segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Capítulo Doze

     NÃO VOU FALHAR DESSA VEZ


     Teatral como de costume, Dr. Eugênio adentra o aposento da paciente e para ao vê-la de cabelos presos, sorriso bem posto e corpo docilmente ereto, no centro do palco, onde ele reinara absoluto durante as visitas semanais dos últimos dois meses. A fera domada quer sair da jaula, conclui envaidecido com a vitória que supõe ser obra sua. Está certo, méritos à parte. Ter alta é o que ela quer, para recuperar a liberdade possível e viver ancorada na esperança renascida pelo prazer conhecido no mar.
Concentrados de expectativas, Herculano, Sofia e Quitéria se distribuem pelo quarto. Só Tião se mantém à porta. O médico apropria-se do espaço.
-- Folgo em vê-la em tão bom estado. 
-- Sinto-me melhor. Inclusive...
-- Caríssima, sei como está e, se precisar confirmar, eu mesmo pergunto.
Olhares incomodados reluzem. Páscoa entende que falou demais.
-- O que faz de pé? Sente-se, ordena o médico. Obedecido, ausculta o coração da paciente e, em seguida, lhe faz perguntas.
-- Como anda a prostração?
-- Diminuiu.
-- O apetite?
-- Voltou.
-- A pressão do peito?
-- Desanuviou.
-- E a cabeça... Vazia, sem tormento algum?
-- Nenhum.
-- Disposta para a vida do lar?
-- Muito. Até gostaria de voltar a bordar...
O cenho sensível de Dr. Eugênio se franze e a paciente tenta contornar a reprovação causada pela fala indisciplinada.
-- Se achar conveniente, diz declinando o olhar para as mãos de Quitéria que retira do seu colo o fino tecido sobre o qual o médico auscultava há pouco seu coração.
Dr. Eugênio afasta-se. Põe o estetoscópio dentro da valise, cruza as mãos atrás das costas e caminha até a janela. Vira o rosto para trás – confere aquele ar cordial – e, num impulso único, abre a janela.
O sol entra absoluto. Páscoa tomba a cabeça sobre o encosto da poltrona. Luz e calor a banham. Nunca o sol foi tão forte e a claridade tão intensa. Herculano retesa-se: e agora, o que virá? Sofia enlaça a coluna da cama, como se abraçasse a mãe com as suas expectativas de dias felizes. Quitéria leva as mãos ao alto e em silêncio saúda: Epa, Epa Babá, salve gloriosa presença, Oxalá. Tião sai corredor adentro, aliviado pelo banzo vencido. Herculano pergunta se acabou o tratamento.
-- Ainda não, responde o médico. As emoções paralisam-se no quarto. -- No entanto, D. Páscoa poderá voltar para a vida do lar, em companhia da filha.
Os olhos de Sofia brilham novamente.
-- Poderá bordar sempre que quiser.
Pelo menos isso, retruca Páscoa em silêncio e aliviada.
-- Deve deitar-se uma hora após o almoço e recolher-se uma hora depois do jantar.
Quitéria balança a cabeça, memorizando a prescrição.
-- Nada de leituras, escritas ou grandes devaneios. É preciso poupar o cérebro, se não roubará a energia tão duramente recuperada.
Faz sentido, admite Herculano.
-- E como os ares frescos e salitrados do arraial são essenciais à recuperação, prescrevo ainda uma hora de passeio matinal pela praia.
Não! Protesta o marido consigo mesmo enquanto observa o indecifrável fechar de olhos da mulher.
-- Após o passeio, deverá tomar um copo de leite e realizar a higiene pessoal. Se estas prescrições forem seguidas à risca, Capitão, em quarenta dias, poderá levar sua família de volta para Botafogo.
-- Quarenta dias?
-- É o tempo necessário para a energia do cérebro se estabilizar. 
Quarenta dias, pensa Páscoa, inebriada com tamanha eternidade.
Os homens saem. Quitéria corre para providenciar-lhes café. Páscoa caminha para a janela. Sofia a segue e, como ela, apoia as mãos no parapeito. Timidamente, os rostos se voltam um para o outro. Nos olhos da mãe, a filha reconhece o olhar do retrato de quando Páscoa se casou; nos da filha, a mãe enxerga os pedidos de alegria que a sua melhora suscita. O calor eclode dentro da mulher com a percepção do peso dessa solicitação que também é sua. Mas há a esperança de ser capaz de nutrir a si mesma e a menina da felicidade possível. Não vou falhar dessa vez. Os rostos se voltam para a claridade do dia. Ondas em crinas brancas atravessam o mar azul.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Onze

PENETRADA, ATADA, MOVIMENTADA.


