DO LIBERTADOR E DO PARALISANTE
-- Dr. José
Inácio, o que acha de continuarmos nossa conversa na biblioteca? Tenho certeza
de que as senhoras querem pôr seus assuntos em dia!
Páscoa observa a
desenvoltura de Herculano. Lembra aquele que desfilou com ela garbosamente pelo
saguão do Theatro Lyrico: tão amável... Se
fosse sempre assim com ela, tem certeza de que a sua vida teria tomado outro
rumo.
José Inácio, um
quarentão alto e magro, barba e bigode bem aparados e postura afável,
levanta-se. Após as devidas vênias, as duas mulheres são deixadas a sós na
sala.
-- Muito simpático o
Dr. José Inácio.
-- É um irmão querido e
um grande incentivador da minha carreira.
-- Percebi. Falou com
orgulho dos estudos que a senhora fará no exterior.
-- Ora, por favor, me
chame de você e me conceda tal liberdade. Somos tão jovens! Além do mais, não
lhe parece que nos conhecemos há muito tempo?
-- Talvez sejam as
nossas afinidades. Também gosto de ler e adoraria viajar. Para onde vai mesmo?
-- Paris. Sorbonne.
A anfitriã suspira
sonhadora, tentando imaginar-se no lugar da candidata à amiga.
-- O que mais vai
aprender se já é formada?
-- Vou me especializar
em direito civil, mas antes farei algumas disciplinas na Faculdade de Letras.
Há uma porção de ciências novas no curso, como psicologia e ciências sociais,
que pretendo estudar. Busco ter um olhar enciclopédico.
Páscoa fica fascinada com esse olhar; imagina
a amplitude que pode ter.
-- Entendo.
-- Se não conhecemos os
conceitos que regulam nossa sociedade, se não diferenciamos dogmas de
conhecimentos, como vamos poder defender nossos direitos?
-- Fala de...
-- Liberdades civis e
políticas! Na Nova Zelândia as mulheres já votam, sabia?
-- Não.
-- Pois votam desde
1893. Uma nova época se inicia para nós. Quero escrever sobre os nossos
direitos ainda presos aos véus da ignorância.
-- Podem ser retirados?
-- Não facilmente.
Porém há caminhos: na tribuna, nas publicações e na educação.
O mundo se torna maior
para Páscoa neste instante.
-- Muitos caminhos.
-- E todos esperando
por nós. Você viu Casa de Boneca de Ibsen? Foi encenada aqui no Rio, há poucos
anos.
-- Não tive
oportunidade. O título soa tão infantil.
-- Pois é exatamente o
que Nora, a personagem, descobrirá: que é infantilizada pelo marido e que não passa
de uma boneca para ele. Decide, então, separar-se.
Páscoa fica boquiaberta
com a revelação.
-- Que coragem!
-- E lucidez! Quando o
marido a lembra dos seus deveres de esposa e mãe, Nora responde que possui
outros deveres tão sagrados quanto aqueles: o dever para com ela mesma; que não
pode pensar mais pelo que diz a maioria. Precisa refletir por conta própria,
tentar compreender quem é e o que quer na vida. Rompe o casamento e parte.
A resposta de Norma
soou a Páscoa como a mais perfeita tradução dos seus anseios, porém ditos sob
um prisma radicalmente novo: sempre entendeu o pensar só em si como egoísmo,
jamais como um dever sagrado para consigo mesma. Respira fundo e revela o
efeito dessa diferença.
-- Um entendimento
libertador, não?
-- Totalmente. Não podemos mais nos sujeitar a esse estado
de infância adulta que nos impõe a lei e os costumes. Gosto tanto de Casa de
Bonecas, que tenho planos de escrever sobre a peça durante meus estudos em
Paris. O que acha de uma defesa dos direitos da mulher com base nas questões de
Nora?
O que Páscoa acha além
da infinita possibilidade de ajuda que tem a sua frente? Que tudo é possível
para Maria Luísa. Está fascinada com esse vendaval de informações que ela é;
estupefata com a desenvoltura com que trafega em temas que desconhecia ou que
não sabia como pensar sobre eles e muito menos se expressar tão bem.
-- Fará uma grande e
importante defesa.
-- Obrigada – e há
muito a ser feito. Veja que absurdo: desde 1890 o marido não pode mais impor
castigo corpóreo à mulher, nem aos filhos. E quantos casos você não conhece de
mulheres e crianças que apanham todo santo dia?
-- É muito triste...
Não há nenhuma outra mudança na lei que nos ajude?
-- Infelizmente, não.
Nossa capacidade jurídica não é reconhecida e questões de foro íntimo são mal
contempladas, como o divórcio, que atinge também os homens.
Uma onda de calor
percorre o corpo de Páscoa.
-- Não conheço nada
sobre separações.
-- A lei só permite a
separação de corpos e de bens; porém, impede o casal de contrair novas núpcias,
a menos que um dos cônjuges morra. E pasme para as distinções quando o motivo é
o adultério. Se o marido for o adúltero, cabe à esposa provar o envolvimento
extraconjugal. O inverso não. Basta o esposo dizer que viu a mulher de prosa
com outro homem, que a acusação é aceita. E com prisão do adúltero. A
intimidade também é assunto do código penal.
As informações caem
como um raio sobre Páscoa e dão corpo ao medo. Agora não é mais a imprecisa
sensação de transgressão que a atemoriza, mas o conhecimento das consequências
legais dos riscos dos dias iluminados vividos e dos que se anelam em seu
coração: adúltera, repete em
silêncio.
Maria Luísa observa a
palidez do seu rosto.
-- Você está bem?
Sofia entra na sala.
-- O lanche está
servido.
Páscoa olha para a
menina e o medo de ser a perdição da filha aperta o peito. Sofia percebe a
expressão esquisita em seu rosto: o que essa mulher fez com a minha mãe? Maria
Luísa intervém.
-- Quantos anos você
tem, Sofia?
-- Quase dez, responde
num tom seco e, antes que seja interpelada de novo, fala: -- Chamo o papai,
mamãe?
O balançar afirmativo
da cabeça desvencilha Páscoa das teias de seus medos. À medida que retorna à
cena, mais se apercebe da impossibilidade de não saber o quanto poderá poupar a
filha do mal que ainda pode lhe causar.
-- Sim, faça isso.
A menina se afasta e
Páscoa pede para Maria Luísa não comentar o que houve ali.
-- Melhor até deixarmos
esse tema para conversarmos em outra ocasião.
A advogada estranha o
pedido: será que são tão conservadores
assim?
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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