencilha-se da capa
enquanto anda. A sensação é de flutuar, de ser uma pluma. O ópio apaziguou a
agitação que sentia em ter de trair Theodoro e concentrou o desejo de ser
fecundada por Valentin, que se aproxima como um ator.
-- Quem é esta que surge
como a aurora, radiante como a luz?
O regozijo brota em
Catarina e se espraia pelo corpo como um orgasmo. É sublime se entregar a um
homem capaz de tanto lirismo. Replica com mais poesia.
-- Sou a estrela-guia, a
esperança do amanhecer.
Seu rosto é acariciado e
a sedução avança com o desafio dos versos improvisados.
-- Bela é a tua face
entre os brincos; teus lábios são fitas de carmim.
-- Teu toque é suave e
tuas palavras doces e frescas como a brisa.
-- Tua voz restaura minha
força e teu semblante afugenta minhas sombras.
Giram um ao redor do
outro.
-- Sem me aperceber,
trouxeste-me para ti. És um pastor do amor.
-- Encantaste meu
espírito com o teu sorriso-olhar.
-- Onde pastoreias tua
alma ao luar da meia-noite?
-- Próximo às corredeiras
que ninam a insônia de pensar em ti.
-- Quero contigo estar.
Mas temo me perder no caminho e não saber voltar.
Pela cintura, Valentin a
traz para junto dele.
-- Deixa-me te conduzir;
é tempo de celebrar tão longa espera.
-- Teu peito apoia minha
cabeça e o teu braço me enlaça; já me sinto segura e alegre em ouvir o júbilo
do teu coração.
Dirigem-se para o quarto,
fitando um ao outro. Ao lado da cama, param. Diante do semblante extasiado,
Catarina desliza uma manga sobre o braço, depois a outra e, com as mãos sobre
os seios, segura por um instante o vestido até deixá-lo deslizar e tombar no
chão. Deita-se com os olhos no amigo.
-- Venha para meus
braços, alimente-me com teu desejo.
A paixão arde em
Valentin, que se despe sorvendo a visão do éden revelado. Em seguida, estira-se
na cama e a acaricia.
Braços, tronco, ancas
reagem a cada toque em movimentos dolentes. A volúpia ilumina ainda mais o
rosto de Catarina, que murmura quando dedos a penetram.
-- Ah!
-- És toda bela, mulher.
Beija-a
e estende-se sobre ela. Sente-se como num sonho dentro de outro de delícias sem
fim. Gira o corpo com o dela junto ao seu.
-- Dos teus lábios fluem
mel.
-- Teus olhos são
centelhas divinas e tuas carícias estremecem meu íntimo.
-- Cubra-me de beijos.
Os longos cabelos ruivos
acariciam o rosto, o peito, os quadris do corpo sob o seu, como ramagens que,
ao sabor das brisas, balançam e riscam a areia do chão. Solos aquecem-se mais,
entranhas latejam e o deus da fecundação, hasteado em glória, quer ser adorado
– e é adorado. Num primeiro momento, apenas os lábios o deslizam; no seguinte,
a boca inteira o reverencia e o abandona fremente de mais prazer.
-- É como um cedro rijo e
macio. Embriagai-me com teu ardor.
Valentin contempla a
paixão modelada sobre ele: os bicos rijos dos seios, os cabelos em profusão, o
sorriso molhado de luxúria, os olhos em brilho ardente – e se pergunta até onde
essa noite desabrochada em dádivas o levará.
--
Põe-me como um selo sobre teu coração
E a noite sobre a noite, morna e úmida, desce vagarosamente e
engole a terra. Corpos gemem. A luz suave da arandela banha a tela da mulher
que gira a esfera.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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