Com um sorriso doce, dado da poltrona do quarto, Páscoa recebe Herculano no retorno dominical ao sobrado. A inesperada recepção surpreende o marido, que devolve um riso rápido, inseguro em quanto pode confiar nesse sinal de melhorado. Deixa a maleta sobre a arca e o jornal sobre a cômoda – e a mulher constata a dificuldade para acender uma luz no rosto do marido.
-- Tudo bem?
-- Sim, apenas cansado. E você, como está?
-- Sinto-me melhor.
-- Espero que continue assim.
Herculano tira o casaco e o pendura. Solta os punhos da camisa, avaliando a expressão da esposa: serena. Deixa as abotoaduras sobre a cômoda e sai em direção ao quarto de banho, pensando nos sinais da cura.
Retorna em camisolão de linho. Deita-se. O corpo se compraz sobre a superfície lisa e fresca do leito, e o espírito se rende ao conforto que o cerca. Admite o quanto é bom ver a serenidade estendida ao lado: desse modo dá gosto de voltar pra casa. Sente vontade de possuir a mulher. O membro se enrijece e o controle se expressa.  Melhor não. Posso atrapalhar o tratamento. Mas a proximidade daquela carne e a própria segurança o impedem de desistir do desejo. A mão toca o ombro da mulher, que se vira com o braço arredondado para acolher a procura. Páscoa quer ser penetrada. Atada. Movimentada como foi pelas águas quando enlaçada ao banhista. O marido deita-se sobre a esposa e enterra seus anseios na fenda quente e úmida que o recebe. De fora chegam os estrondos do mar.


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Capítulo Dez

AO RESSOAR OCEÂNICO


Ao longo dos próximos dias, Páscoa desperta um pouco mais para a vida. Às vezes um movimento simples e banal, como o de girar a cabeça ou virar de lado, remete seus pensamentos para o fluxo e refluxo das águas sobre seu corpo, enlaçado ao do banhista. Repete o movimento com vagar, para ampliar a memória do ir e vir sob a força das ondas. Outras vezes, quase adormecida, ouve o rumor do mar como a voz do seu destino. Ainda que em sonho, quer viver suas emoções mais secretas. Mergulha nas vagas brancas do lençol e dos travesseiros, entregue ao ressoar oceânico. 
Nova manhã. Tobias empacota mantimentos sobre o balcão de olho no banhista, que se esgueira rente à parede em direção à porta, de onde avista a frente do sobrado. Uma janela no segundo andar está fechada em meio a todas as outras abertas.
-- O povo tá falando que o médico dispensou seus serviços.
-- Acontece.
-- Dizem que nem na clínica do Dr. Magalhães arruma serviço mais.
-- Não vivo do mar.
-- Mas o cerco tá montado. Tião do Congo sondou sobre você. Falei o que acho: gente de bem, vem e vai sem criar confusão.
-- Obrigado.
-- Não tem que agradecer. Fez o que fez e na razão. Não se vira uma mulher de cabeça pra baixo, muito menos no mar. Foi o que eu disse.
-- Daqui a pouco tudo se aquieta.
-- Enquanto não, saia da vista. Não arraste o que deve ficar pra trás. 
O aconselhado não responde. Talvez siga o conselho, se a luz da razão romper o nevoeiro da emoção.  Volta a olhar para a janela fechada. Suspeita que lá esteja o saudoso corpo que acolheu em seus braços. 


