NÃO SE SERVE A DOIS SENHORES
Um
silêncio sepulcral paira no casarão. Páscoa faz vigília à janela do quarto,
temerosa com seu destino. Sofia volta da escola. Por debaixo da porta, deixa um
desenho para a mãe, que reconhece as duas em uma praia. As lágrimas correm no
rosto de ambas. Quitéria entra com a janta e a prisioneira suplica.
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Por tudo que lhe é mais sagrado, avise Maria Luísa.
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Não posso, filha, não posso. Sinto cheiro de sangue no ar.
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Isso é o que acontecerá se não agir, diz e corre para a porta. Depara-se com
Tião e implora: -- Pelo bem que me tem, me ajude.
--
Deixa tudo acalmar, sinhá. Venha Quitéria.
A
porta se fecha. Desalentada, Páscoa encolhe-se na cama. Vislumbra a ideia de se
entregar para a polícia. Prefere a prisão ao jugo de Herculano.
Amanhece
e a rotina da prisioneira se arrasta com sua vigília à janela. Lembranças da
felicidade vivida se sucedem sem brilho e cor. A ama se aflige com o olhar
parado, com a comida quase intacta no prato, com o deslocamento mudo para o
banho, com o infortúnio que se prolonga. Reza por um milagre que as livre de um
mal maior.
A
noite chega e avança, o escuro se esvai. Um galo canta ao longe, um cachorro
cruza a rua, gatos miam, enquanto o casarão dorme um sono sobressaltado. Lá
fora, Grego se esgueira pela calçada, depois ao longo do gradil lateral do
imóvel, quando então ladeia o muro dos fundos da propriedade que faz divisa com
as fraldas do morro. Por esse caminho, desaparece lá no final.
O
casarão acorda, as saídas matinais se repetem e as horas passam em angústia. De
tarde, Tião sai para buscar Sofia na escola. O coche de Maria Luísa para.
Páscoa se desorienta à janela. A amiga desce do carro, seguida de Grego. A
presença dos dois avoluma o suplício de Páscoa, que faz sinal para que esperem
e se afasta. Maria Luísa força abrir o portão. Chama em vão por Quitéria. A
ausência de resposta confirma aos dois que o casarão vive condições anormais.
Grego avista novamente Páscoa, que lhe mostra uma maleta. Compreende o sinal e
balança afirmativamente a cabeça. Maria Luísa grita o nome de Quitéria. Grego
puxa-a pelo braço e o casal parte.
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Nunca mais ouse tocar o meu braço.
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Achei melhor não chamar atenção.
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Nem se atreva a tentar fugir com Páscoa.
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Pode estar sendo maltratada.
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Deveria ter se preocupado quando podia evitar esse sofrimento.
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Não nos reunimos para brigar, doutora.
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Pois então faça o que digo. Meu irmão chega amanhã de viagem e tentaremos
intermediar a situação e resolver tudo dentro da lei.
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Quando falarão com o Capitão?
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Na segunda-feira talvez.
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É muito tempo.
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Não lê jornal, não vê o que se passa na cidade?
Grego
está farto das ofensas de Maria Luiza.
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Agradeço se puder tornar a nossa convivência pelo menos respeitosa.
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Então ponha a cabeça para funcionar. O Capitão está às voltas com a Liga contra
a vacinação. Com certeza, deixará qualquer outro assunto para resolver depois
do comício de sábado.
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Procuro pela senhora no domingo. Fico aqui.
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Como quiser.
Pela
janela, Grego pede para o cocheiro parar. Atendido, despede-se e desce. Maria
Luísa não sabe o que a amiga viu nele: mais parece um galo garnisé
assustado.
A
vigília de Páscoa começa bem cedo no dia seguinte. Mais que o retorno do
amante, espera o da amiga, de quem quer guarida, enquanto a justiça decide o
seu destino. Pede de novo ajuda para os agregados, quando Quitéria e Tião
aparecem.
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Por favor, eu preciso de proteção.
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Filha!
Páscoa
fita o empregado.
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Ou cumpro ordens ou deixo o casarão, sinhá.
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Não percebem? Corro perigo de vida.
Tião
abaixa a cabeça. O vivido desarranja seus princípios de sobrevivência. Contudo,
tem que contrato não se quebra e sim se rompe – perspectiva que o assusta.
Fecha a porta após a saída de Quitéria e ainda ouve a voz do outro lado.
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Não me deixem.
O
casal caminha pelo corredor.
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Melhor a gente falar com a doutora.
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Ajuda pra um, traição com outro.
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Ela tá sofrendo que nem escravo no tronco!
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A ordem foi dada e respondemos sim, senhor.
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Tião, não bota tudo tão justo assim.
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Não dá para servir a dois senhores. A casa cairá para nós também.
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Uma prosa apenas.
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Só se quiser ir embora depois.
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Nem morta, deixo elas.
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Tá tudo ficando muito difícil aqui.
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Que seja, mas irei abrir o portão, se a doutora aparecer.
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E fechar o nosso tempo na família. Pense nisso também. Vou buscar Sofia.
Sozinha,
Quitéria decide dar folga para Belizária. Poupar seu olhar enxerido de presenciar
a insubordinação cogitada. Caminha para o quintal, onde a moça recolhe roupas
no varal.
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Tire o dia de amanhã pra ficar em casa e descansar.
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Até que eu gostaria, mas não posso.
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Ora menina se eu tô dizendo que pode é porque pode.
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Só que o Capitão quer eu venha amanhã e domingo, pra ficar com Sofia.
Quitéria
teme o quê Belizária possa ter conversado com Herculano.
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Tá de fuxico com o patrão?
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Virgem, Dona Quitéria! Não sou tonta, não. Só gosto de saber das coisas, pra
sonhar ou bendizer a vida que tenho. Ademais, gratidão não se paga com
desgraça.
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Bom que pense assim. E o que mais o Capitão falou?
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Só isso. Deu a ordem e eu disse sim, senhor.
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Espero que pare por aí.
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De mim pode esperar. Mas de outros... Num fie, não. Coração não tem dono, mas o
traído quer sangue, Dona Quitéria, sangue. Eu sei das coisas. Ah, como
sei!
A
ama olha para o céu e implora proteção.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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