EM BUSCA DA RECEITA DA FELICIDADE
O livro é escondido
debaixo da concha, no fundo da cesta de bordados, que está sempre disposta
sobre o tapete, ao pé da quina do sofá, na sala de estar.
Ao longo do fim de
semana, Páscoa borda quase todo o tempo. A cesta mais parece um ponto luminoso
sobre o alto mar. Suspensa por uma onda ilumina o riscado dos motivos bordados
na fina trama contida pelo círculo do bastidor. A bordadeira se vê então com
Grego num navio, a caminho de mundos novos. Mas a vaga passa, o ponto de luz
fica para trás... E a bordadeira se situa novamente na sua realidade.
Na segunda-feira, as
janelas do casarão são abertas para a arrumação. Há muito a ser feito com
Concheta e Piedade: essa a recolher as roupas para lavar, aquela aposta na
limpeza dos quartos, com Belizária e Quitéria.
A patroa se fecha na
sala de estar. Retira o romance da cesta de bordados, após acariciar a concha,
e acomoda-se com Madame Bovary no
sofá. Abre o livro pelo final e, pouco a pouco, libera todas as páginas apenas
para saborear as inúmeras descobertas ao seu alcance. Durante o movimento, o
bilhete de Grego se revela entre as folhas. Um sorriso se abre à medida que lê
o convite para a despedida no Jardim Botânico. A alegria entorpece o juízo e
floresce o prazer de se sentir desejada.
Erotizada por essa
promessa de aventura, Páscoa começa a desbravar a de Emma Bovary. Já nas
primeiras páginas, a leitura a arrebata pelas semelhanças de suas vidas. Órfã
também de mãe, criada numa escola-convento, a personagem casou-se cheia de
esperanças e desejou ter um filho que desbravasse por ela o mundo. Mudam-se as paisagens e os rostos, no
entanto, os desejos pouco se distinguem nos corpos diferentes que os ocultam,
reflete Páscoa. Porém, o que mais lhe
prende a atenção é saber o que Bovary fará com a sua insípida realidade
conjugal; como romperá a própria angustiante imobilidade que a impede de buscar
a felicidade aspirada. Palmilha essa trajetória em busca de inspirações para
dar conta da sua própria aventura. Mais do que isso. Almeja que o livro seja um
manual como o que vem junto com os motivos dos bordados que compra e que lhe
indica cores, linhas e pontos para produzir belezas que a reconfortam.
Durante esse
desbravamento, compreende a aragem fresca que a chegada de Léon traz à vida da
personagem, e delicia-se com a companhia do jovem, como se fosse ela própria a
palpitar sob a roupa que cobre Bovary.
O batalhão de limpeza
invade a sala. Quitéria resmunga:
-- Tá lendo? O médico
não proibiu?
-- Bobagem, retruca e
se refugia na biblioteca.
À escrivaninha de
Herculano, compartilha a tristeza de Emma quando Léon parte para outra cidade,
sem se declarar, e se espanta com o comentário do autor de que, em vez de
afastar os pensamentos que a faziam sofrer, Bovary se prendia a eles,
excitando-se na dor. Como alguém pode extrair prazer do sofrimento? Que
declaração infeliz! Incomodada, prossegue a leitura, que lhe apresenta
Rodolphe. Desgosta dele tão logo percebe sua falta de decoro, por se valer de
verdades para seduzir Bovary.
-- Não se sente revoltada contra a conjuração da sociedade? Existirá um
único sentimento que ela não condene? Os instintos mais nobres, as simpatias
mais puras, são perseguidos, caluniados! E, se, afinal, duas pobres almas se
encontram, tudo está organizado de tal maneira que não possam se unir.
Tentarão, apesar de tudo; agitarão as asas, chamar-se-ão uma a outra e, mais
cedo ou mais tarde, reunir-se-ão e amar-se-ão porque a fatalidade assim o
exige, pois nasceram uma para a outra.
O medo da conjuração da
sociedade pressiona o peito de Páscoa e se avoluma com novas reflexões
desconcertantes.
-- Não sabe a senhora que existem almas constantemente atormentadas?
Precisam alternadamente de sonho e de ação, das paixões mais puras e dos gozos
mais intensos, lançando-se assim a toda espécie de fantasias, de loucuras.
Páscoa se reconhece
nessas almas. Assombrada, segue o casal. Testemunha a entrega de Bovary. A
arrumação alcança a biblioteca e a leva a se recolher no quarto. Um novo tempo
começa. À medida que Emma se embaraça cada vez mais em dívidas para desfrutar o
êxtase do amor, cercada também de luxo, o coração de Páscoa bate mais
descompassado com o dela. Quer um percurso diferente, que Emma não cometa
imprudências financeiras que não terá como arcar com as consequências. Mas nada
detém Bovary. Sem dar conta que desafia a fatalidade, voa
nas alturas luminosas de seus anseios, onde tudo lhe parece possível. Limite. Equilíbrio. Calafrio! Páscoa
salta do corpo de Emma num pulo ajudado também pela entrada de Quitéria.
-- Deixa o Capitão
chegar e pegar você lendo... É confusão o que quer?
Fecha o livro; tem que
concordar com a ama. Continuará a leitura depois.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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