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Capítulo Nove

O TEMPO CERTO


Novo dia. Herculano parte no coche levado por Tião, em direção à estação do bonde, construída no miolo do arraial. Lá embarcará para Botafogo e só retornará no próximo domingo de noite. Pouco depois, no sobrado, Sofia caminha pelo corredor, de camisola, cabelos soltos e o rosto arredondado por uma curiosa expectativa. Alcança a porta do quarto de Páscoa e leva a mão à maçaneta. Quitéria chega.
-- Chispa daí.
-- Quero ver minha mãe!
-- Depois, ela tá descansando.
-- Mais?!
-- É. Mais. Anda. Vá lavar o rosto, trocar de roupa e tomar café.
Quitéria entra no aposento e fecha a porta atrás de si. Sofia faz beiço e se amua, mas logo se esquece da malcriação e se põe a andar balançando os braços de um lado para o outro, como se tomasse banho de mar. A sedução das ondas substituiu o desejo de estar com a mãe e a empurra corredor afora. Para cima, para baixo, seu corpinho ganha e perde altura, sobe e desce em movimento contínuo. E a menina que estava ali, nesse momento, já não está mais; está lá fora, com as mãozinhas grudadas nas ripas da cerca de madeira que separam o sobrado da rua, da praia, do mar.
O banhista e Pã surgem. O rosto de Sofia se ilumina. Porém uma dúvida palpita: deve evitar esse homem que enfureceu o pai e o médico ou conversar com quem ofereceu à mãe o deslumbramento que viu? Decide-se, encorajada pelo sorriso dele.
-- Mamãe acordou!
A boa nova desanuvia a alma ansiosa por notícias.
-- Como ela está?
-- Já disse: acordada.
O banhista ri. Pã late. E Tião aparece. Não gosta do que vê. Manda Sofia entrar, mas ela apenas sacode o corpo e fica.  O banhista adianta-se.
-- Vim saber da senhora.
-- Não carece a atenção. Sofia, pra dentro.
A menina dá dois passos e para novamente. O banhista insiste.
-- Posso ajudar de alguma forma?
-- A família dispensa.
-- Sofia, o que você tá fazendo aí fora? Já pra dentro, ordena Quitéria da porta do sobrado, com o cenho franzido e os olhos de través para o banhista.
-- Tô indo.
-- Pois então apresse o passo.
Embaraçada, Sofia acena um adeus furtivo.
-- Passar bem, senhorinha.
A menina empina o queixo e passa esticadinha, pisando duro, ao lado da ama, que a segue. A porta do sobrado se fecha. Os homens se olham.
-- Toma rumo, moço. É o melhor que faz.
O banhista entende o conselho. Deve sair dali e deixar aquela criatura em paz. É mulher de bem, casada e com um militar. Mas a emoção cresta a pele, nubla a mente do corpo, encantado pela sereia. Quer ouvir de perto a voz desconhecida, mergulhar um instante a mais nas águas negras do seu olhar e só depois decidir o que fazer. Aguardará o tempo certo. Assovia para Pã e se afasta, ouvindo a voz de Tião:
-- Cuide por onde anda. Aqui não é o seu lugar.


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Capítulo Oito

VENCER NA RUA, PERDER EM CASA.


Entardece. Herculano repassa os fatos ocorridos pela manhã de frente para o mar e do alto das pedras negras, fronteira natural entre a praia do arraial de Copacabana e a do areal do Leme. Desse lado, luscofusca a dúvida: o que o banhista pensa fazer? Do outro, cintila a certeza: o medo de vencer na rua e perder dentro da própria casa. Impossível não eliminar esse risco: o médico correrá com o exibicionista para longe; sem chance de ficar aqui ou rondar a casa. Tião vigiará.
Outro observador também está diante do mar, porém no morro onde termina o areal do Leme, e com Pã a andar por perto. A imagem de Páscoa ainda boia em seus olhos, enquanto seus braços ressentem a falta do corpo quente e arfante que acolheu. Grego sente-se oco. Terá de ver essa mulher de novo. Saber se as ondas levaram embora aquele abandono, se a vida despertou como deve ser: renovada a cada dia.
No quarto do sobrado, imersa no oceano branco do leito, o mar é um sonho bom do qual Páscoa não tem pressa de acordar. 



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Capítulo Sete

PROGNÓSTICOS POSITIVOS DE CURA


Páscoa dorme cercada de travesseiros, na cama de casal do sobrado. As cortinas estão parcialmente abertas e a janela fechada. Dr. Eugênio e Herculano estão presentes, penteados, recompostos. O médico toma o pulso da paciente. Em seguida, bate de leve em sua face. Ela resmunga, mexe-se e se aquieta de novo. O doutor gosta da reação.
-- Parece estar bem.
Herculano espera que sim. Por ela. Por ele. É preciso pôr um fim nesse martírio
O médico deixa o quarto. Na mesa da sala, abre a sua caderneta; experimenta o suco servido por Quitéria, aprova, estala os lábios e escreve.
11/01/1904 – Tratamento de neurastenia crônica. A paciente foi levada ao mar. Retornou do banho, desfalecida. Tratada com inalação de clorofórmio, aquecimento do corpo e fricções no pulso, voltou a si. Em casa, mostrou-se fraca, porém dócil – atributo este não demonstrado ao longo do tratamento. Realizou a higiene pessoal. Tomou leite. Rompeu o silêncio de costume e perguntou se as janelas do quarto podiam ser abertas. Para disciplinar a paciente com histórico de muda rebeldia, o pedido foi parcialmente atendido e as cortinas descerradas. A paciente agradeceu – outra evidência da cordialidade a caminho e dos prognósticos positivos de cura. Recolhida à cama, adormeceu.
Toma mais um gole de suco e retoma a escrita.
Apesar de as estatísticas registrarem ocorrência de sono após o banho de mar, sobretudo nos países tropicais, vemos este fato como efeito do lastimável procedimento do banhista profissional. Em vez de três imersões do corpo com a cabeça para baixo, conforme orientações precisas, o citado manteve a paciente de pé. Esta, dominada pela força masculina, se lançou às consecutivas ondas e realizou uma longa imersão. No momento ainda dorme. O sono é calmo e os sinais vitais, medidos hora a hora, estão normais. A paciente será mantida no quarto, em reclusão parcial, até a nova visita semanal, quando os procedimentos serão reavaliados. Condições do mar propícias, com ondas baixas e temperatura da água agradável.
O médico bebe o final do suco e dá por encerrada a consulta – a paciente pode ficar sob os cuidados da família. Retira-se.


