TANTOS MARES
Os
passeios matinais ganham novo ritmo e cor, sem Herculano. As roupas tornam-se
leves e o caminhar sobre as areias transforma-se em uma trilha serpenteada, sem
riscado certo nem pressa, que adentra a praia um pouco mais a cada dia.
Quitéria
acompanha de longe e de quando em vez. Na maior parte do tempo, limita-se a
chegar ao portão, espichar o pescoço, conferir a ordem desordenada que
patrocina e retornar para os serviços do dia. Outras vezes nem se dá a tanto
trabalho. Resolve tudo da janela mesmo, quando Tião, encarregado também da
vigia, pergunta sobre a sinhá e a menina.
--
Tão lá, ó! Que mal há?
-- É. Tá tudo certo. Vou pra roça.
A
cada manhã, mais reservas, desconhecimentos e tristezas ficam pela praia. O mar
os leva embora e deixa em seu lugar novas possibilidades e descobertas.
--
Veja, diz Sofia pinçando uma concha da areia molhada.
--
É linda, exclama Páscoa.
Levadas
pela curiosidade, as mãos exploram o delicado achado e se tocam. Auxiliadas
pelos olhares tímidos, oficializam a alegria que sentiram com aquele toque e a
que sentem de estar juntas. Durante essa distração afetuosa, a arrebentação toma de assalto os pés. Em meio ao turbilhão da água e entre gritos febris, as mãos se entrelaçam, ajudando os corpos a se firmar e depois a correr para a segurança da areia seca. Lá, o susto evapora e as mãos se soltam para segurar a barriga de tanto que se ri e se lembra. Passada a algazarra, é hora de remediar o desalinho: torcem a barra da saia, retiram os sapatos e, com eles deixados na areia, seguem em nova estrepolia. Ora as mãos cortam o ar, ora apanham o
chapéu, que teima em voar, e então suspendem as saias, que é para as pernas
correrem melhor. Nunca essas mãos estiveram tão próximas e de comum acordo como
ao longo desses instantes aventurosos.
Na
sombra das pedras negras, entregam-se ao relaxamento. Sobre um degrau de areia,
Páscoa e Sofia sentam-se, resfolegantes, coradas de energia e bem-estar. Porém
na mãe algo mais palpita: a emoção de se saber tão próxima da fronteira natural
com as terras além. Um navio desponta no
mar e Páscoa fala a primeira coisa que lhe vem à mente tentando se concentrar
na filha.
--
Para onde ele vai?
--
Para o Congo, responde Sofia, sem pestanejar.
A
julgar pelas histórias de Tião, o Congo é o lugar mais remoto que a sua
imaginação infantil pode conceber.
Como
eu, constata
Páscoa, lembrando-se de que dera a mesma resposta ao pai, quando pequena. A
semelhança perturba e o resgate chega.
--
Agora é a minha vez. Pra onde o navio vai?
--
Para o mundo sem fim, diz a mãe, com uma expressão de assombro humorado que
torna o momento ainda mais fantástico para Sofia.
Enquanto
pensa nessa eternidade geográfica, a menina roça os pés na areia. Páscoa a
imita. Juntinhos, os pés das duas escavam e se cobrem, numa tola brincadeira.
Sofia pergunta se esse não é o melhor passeio que fizeram. Páscoa diz que sim.
A filha estende-se na areia e contempla o céu azul, em completa felicidade.
--
Deita também.
Páscoa
hesita. Será adequado?
--
É bom, insiste a menina.
Vagarosamente,
a mãe se deita. A sensação de prazer despertada pela terra firme e fresca
percorre vértebra por vértebra da coluna e se irradia pelo corpo. A vida assim é tão leve. A prazerosa
leveza suscita também reminiscências de brandura similar... E Sofia aponta para
o céu.
--
Olha aquela nuvem.
--
Qual?
--
Aquela com cara de risada.
Novos
risos, novas graças, um novo modo de ser e estar são experimentados. A garota
se põe de pé.
--
Vamos subir nas pedras?
O
receio paralisa Páscoa. Não posso. O
banhista... Pensamento e insegurança são desmobilizados pela travessura que
se deslancha e a lança em direção à filha.
--
Cuidado.
--
É fácil, olha!
--
Espera, pede Páscoa, apoiando o pequeno corpo.
A
menina sente o conforto do contato que a protege e a impulsiona para o estreito
degrau de pedra. Vira-se e acha a mãe ainda mais bela. Estende as mãos – é a
sua vez de apoiá-la. Entre suportes e dianteiras revezadas, as duas escalam as
pedras, vibrando com a façanha. Param no alto, tomadas de prazer e com a visão
das terras além.
Num
impulso, Sofia se enlaça à cintura de Páscoa e afunda a cabeça no seu ventre.
Corpos saudosos de sempre se abraçam, entregues à ressonância de tantos mares.
Lágrimas vêm ajudá-las a esvair dores e curar feridas, desencontros, ausências.
Lavando faltas, culpas e medos nessas águas, Páscoa envolve Sofia com o amor
que tanto temeu. Como o bem pode sobreviver ao mal? Deseja dar à filha o
prazer do mar.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by
Maria Tereza O. S. Campos
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