DA VONTADE LIVRE
Os
gritos alegres de Sofia vibram na praia. O sol se eleva por detrás do morro,
que cobre de sombra fresca o novo território pelo qual Páscoa se move
chapinhando na água. O bem-estar brota da sola dos pés descalços, sobe pelas
pernas, redemoinha no ventre e segue em carreira para o coração que bombeia a
tensão de transgredir e a excitação de viver o prazer.
Páscoa
observa o cuidado com que Grego guia Sofia em sua descoberta do mar e admira
também a coragem da filha. Ora a pequena dá as costas à passagem da onda e é
jogada nos braços do banhista, onde se acomoda como se tivesse crescido entre
eles, ora cai solapada pela turbulência da arrebentação – e é agarrada pela mão
rápida de Grego. Tesa e cega de água e sal, Sofia respira e se inteira de si.
Deixar o mar? Que nada! Visão e fôlego recuperados, segurança firmada, quer
mais. E se lança em nova brincadeira, com Pã, que nada ao redor.
Páscoa
escuta a alegria que vem de lá e a que seu corpo murmura. Sofia nunca esteve
tão feliz e ela nunca se sentiu tão bem. Esse sentir vale o risco. É crueldade
privar alguém do prazer. Um mínimo de felicidade precisa ser vivido. E assim é.
Nesta manhã pagã, em que todos parecem dormir até mais tarde, o abre-alas da
liberdade ganha passagem, une-se do mar à terra e desfila cheio de novas claridades.
Sofia
seca-se entre corridas com Pã, enquanto Páscoa e Grego palmilham a praia do
conhecimento.
--
O que trouxe o senhor para o Rio?
--
Uma companhia de teatro lírico contratou meus serviços e o Brasil estava no
roteiro das apresentações.
O
tipo de contratação intriga a mulher.
--
Serviço de banhista?
--
Não. Reparo instrumentos de cordas e também faço violinos. Sou um luthier.
Páscoa
entende onde aquelas mãos aprenderam a pegar com delicadeza e precisão.
--
Nunca conheci um artesão da música.
--
Ao vosso dispor.
Encabulada,
desvia o olhar. Grego percebe o decoro e se revela um pouco mais.
--
Gosto muito de madeira e também de observar e extrair o som de cada coisa. Daí
para juntar os dois gostos foi um pulo só.
--
Possui belos dons.
--
Obrigado. Acho que os homens são como árvores. O lenho de cada um é próprio
para fazer uma coisa e não outra. Descobri cedo qual era o meu.
--
Que boa fortuna!
--
Foi sim. Pôs no meu caminho um mestre que me ensinou dar bom uso aos meus dons.
Abandonei os costumes – há muito os homens da minha família são comerciantes
dos mares. Aí uni a vida com o destino: o rumo com a oportunidade, entende?
--
Entendo, responde, ignorante de como realizar essa fascinante operação.
--
De Atenas fui para Paris estudar o ofício, depois aprimorei a arte em Cremona,
na Itália. Aprendi muito, trabalhei bastante, mas sentia que lá não era o meu
porto. Aconteceu então o convite da companhia e aqui aportei. Fiquei encantado
com esta enseada e entendi o que o destino me acenava.
Escolhi a ponta de praia para construir minha casa. Moro logo ali, ao pé da
curva do morro, onde tenho minha luteraria. Trabalho para os músicos da cidade
e para os de fora que chegam.
--
Acha que encontrou o seu porto?
--
Agora mais que nunca.
A
emoção fervilha em Páscoa. Volve o
rosto para o mar e percebe a nulidade do recato. Um sonho deve ser
vivido na sua instantânea duração. Tateia no desbravamento do outro,
pressionada por uma pergunta que não quer se calar.
--
Trouxe sua família também para cá?
--
Não. De lá eles não saem. São muito apegados.
--
Sei... O senhor é casado?
A
curiosidade nua o surpreende.
--
Sou solteiro.
Como
um vento forte que abre a janela, Páscoa escancara aquela nudez.
--
Nunca amou?
É
o verbo feito carne, conclui Grego, observando os olhos negros
amendoados. Julga arriscado deixá-los sem resposta. Mas como dizer o que não se
diz, sobretudo quando se faz a corte a uma mulher casada? Escolhe sua melhor
saída.
--
O amor tem me escapado.
--
Como assim?