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Capítulo Seis

O BANHO DE MAR


Um rajado avermelhado colore o céu lá para os lados do areal do Leme. O ar exala o frescor frouxo da madrugada de verão. O mar está calmo. Ondas baixas rolam mansas e preguiçosas. Ao longe, um barco flutua ao sabor da calmaria. Mais além, na linha do horizonte, um navio avança rumo à cidade. As poucas construções da orla estão fechadas, exceto a da venda no fim da curva da praia, do lado de cá. O dono, o português Tobias, varre a frente do estabelecimento e presencia o deslocamento do pequeno e coeso grupo pela praia em direção ao sol que em breve nascerá.
Páscoa, toda vestida de preto, de capa com capuz sobre uma touca franzida, segue frágil, trôpega, amparada por Quitéria e Tião. Dr. Eugênio e Herculano fazem a escolta. Sofia vem atrás atenta à mãe.
O cortejo se move com dificuldade sobre a areia fofa. Dr. Eugênio segura a valise de couro: Três imersões apenas, nada mais. O susto e a água fria dissiparão as ideias que lhe perturbam o juízo. Herculano gostaria de ter feito o percurso no coche da família: Tudo seria mais rápido. Que seja! Páscoa precisa ativar a circulação para enfrentar a temperatura da água. Sofia ainda não sabe quem levará a mãe ao mar, se nem o pai nem o doutor usam trajes de banho: será que vai sozinha? Não. Papai não deixará. Tião também está receoso. Já puxou rede. Conhece a força do mar: a sinhá não vai aguentar! Quitéria tem receios parecidos e reza: Oda-Ya, salve Senhora Amada! Eu vos peço: leve embora todo mal e não deixe que nenhum outro pegue a nossa filha! A filha que neste instante procura abandonar-se de modo completo, antes de ser levada para o mar. Páscoa não sabe como tudo será e a perspectiva a remete ao fim: Como será afogar? Melhor dormir. Ser engolida sem ver, engolir sem sentir, morrer sem saber. No entanto, a cada passada, é o desejo de viver, incipiente e oculto, que lateja em seu corpo exposto a tanto céu, areia e mar.
Assim, o cortejo se desloca com o calor colorindo as faces, o suor porejando na testa, a roupa pinicando a pele e a atenção fixa nas negras pedras, que se aproximam a cada passo e são o ponto final do deslocamento.
A fraqueza se apodera da mulher, que escorrega para a areia das mãos que a amparavam. Nuvens brancas deslizam no céu azul da mente, nessa breve inconsciência. Escuta ao longe a voz do marido que a chama. Abre os olhos: rostos assustados sobre si ganham nitidez. Herculano pede o retorno para o sobrado. O médico o afasta pelo braço.
-- O desmaio é normal. Suspender a prescrição será uma vitória da doença, com consequências piores. Não poderei responder por elas.
Diante da fragilidade da esposa, do temor da filha, da obediência aflita dos agregados, Herculano hesita e lança sua dúvida para o mar: o que fazer? Afrouxar as rédeas? Ousar em outras direções? Quem sabe até tomar a mulher nos braços e fugir dali, para poderem chorar a sós, acolhidos um no outro, o infortúnio que os enlaça? Impossível. O Capitão não sabe abrir o que está trancado no peito. Decide.
-- Vamos em frente.
Satisfeito, Dr. Eugênio manda Tião erguer a paciente. Cabisbaixa, enlaçada pelo empregado, Páscoa volta a andar, em novos passos cansados.
De repente, um cachorro grande, de pêlo curto, amarronzado, atravessa o caminho. Ouve-se um assovio e, em seguida, uma ordem: -- aqui, Pã. O cão atende o chamado e corre na direção do dono, um homem de olhar cálido, braços torneados expostos pelo macacão de banho sem mangas. De pé, num escarpado da pedreira negra lambida pelas águas, apenas se avizinha da maturidade, iluminado pelo sol que começa a nascer atrás de si.
A máscula jovialidade exposta fustiga Herculano. Sofia entende quem levará a mãe ao mar e confia. Quitéria e Tião do Congo entreolham-se, ressabiados. Dr. Eugênio confere as horas: Pontual o banhista. Páscoa permanece de cabeça abaixada e assim é levada pelos agregados e pela filha até o costão negro, onde se senta num banco de areia. Coberta com tanta roupa escura, mais parece o prolongamento das pedras.
O médico repassa a prescrição com quem a executará e ordena que retirem a capa da paciente. O inevitável prestes a acontecer oprime mais um pouco o Capitão. Despida do manto, a mulher ergue vagarosamente o rosto e vê o banhista que vem em sua direção. Recatos driblam o encontro dos olhos, que buscam se conhecer. O banhista absorve a densa e comovente leveza que irá acolher; Páscoa recebe a máscula candura que envolverá seu corpo e que neste instante se curva diante dela com os braços abertos para tomá-la. Herculano dá um passo à frente e o médico o detém pelo ombro. Com o corpo crispado, o Capitão suporta a pressão de ver o outro enlaçar sua mulher, quase desnuda naquele traje de banho, passar ao seu lado sem demonstrar qualquer deferência e partir com ela para protagonizar uma experiência da qual será um mero expectador.
De olhos fechados, coração disparado, Páscoa segue no colo desconhecido. As pisadas sobre a areia produzem um chiado áspero. O corpo do banhista é quente; o dela sacoleja no deslocamento. Os braços dele são fortes e a carregam com cuidado. A cada balanço, o ar é mais leve, o som do mar mais intenso e as sensações mais vívidas.
Cessa o crepitar da areia. Tampouco se ouvem outros movimentos atrás, apenas o pisar do banhista sobre a água rasteira. Os limites se misturam. A transpiração escorre. O cheiro do homem é familiar à mulher. Rompeu a distância e chegou até ela, lá no quarto; é o cheiro de mar. Ele é do mar. Eles estão no mar. Páscoa abre os olhos e, atordoada, contempla o mar-horizonte à frente: o que será de mim?
