NA TRAVESSIA FINAL DE BOVARY
Páscoa só retorna ao
livro no dia seguinte e ainda assim com certo distanciamento. Mas logo um
alento trêmulo a invade suscitado pela visita de Bovary ao tesoureiro municipal
para quem confidencia seu infortúnio. A expressão até então deleitada do homem
anuvia-se ao saber das dívidas, depois se franze ao ouvir o pedido pecuniário e
por fim se ruboriza indignado quando a solicitante oferece-se em troca do
socorro.
-- Senhora! Como pôde
pensar nisso?
Trôpega de pasmo com o
mau-êxito da proposta que defendeu, Páscoa segue Emma, que se apega a sua
última esperança de salvação: Rodolphe. Procura o ex-amante, que diz não ter o
dinheiro solicitado.
-- Não o tens! Eu deveria ter-me poupado a esta última vergonha.
Nunca me amaste! Não vales mais do que os outros! - exclama e, desorientada, parte.
Angustiada, Páscoa afoga-se na travessia final
de Bovary.
O
chão lhe parece como imensas vagas escuras que se arrebentam. Ideias e reminiscências brotam de sua mente e lhe
escapam como os riscados brilhantes de um fogo de artifício. Teme estar louca;
consegue se dominar, de uma maneira confusa, em que não associa a necessidade
de dinheiro à causa do seu horrível estado. Sofre apenas por causa do amor.
Sente que a alma a abandona a essa recordação, como os feridos, agonizando,
sentem a vida esvair-se pelos ferimentos a sangrar.
Cai a noite. Voam
gralhas. E Bovary reconhece então as luzes das casas que resplandecem, de
longe, no nevoeiro. Nesse momento, percebe o abismo em que se encontra. O peito
arfa como se fosse despedaçar. Depois, num arrojo de heroísmo, em que quase se
sente alegre, desce a encosta a correr, atravessa a prancha das vacas, depois a
alameda, mais na frente o mercado e chega à loja do farmacêutico.
Convence o ajudante a deixá-la entrar. Lá dentro pega um frasco e se
envenena. Retorna para a casa, escreve uma carta de despedida ao marido e se
entrega à descoberta da morte escolhida. Em uma derradeira fantasia, imagina
que morrer será uma experiência insignificante, na qual adormecerá e tudo
acabará.
Ledo engano! Descobre
Bovary, corroída pela dor e pela agonia. No entanto, já não odeia mais nada,
nem ninguém; sabe que em breve a sua natureza, que a torturou com desejos de
posses e gozos insaciáveis, se silenciará para sempre. Subitamente ouve a
canção que chega da calçada: -- Quantas vezes um belo dia de calor faz sonhar
as meninas com amor. Para apanhar as espigas, que os moços foram ceifar, uma
delas andou no campo a cantar. Mas tanto o vento soprou que a saia lhe
levantou!
O cego! Bovary exclama,
julgando ver o rosto horrendo do miserável, já nas trevas eternas. Gargalha
freneticamente. Até que um espasmo irrompe e, com a imagem que tantas vezes
repugnância lhe causou, deixa de existir.
Páscoa fecha o livro,
enlutada. A natureza venceu. A ordem social foi legitimada. Vira-se para o
relógio à parede. Se quiser chegar ao Jardim Botânico na hora marcada, deve
sair já. Retira o bilhete de Grego de dentro do romance e dirige-se para a
biblioteca, onde para diante da República.
Quitéria ronda o
ambiente, intrigada com o atrasado da saída que não deseja. Observa Páscoa.
Nada fala, mas ora: Obá, está nas tuas mãos! Volta para a cozinha, para a massa de pão, e, logo mais, esguelha
os olhos para Páscoa, que passa ao seu lado e para diante do fogão, onde
entrega o bilhete de Grego às labaredas. Tomou uma decisão. Separar-se de
Herculano antes de se entregar à nova paixão. Os ponteiros do relógio cobrem a
hora do encontro. O carrilhão geme o tempo que se foi, enquanto Bovary repousa
sob a concha, no fundo da cesta de bordados, que está sempre disposta sobre o
tapete, ao pé da quina do sofá, na sala de estar.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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