INHANGÁ
As
ondas vêm e vão, com força, sobre a fronteira natural do arraial com o areal do
Leme. Para Quitéria, o passeio terminava nesse ponto; dali mesmo, as três
voltavam para trás. Teme passar pelas costas da pedreira negra que é guardada
por dois outros rochedos. Juntos, os três formam as pedras de Inhangá. Quitéria
acredita que são assombradas – uma visagem que vigia a natureza e possui um
assobio forte, mais ruidoso do que o do mar. Porém, se não há outro jeito,
acaba indo. Mas antes deixa no chão o balaio que traz e bate as mãos para um
lado, para outro, para cima, para baixo.
--
Salve, salve, Inhangá, peço licença para passar. Somos do bem e seguimos em
paz. Saudadas as nobres pedreiras, aguarda um tempo e depois entra com o passo
apressado, com Sofia de um lado e Páscoa, do outro.
A
garota teme os riscos que a família corre ao passar por ali.
--
Porco e galinha, a Inhangá deixa matar?
--
Se galinha tá chocando e porca tá com porquinho, nem pensar.
--
Isso a gente não faz. Não tem perigo então.
--
Mas vai saber o que Inhangá acha que é bicho...
Rápido
no passo e no entendimento, o trio chega ao outro lado da praia. Aliviada,
Quitéria benze-se mais uma vez por conta do sucesso da passagem. Sofia corre em
direção à Pã e Páscoa para ao ver Grego vestido de um modo sóbrio, hirto, que o
torna elegantemente comum, sem o despojamento sensual que aprecia. Inquieta-se:
aonde será que vai vestido assim?
Caminham ao encontro um do outro – ela receosa e ele cauteloso com o que tem
para falar. Desenxabidos, assistem o alvoroço da chegada. O cachorro fareja
curiosamente o balaio de Quitéria.
--
Chispa daqui!
-- Vem cá, Pã, vem, chama Sofia.
A
ama recolhe os sapatos da menina largados pelo caminho e segue para as
amendoeiras da praia. Entre as árvores, retira da cesta um pano que estende
sobre a areia e nele se aboleta. Primeiro um joelho, depois o outro; em
seguida, gira e assenta o corpanzil. Da cesta ainda tira linha, agulha e retalhos,
que coloca no colo. Olha para o céu: que
dia feio! Depois ao redor: Sofia pegando conchinha, longe das águas, com Pã
por perto e a praia sem pescadores – antes
assim! O casal próximo das pedras – Que
não me saiam dali. Com tudo ao alcance dos olhos, põe-se a
costurar.
O
silêncio se esvai perto de Inhangá.
--
Tenho que estar cedo na cidade.
Páscoa
sente uma pontada funda no peito; receia que a ausência seja demorada.
--
Suponho que tenha um compromisso importante.
--
Podemos conversar em outro lugar?
A
indagação a aflige. Teme ir até aonde seus desejos pedem. Olha em direção a
Sofia e depois a Quitéria. Grego a encoraja.
--
Não sentirão nossa falta. Venha. Tenho pouco tempo.
O
temor se desdobra na vontade de ficar, de retardar o que quer que seja que
Grego tem a dizer. Porém Páscoa o segue. Ri de si mesma quando descobre que o
outro lugar era logo ali, nas costas de Inhangá. Mesmo assim, caminha em
direção ao mar, para adiar um pouco mais o que está prestes a ouvir. Grego a
acompanha.
--
Parece que vai chover.
--
É.
--
Uma companhia de teatro lírico chegou.
--
Mais trabalho então.
--
Muito. Ficarei na cidade até o mês que vem.
A
emoção chicoteia Páscoa. Uma onda forte arrebenta. Os dois recuam.
--
Voltará?
--
Têm ensaios, às vezes, à noite; afazeres logo cedo; melhor ficar direto lá.
Páscoa
se vê de novo sozinha, diante de partidas sobre as quais nada pode fazer. Como os homens andam, partem, transformam a
ausência na mais forte presença! Sente uma bambeza e se encosta às pedras.
Grego se aflige com a reação.
--
Hei, não fique assim. Talvez possa dar uma escapulida até aqui.
Escapulida! A expressão
fere os ouvidos, a sensibilidade, a memória de Páscoa. Pressente que o amor
escapa a Grego, que pode dar uma escapulida. Por sua vez, ela escapole, mas como
uma ladra que pula muros e janelas para roubar um naco de alegria – que, também
fugidia, já lhe escapa das mãos.
Grego
tenta contornar a situação.
--
Quem sabe não consigo algum tempo, numa noite dessas, e chego até aqui?
Páscoa
estremece. Impossível viver breves noites, mesmo iluminadas. O silêncio sombrio
deixa o outro nada à vontade. Será que não entende? Coisas da vida!
-- Há quanto tempo sabe desse
compromisso?
O
desconforto do homem transforma-se em pressão. Marcara o compromisso muito
antes do banho de mar. E quando começaram a se encontrar, decidiu tatear nesse
nevoeiro que se tornaram sem dizer nada. Por
que antecipar problemas?
--
Vida! Que diferença faz?
Páscoa
não sabe se foi chamada de vida ou se Grego apenas invocou a vida. E intui a resposta
não dita. Ele sempre soube o tempo que possuíam para brincar de faz de conta.
Aturdida, mira o mar. Percebe que, de fato, essa informação pouco importa.
Importa sim que ela é uma mulher casada e ele um homem livre que a brindou com
alegrias e a deixou se expressar como nunca ninguém lhe permitiu, sem pressioná-la a se entregar ao prazer maior desse encontro
transgressor. É isso o que dói, o que a amedronta: não saber como será
a vida dali para frente, sem a emoção, a leveza e a solicitude dessa
companhia.
O
desalento encostado nas pedras comove Grego, que se aproxima para abraçá-la.
--
Por favor, não, pede Páscoa, esquivando-se.
A
recusa o constrange, o impasse também. Não
percebe? Se pudesse ficaria. Além do mais, a vida é como música. Nem sempre
há harmonia e a dissonância ressalta a melodia. Mesmo desapontado com a reação,
tenta contornar a situação.
--
Quando volta para a cidade?
--
Faz diferença saber?
Assim é demais.
É querer tornar tudo mais difícil. A vida segue adiante... E os barcos
continuam a flutuar no mar.
--
Seja como for, estarei no Theatro Lírico.
--
Quem vai cuidar de Pã?
A
preocupação com o cachorro a redime ao espírito tensionado.
--
Vou levá-lo para a casa de Azulão.
Pés
enraizados na areia, o coração bate constrangido no homem, aflito, na mulher.
Uma trovoada se faz ouvir.
--
Vamos embora, vai chover.
Sofia
e Quitéria levantam acampamento, preocupadas com o paradeiro dos dois, que em
breve aparecem. Grego assovia – o assovio dói em Páscoa – e Pã corre em sua
direção. A garota e a ama se reúnem ao casal.
--
Vem chuva, fala Quitéria.
--
É melhor tomarem o bonde. Acompanho as senhoras até lá.
Apressados,
o grupo deixa a praia, as pedras de Inhangá.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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