terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Cinquenta e Sete

DO IMPENSÁVEL


O relógio badala a décima primeira hora da noite. Páscoa borda o lençol já cheio de diferentes correntezas de azul. A mão por debaixo do pano faz com que ele caia em repuxos sobre o colo de onde se estende sobre o sofá. Mesclas de linhas circundam o braço do móvel, que ainda ampara uma tesoura e um coração de pano trespassado por agulhas. Silencioso e abatido, Herculano aparece. Para à porta da sala. Páscoa percebe sua presença e ergue o rosto.
--Tudo bem?
-- Por que acordada?
-- Aguardava você.
Herculano abre um sorriso terno. Em outra reação inusitada, deixa a pasta sobre a poltrona e desabotoa a farda ali mesmo enquanto observa o bordado. Páscoa se arrepende de ter se exposto com o seu mar.
-- Estou tentando bordar a enseada.
O marido balança um sim com a cabeça, despe-se do casaco da farda e a solta sobre a poltrona. Caminha para o sofá. Surpresa, prontamente a esposa abre espaço: puxa o lençol para mais perto de si e o vê se sentar ao lado, reclinar-se no encosto, estirar as pernas e afrouxar o colarinho.
-- A vacina foi aprovada.
Desapontamento. Páscoa esperava que Herculano e os companheiros vencessem essa contenda. Nem tanto pelo triunfo da livre-escolha dos homens, e sim porque possuía esperanças de que a vitória abrandasse os ânimos dele e criasse condições mais favoráveis para pedir a separação.
-- Sinto muito.
-- É só uma batalha perdida, não a guerra.
Páscoa compreende a nulidade de esperar por um momento adequado para o que tem a fazer. Com Herculano, uma luta se sucede a outra, sem tréguas. Observa a aparência fatigada do marido e pensa no longo histórico de dedicação à República. Tamanho empenho lhe parece um sorvedouro de forças inúteis até para ele.
-- O que vem pela frente?
-- Tudo pode acontecer.
-- Tudo o quê?
-- Não se preocupe com isso.
O impensável acontece de modo ainda mais radical do que o inusitado da ternura no rosto, da farda tirada ali mesmo, da pasta deixada na poltrona e dos modos relaxados no sofá. Herculano se inclina em direção ao colo de Páscoa e invade sem cerimônia a correnteza das emoções bordadas. Deita a cabeça sobre o lençol, com as pernas sobre o assento. Jamais se permitiu tal descontração nem se apossou de tanto. Páscoa é incapaz de proteger o bordado dessa invasão. Mira a longitude abandonada que lhe suscita o atrasado dessa entrega que sempre quis acolher. Inunda-se de compaixão. Espeta a agulha no coração trespassado, pousa uma mão sobre o braço do marido e, com a outra, afaga os cabelos dele com a tristeza de saber que não há mais como resgatar a jornada em comum. Herculano fecha e abre os olhos, reconfortado em sentir que tem um lar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Nenhum comentário:

Postar um comentário