DO DESEJO INEGOCIÁVEL
Se
pelo menos o Capitão parasse em casa. Se o maneiroso sumisse, pensa Quitéria, descorçoada com o desvario de Páscoa. Tudo a sobressalta:
as saídas furtivas, as demoras imprudentes, os retornos cheios de palidez
suspeita – e ainda os olhos enxeridos e a boca fuxiqueira de Belizária.
--
Nossa! Dona Páscoa tá tão mudada, não? De um mês para cá, quase todo dia vai
pra rua. Que tanto visita a madame ou é o irmão dela que vai visitar?
Quitéria
estremece, ralha, ameaça, mas Belizária não se emenda. Redobra as preces e as
mentiras ditas até para Tião, que percebe o esquisito e desenvolto entra e sai.
Chama a mulher no canto.
--
O que acoberta?
--
Nada, não.
--
Bota tento nos olhos e juízo no coração. O mundo é cruel.
Outubro
avança e Quitéria se desespera.
Parte para Laranjeiras e pede ajuda para Maria Luísa. A advogada entende que
Páscoa tem omitido a extensão do romance desde o retorno de Grego e se preocupa.
Promete falar com a amiga na primeira oportunidade. Mas Quitéria tem pressa.
--
Por que não amanhã mesmo? Poderão conversar à vontade. O Capitão tem hora certa
pra sair, mas não pra voltar.
Arranjo
combinado, arranjo realizado. No caramanchão do casarão, Maria Luísa pede a Páscoa que desista de um prazer momentâneo e arriscado
para viver um prazer maior e mais seguro no futuro. O pedido não é
compreendido.
--
Como posso reter o que sinto, se a paixão só vale à pena em uma entrega total?
--
Não teme as consequências?
--
Temo, mas sigo em frente. Quem sabe assim não venço os meus medos?
--
Se é o medo que quer vencer, encare de vez Herculano e peça a separação antes
que ele descubra.
--
Ele está tenso com as coisas do governo. Aguardo uma hora melhor para falar.
--
Uma atitude sensata, a mesma que deve ter com Grego. Adie os encontros para
quando estiver separada. Se descobertos, serão a sua perdição.
--
Não agoure.
--
Não se trata disso e sim de evitar que seja julgada como uma adúltera.
--
Que palavra horrível, como se eu tivesse adulterado a minha natureza.
--
Não é hora para filosofar nem para desafiar as convenções. Por mais imperfeitas
que sejam as leis, sem o amparo delas, não terá a liberdade que quer.
Páscoa
resiste. Sente-se quase imune e inacessível às pressões dos costumes e de suas
leis. Quer prolongar o quanto puder a bem-aventurança que desfruta.
--
Teria dado as costas à paixão, se fosse casada?
--
Nunca pensei a respeito, mas creio que ouviria a voz da razão.
--
Quem ouviria: a mulher que purgou a desilusão ou a que conheceu o paraíso?
--
As duas e também a advogada amiga.
--
Então me compreenda: não posso me esquivar da felicidade que nunca tive.
--
Aprendi que a vida requer certa inapetência para ser bem vivida.
--
Diz isso porque nunca sentiu fome de afeto.
--
Tira conclusões precipitadas e quem está em perigo não sou eu.
--
Não é atolada em medos, sufocando desejos, que terei coragem para me separar.
--
Por isso desafia a fatalidade, como fez Bovary que tanto espanto lhe causou?
--
Não penhorei nenhum bem da família.
--
Mas está a dilapidar as suas possibilidades de defesa. Por favor, Páscoa!
Espero de você a lucidez de uma Nora.
--
Não sou uma personagem.
--
Então acorde para a realidade. É loucura se render aos desejos ao preço que
for. Proteja-se e ao que quer.
Páscoa
desnorteia-se. Um breve silêncio se faz. Maria Luísa retorna a falar.
--
O que Grego diz?
--
Do quê?
--
Ora, de como pensa resolver essa união.
--
Não conversamos sobre isso. O que vivemos é tão recente.
--
Recente é a consumação da paixão, não os riscos que vivem desde janeiro. É um
tempo enorme para uma mulher casada.
--
Tenho que resolver a minha separação, não um pedido de casamento.
--
A ironia não a ajuda e Grego é quem tem menos a perder nessa história.
--
Se o conhecesse, não teria esta preocupação.
--
Ele está quieto. Não acha isso estranho?
--
Já não disse que não falo do meu casamento?
-- E ele se silencia, sem revelar
cuidados com você e desejos de um futuro juntos?
--
Não o julgue.
--
Apenas analiso os fatos e vejo uma baita omissão, além de imprudência.
--
Como pode ser tão racional?
--
A realidade exige.
--
Nem parece a mesma pessoa para quem me confidenciei.
--
Nem você a amiga a quem tão bem orientei. Estarei ao seu lado para o que der e
vier, mas insisto: não faça dessa aventura uma catástrofe em sua vida.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário