REFLUXO SEM SAÍDA
A
luz da manhã do domingo pascal alcança o quarto, a cama. Herculano acorda.
Levanta-se de pronto. A noite anterior lhe chega como fragmentos de um sonho.
Atônito, contorna o amarfanhado branco ocupado pela mulher, que dorme envolta
na camisola clara descoberta pelo lençol. Observa o abandono da perna estendida,
a displicência da outra dobrada, a redondeza da anca, a curva da cintura, a
pressão do braço sobre o seio, a boca entreaberta, os cabelos negros espalhados
sobre tanta alvura.
Neste
momento, durante o qual o prazer consumado evidencia-se por cada declive e
elevação, quando lhe é possível retornar a esse corpo do ponto em que o deixou,
acordá-lo com carícias, dar-lhe bom-dia, abrir-se para o que tem a lhe
oferecer; quando pode defender esse bem, impedir que qualquer acaso faça esse
corpo querer se afastar do seu; durante este momento em que pode tanto,
Herculano observa o que teme – o ardor além de qualquer medida, a ordem
transgredida pela carne, a natureza em pleno pulso e liberdade. Assombrado,
afasta-se. Banha-se e veste o autocontrole. Reinstala o silêncio e a própria
reclusão.
Durante
boa parte do dia, Páscoa vê o marido evitar sua amorosidade, enquanto ronda os
acessos fechados com uma disponibilidade meio tola, de doçura trôpega, que se
oferece na ilusão de poder acomodar a si e ao outro no espaço aberto pelo
prazer. Até o instante em que percebe que só ela está disponível. Volta-se
então para sua solidão, para sua encruzilhada emocional, com a disponibilidade
afetiva a bater-lhe a garganta, como um refluxo sem saída.
A
tarde cai. Com a ajuda de Quitéria, Sofia termina de fazer o presente que quer
dar à mãe. Expectante, a pequena a presenteia com um colar de conchinhas! Mais
uma enxurrada de emoções inunda Páscoa enquanto dedilha as lembranças
tilintantes do mar de Copacabana. Admirada com a proeza da filha, abraça-a e
diz que é uma menina afortunada por saber criar algo tão belo com o que tem.
Que use esse dom em tudo que quiser na vida, sempre, sempre e sempre, e a
despeito de qualquer impedimento. Depois desanuvia a seriedade despertada pelas
suas palavras, com beijos que salpica em cada face da menina – um beijo para
celebrar cada conchinha, o que faz a pequena rir alto e feliz. Depois coloca o
colar e se exibe para Sofia, para que possa apreciar sua própria realização e
memorizar a alegria que criou. Vem a noite e Páscoa fica sozinha. À janela do
quarto, à deriva no vai e vem das suas emoções, ampara-se na versão do que
aconselhou a filha. Devo recriar minha
vida com o que tenho à mão. Será
melhor para todos nós. A lua cheia brilha neste domingo pascal que caminha
para o fim.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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