O ENTRE E O DEPOIS
A
manhã segue com os amantes entregues às carícias e há o verbo, a escuta, que
faz a mente da mulher se sentir apreciada como o corpo se sente. Páscoa
descobre a foto, que posou sozinha na cidade exposta em uma moldura sobre uma
cômoda. A emoção leva o abraço. Possuem-se novamente. Grego percebe o quão
sozinho estava e quão preenchido está pela entrega dessa mulher, que se
convence de que nasceu para amar. Levantam-se e improvisam o almoço. O prazer
de estar juntos emana dos dois. A prosa trocada e o vinho tomado prolongam a
presença à mesa. O mormaço do dia atravessa as janelas, amplia a moleza dos
corpos e os acomoda na tina de banho. Familiarizam-se mais com a intimidade que
ousam compartilhar. A luminosidade anuncia o avançar da tarde.
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Que horas serão?
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Mais de três, menos de quatro.
Páscoa
sorri de tamanha precisão.
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Devo ir. Tenho um estirão pela frente.
--
Levo você. Vou providenciar um cavalo.
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Será prudente?
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Vamos pela trilha do morro; quase ninguém passa por lá essa hora.
As
mãos masculinas se apoiam na borda da tina; o tronco feminino se inclina para
frente, o homem se levanta – uma onda é formada e mais outra, quando a mulher
volta a se recostar novamente. O mar sempre presente. Plenitude.
Logo mais, abraçada ao bem-querer, segue na garupa
do cavalo. Outro desejo que se realiza. Estreita o abraço e Grego acaricia a
sua mão.
--
Tenho a chave da casa de um amigo que viajou. Vamos nos encontrar lá. É mais
seguro.
Páscoa
diz que tudo bem, saboreando o que hoje possui. No alto do morro, param para
contemplar a paisagem: o Pão de Açúcar, Niterói lá adiante, a cidade até onde a
vista alcança; depois contemplam o lado de cá, as suas marcas: as pedras de
Inhangá, os morros, o mar. Abraçam-se e se beijam e se olham enamorados.
Prosseguem a cavalgada. Após os Arcos do Vigia, Páscoa apeia, separam-se e ela
corre descendo a ladeira. Sente-se livre como o ar que bate em seu rosto.
A
entrada no quarto ocorre acompanhada de uma Quitéria silenciosamente brava e
decidida a tomar satisfação. Porta fechada, a ama desfia um rosário de queixas:
o bom-senso roubado pelo maneiroso; o avançado das horas, quase em tempo de
Sofia chegar da escola! Já imaginou se o Capitão volta mais cedo? Ou se aquela
despachada bate no portão? Sim, porque foi por pouco. Mas o guia da ama não
deixou. Soprou no ouvido dela: vá para a rua. E ela foi. Deu de cara com Maria Luísa,
empombada no coche. E onde estava D. Páscoa? Ninguém sabia dizer. Pois, então,
entregue a ela este livro, falou-lhe a despachada, que Quitéria arremeda
enquanto retira a encomenda do bolso do seu avental. -- Tome, aqui está.
Páscoa
pega o livro e lê: Casa de Bonecas.
--
E se Belizária visse? Sabe no ouvido de quem a sua visita de araque ia parar?
Ainda mando essa menina embora. Filha, por favor, não faça mais isso. E tire já
essa roupa – olha lá se não dou um sumiço nela em vez de lavar. Até onde foi
nem quero perguntar. Mas temo. E quando descer pro jantar, faça cara de triste.
Porque esse rosto aí, qualquer um desconfia.
A
ama sai. Páscoa deita-se na cama, com o livro sobre o ventre. Está exaurida de
prazer e ousadia. Conheceu a paixão. Chegou salva em casa. Que dia
sublime!
Após
jantar sem o marido, borda na sala com a filha. Badala o carrilhão. Hora de
dormir da pequena. Acompanha Sofia até o primeiro degrau da escada.
--
Quando for deitar, passo no seu quarto.
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Está bem.
Sofia
sobe e Páscoa se afasta. Observa o modo como anda. Nada diferente. Percebe que
esperava uma mudança física em si após a entrega a Grego. Que bobagem! Olha-se no espelho sobre o aparador
da sala. Acha que talvez a pele esteja mais clara. Pode ser. Sorri sensualmente e se admira. Tem vontade de dançar.
Dança: os braços ondulam, o torso se inclina de um lado para outro enquanto as
pernas se deslocam, até que o corpo gira e girando chega ao sofá onde se deixa
cair.
Está
feliz. Sente-se indiferente ao perigo que correu e que corre se alimentar essa
felicidade. Acha que o tamanho do risco é condizente com o ganho que terá no
final: ser dona de si. De um jeito ou de outro, conseguirá a sua carta de
alforria. Mas não quer pensar em dificuldades, impasses e tristezas decorrentes
da separação. Quer ir para a cama e, no escuro do quarto, relembrar as delícias
da paixão.
Inclina-se
sobre a cesta de bordados, desfranze a abertura e sorri ao ver a concha no
fundo. Pega o bastidor sobre o sofá, dobra o pano do bordado e se percebe não
como a inquilina inadequada, que habita desconfortavelmente o porão da sua
casa-corpo, mas a sua proprietária, em vias de ocupar o cômodo central.
Experimenta uma desconhecida sensação de posse de si mesma. Inclina-se
novamente sobre a cesta, guarda o bordado, os apetrechos, puxa o cordão e o
fecha em laço.
--
Páscoa.
O
coração dispara, e a esposa expõe a face ao marido, temendo que algum vestígio
despercebido por ela crie suspeitas de traição.
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Como está?
--
Exausto, responde e se move em direção à biblioteca.
Sente-se
aliviada com o afastamento do marido e pensa em ir para o quarto. Mas a
percepção lampeja o recomendável de proceder como de costume. Levanta-se e o
segue.
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Já jantou?
--
Sim. E Sofia?
--
Dormindo.
Herculano
abre a porta da biblioteca e para. Páscoa também.
--
Por que não se recolhe?
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Não precisa de nada?
--
Não, obrigado. Apago as luzes quando for deitar.
--
Boa noite, então.
--
Boa noite.
Vira-se
e move-se normalmente. Só no corredor, corre. Conseguiu passar pela prova. Que agonia! Que seja; é o preço.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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