Grego
teme dizer mais, ainda que aquele olhar insista em atrair seus segredos.
--
Ora...
--
O amor não permite ligar vida ao destino?
--
Permite, mas, às vezes, é arrebatador. Passa como vento. Ou, frágil, se esvai como
o aroma de um perfume. Ou é tão difícil que finda, até que outro surja com
novas promessas de eternidade, conclui Grego, estupefato consigo mesmo. O que tem esta mulher, que me extrai uma
confidência dessas?
Páscoa
experimenta uma sensação ambivalente. Ao mesmo tempo em que a resposta a
desconcertou, pelo número de amores revelados, gostou de saber, de uma só vez,
a verdade desse ser: um homem de
sentimentos fartos. Retomado o controle, quer entender melhor essa
volubilidade que desafia suas crenças românticas.
--
Se há sempre uma dificuldade e um fim tão certos, não parece sem sentido
entregar-se ao amor?
--
Evitar suas dores é deixar de viver suas alegrias. Não compensa. O amor é uma
dádiva da vida. Transforma o que toca.
A
declaração remexe os sentimentos mais íntimos de Páscoa. Traz à tona o abandono
de si, dá sentido à sua cura e incita o desejo, ainda que proibido, de usufruir
da dádiva do amor. Na força do tumulto, na tensão criada entre a vontade e a
negação, ignora tudo o que poderia desviá-la de acreditar no faz-de-conta que
são possíveis um para o outro. Quer desfrutar esse deleite nem que seja como
uma pintura, que se aprecia sem tocar. Ousa dizer:
--
O amor lhe cai bem.
--
Também à senhora.
Encalorada
do decoro que confronta, Páscoa aprofunda o entendimento.
--
Descreveu-me tantas formas de amar. Qual acha que melhor me assenta?
--
A que lhe apraz e revele por inteiro o seu coração.
Ah,
a ilusão da vontade livre!
O
olhar amendoado como um lago negro rutilante espelha o outro, rasgado de
desejo. Grego toma-lhe a mão.
--
A senhora é muito bela.
--
Possui olhos sensíveis.
A
vontade do homem é abraçar a mulher, mas a ocasião não é propícia. Nem a mão se
mantém onde estava, escapa suavemente, e Páscoa volta a andar. Grego a segue,
no mesmo ritmo, cheio de atenções e respondendo a todas as suas curiosidades.
--
Por que um artesão da música é também um banhista?
--
Para renovar a vida.
Páscoa
compreende. Realmente está diante de um artesão do prazer.
--
Nunca teme o mar?
--
Sim. Ele é igual à gente. Tem humor e simpatias. Às vezes, claras e rápidas, às
vezes, demoradas e suspeitas.
--
Como lida com tanta inconstância e perigo?
--
Respeitando o seu modo de ser. É da natureza do mar ser assim – e contra a
natureza não há como lutar.
Quando
Páscoa cruza a fronteira de volta, com uma Sofia falante, toda sal, areia e
alegria, as palavras de Grego ainda ecoam turbulentas por dentro: Contra a natureza não há como lutar.
Impossível pôr um ponto final nessas manhãs luminosas. Quer rever, conhecer
melhor esse homem que lhe surgiu como um bálsamo de frescor na alma machucada e
que parece incitá-la a livrar-se dos seus medos, a conquistar sua liberdade e a
ouvir seu coração. Quer compartilhar suas certezas, descobrir com ele como se
entender com a sua natureza, como ligar a vida ao destino. Olha para as grandes
pedras negras – um quase nada que a separa do território onde seus desejos
podem ser concretizados. Com essa imagem já íntima, passa pelo portão do
sobrado com Sofia e segue para o quintal.
Tião
e Quitéria vêm ao encontro delas. A areia grudada nos cabelos da menina e a
roupa ainda úmida chamam a atenção. Indiferentes à ladainha de perguntas da
ama, mãe e filha chegam ao poço, onde um balde cheio de água está. A princípio,
Páscoa molha o rosto, mas, depois, abrasada de diferentes calores, entorna a
água sobre si. O corpo quente se arrepia – e a decisão brilha. Arriscará. Quer
avançar pelo novo território do modo que melhor lhe convier e até aonde puder.
Sofia também quer se molhar. Por que não?
Páscoa enche o balde e molha a filha. Boquiabertos, Tião e Quitéria assistem ao
aparente desvario da cura. A dúvida nasce em Quitéria.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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