DO IMPENSÁVEL
O
relógio badala a décima primeira hora da noite. Páscoa borda o lençol já cheio
de diferentes correntezas de azul. A mão por debaixo do pano faz com que ele
caia em repuxos sobre o colo de onde se estende sobre o sofá. Mesclas de linhas
circundam o braço do móvel, que ainda ampara uma tesoura e um coração de pano
trespassado por agulhas. Silencioso e abatido, Herculano aparece. Para à porta
da sala. Páscoa percebe sua presença e ergue o rosto.
--Tudo
bem?
--
Por que acordada?
--
Aguardava você.
Herculano
abre um sorriso terno. Em outra reação inusitada, deixa a pasta sobre a
poltrona e desabotoa a farda ali mesmo enquanto observa o bordado. Páscoa se
arrepende de ter se exposto com o seu mar.
--
Estou tentando bordar a enseada.
O
marido balança um sim com a cabeça, despe-se do casaco da farda e a solta sobre
a poltrona. Caminha para o sofá. Surpresa, prontamente a esposa abre espaço:
puxa o lençol para mais perto de si e o vê se sentar ao lado, reclinar-se no
encosto, estirar as pernas e afrouxar o colarinho.
--
A vacina foi aprovada.
Desapontamento.
Páscoa esperava que Herculano e os companheiros vencessem essa contenda. Nem
tanto pelo triunfo da livre-escolha dos homens, e sim porque possuía esperanças
de que a vitória abrandasse os ânimos dele e criasse condições mais favoráveis
para pedir a separação.
--
Sinto muito.
--
É só uma batalha perdida, não a guerra.
Páscoa
compreende a nulidade de esperar por um momento adequado para o que tem a
fazer. Com Herculano, uma luta se sucede a outra, sem tréguas. Observa a
aparência fatigada do marido e pensa no longo histórico de dedicação à
República. Tamanho empenho lhe parece um sorvedouro de forças inúteis até para
ele.
--
O que vem pela frente?
--
Tudo pode acontecer.
--
Tudo o quê?
--
Não se preocupe com isso.
O
impensável acontece de modo ainda mais radical do que o inusitado da ternura no
rosto, da farda tirada ali mesmo, da pasta deixada na poltrona e dos modos
relaxados no sofá. Herculano se inclina em direção ao colo de Páscoa e invade
sem cerimônia a correnteza das emoções bordadas. Deita a cabeça sobre o lençol,
com as pernas sobre o assento. Jamais se permitiu tal descontração nem se
apossou de tanto. Páscoa é incapaz de proteger o bordado dessa invasão. Mira a
longitude abandonada que lhe suscita o atrasado dessa entrega que sempre quis
acolher. Inunda-se de compaixão. Espeta a agulha no coração trespassado, pousa
uma mão sobre o braço do marido e, com a outra, afaga os cabelos dele com a
tristeza de saber que não há mais como resgatar a jornada em comum. Herculano
fecha e abre os olhos, reconfortado em sentir que tem um lar.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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