O ATERRO DO MAR
À medida que o carro se afasta, a emoção engolfa
Páscoa. Sente como se se distanciasse também da pressão de ser dona de si. Acabou. Grego se encantará com outras terras
e eu serei a lembrança de um amor proibido. Estou de volta à segurança da minha
vida. Um desejo não deveria existir se não há força para realizá-lo. Que
descompasso! A ordem do mundo se apresenta. Páscoa se reacomoda no banco,
passa a mão sobre o ombro da filha e cochicha:
-- Não comente nada do passeio com seu pai. É melhor
para nós.
A menina sabe que sim e
não quer se preocupar com essa nova omissão, mesmo porque Grego viajará. E há o
retrato com a mãe, que tanto desejou e está prestes a ter. Vale o segredo, a
infração.
Quitéria também pensa na
transgressão que acoberta e se justifica. Não há conselho que segure um
coração. Só o medo, que
acha que o mar levou junto com o abandono de Páscoa. Reza para Obá, orixá que
sabe tudo das loucuras do amor: Obá, cuide dela. Não deixe o capitão
descobrir. E leva esse maneiroso embora de vez.
O bonde já margeia o
aterro em construção. Páscoa observa os homens que nunca param de trabalhar, as
ferramentas em uso, as pedras e os montes de terra expostos ao longo da praia. Pensa
no aterro que realiza em si mesma, no talento da filha que a inspira, nas
diferenças entre a materialidade das conchinhas de Sofia e a da sua concha e
que lhe soam o pulso da natureza em liberdade. Ah, se tivesse uma amiga.
Alguém para me aconselhar. Sabe que pode contar com Quitéria para tirar uma
mancha de um vestido, reverter o sal de um cozido, guardar um segredo. No
entanto, não pode se valer do que a ama sabe para ajudá-la a recriar a sua vida
com o que tem às mãos. Seus olhos pousam sobre o livro, enquanto o bonde
continua a rodar ao longo das obras que aterram o mar, na claridade morna do
dia.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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