O banhista sorve cada olhar, cada arfar, cada pequeno estremecimento desse ser que acolhe em seus braços, atraído por sua fragilidade e seguro do bem que quer lhe proporcionar. Na alternância do movimento de suas pernas firmes, pressiona o fundo das águas, de inconstante geografia, e avança mar adentro.
Curvatura suspensa, Páscoa embebe-se do circundante leito líquido, rumoroso e possante que se estende abaixo, a perder de vista. Ora é tomada pelo êxtase, ora pela agonia de se ver cada vez mais perto de ser engolfada por essa tremulante imensidão. A pele mela e o abandono do corpo parece escorrer e dissolver-se nas águas espumantes. Páscoa ousa tocar o mar. Desliza a mão sobre a beira ondulante. Colhe em concha a água e engole um pouco de mar. O desejo cresce no banhista.
Sempre em frente, a água cobre os quadris da mulher em vagas refrescantes de alucinado bem-estar. O homem diz para ela confiar, pois a manterá segura. A voz revela um sotaque desconhecido. 
Uma onda se aproxima. Páscoa se recusa a vê-la e esconde o rosto no peito protetor. Medo e prazer espraiam-se pelo seu corpo conforme é suspensa pela onda. -- Ah...! – exclama tomada pelo estonteante deleite vencedor. A vaga desliza e, ao passar, devolve Páscoa, esvaziada, maravilhada, para a imensidão flutuante, no colo acolhedor. 
O banhista retira o braço que circunda as pernas da mulher, que se agita e se agarra ao pescoço dele, temerosa em pisar o incógnito solo. De novo a voz aveludada sopra ao seu ouvido: -- Coragem! Estou com você.
Novas águas passam e a empurram para a entrega final. Páscoa aninha-se na acolhida oceânica. Um apaziguamento profundo nasce e propaga-se pelo seu corpo molhado, tocado, envolto por vastidões. Mas logo os braços se inteiram do indecoroso dessa intimidade reconfortante. Recatados, reticentes, desenlaçam-se. Confuso, o corpo também se desprende sem saber mais onde se colocar. No espaço aberto, o banhista a reacomoda, e os olhos dela enchem-se de novo da imensidão à sua frente.
Outra onda se aproxima. A ansiedade comprime o peito de Páscoa e mãos mais firmes cingem sua cintura. -- Vamos juntos, soa o pedido. Num salto louco, impulsiona-se e se lança, com o banhista, à onda-êxtase que os suspende. Tornam-se um ponto escuro no corpo azulado e tremulante do mar.
Grande tormento é esse ponto para Herculano. Sitiado na praia, não tem como precisar a distância a natureza dos fatos que tornam aquela imagem tão indivisível. Dr. Eugênio compartilha a mesma dúvida e, em acenos frenéticos, exige o retorno imediato dos dois. Quitéria e Tião estão preocupados. Sofia nem tanto. O encantamento com o banho de mar suplanta receios. Pã pula e late antes da arrebentação.
Alheios às emoções na terra firme, paciente e banhista extasiam-se, encharcados da existência um do outro. Páscoa é grata a esse homem por ser quem ele é; ao destino que o trouxe até ela, para converter a punição médica nesse imenso deleite; ao mar, que transformou o mal que sentia no bem que agora experimenta. Ouve outro pedido: -- Segure a respiração. Pressente o porvir: que venha o fim!
O banhista a suspende e a puxa para dentro do corpo do mar.
Submersa e ancorada ao homem, quase agachada no chão, sente a pressão da onda que rola sobre si e arranca sua touca. Seus cabelos se espalham como algas na massa oscilante raiada de sal e de luz. Num crescendo arrebatador, desaparece até mesmo o som cavo do mar e a mulher escuta apenas as batidas do seu coração ressoando nas têmporas. O desejo de viver clama dentro dela. Um instante a mais e o banhista a ergue rapidamente. Quando irrompe sem ar na superfície, cabelos a jorrar sobre a água circulante, boca, olhos e entranhas abertas e salgadas, Páscoa inspira, geme e desfalece.
Na praia, o grupo desalinhado assiste ao tenso retorno do banhista, que luta com o fluxo-refluxo das ondas, trazendo nos braços a desfalecida. Pã nada na direção do dono. Angustiadas, Sofia e Quitéria se abraçam. Herculano e Dr. Eugênio correm do avanço das águas, aviltados com o indisciplinado banho de mar. Só Tião permanece à espera de uma ordem qualquer, com as águas cobrindo seus pés.
No recuo da onda, o marido ocupa de novo o espaço. A pressão no estômago é atroz. A boca amarga. A cólera o domina. De peito aberto, em saltos furiosos, adentra o mar. Rostos tensos enfrentam-se cada vez mais próximos. Frente a frente, o Capitão toma a esposa do banhista e volta com ela em seus braços.
-- Imprudente. Está dispensado para nunca mais, diz o médico para o servidor.
O olhar fulminante de Herculano também alcança o insolente, que sabe bem o que fez e faria tudo de novo por essa mulher. Mas não gosta de confrontos e recua.
-- Rápido. Retire-se daqui com este cachorro infernal, insiste o médico.
O banhista ainda olha para a mulher, antes de partir, seguido por Pã.
Livre da presença indesejada, Herculano estende Páscoa sobre a areia. O grupo se ajoelha ao seu redor. Dr. Eugênio cuida da paciente, que não reage. A aflição sua nos corpos e a dúvida aperta o coração de Sofia: E se o sono do mar não passar? Seu rosto aflito encontra o de Herculano, atônito. A filha não sabe se pode lançar-se ao refúgio do corpo paterno. O pai não se permite acolher a aflição da filha e tampouco sabe o que fazer. Vira-se para o mar. Sua memória insiste em devolver a mulher para as águas; mira então as pedras negras. Ninguém está lá. Mas o homem veio de lá. Um músculo se contrai sob a face tensa, e o Capitão ordena o retorno para casa. Todos obedecem, até o Dr. Eugênio. Começa o deslocamento, com Páscoa levada no colo de Tião. Súbito, a voz de Sofia corta o ar: -- Acordou. Mamãe acordou!


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Cinco

TANTA INCAPACIDADE


Transcorrida a semana, Herculano retorna para o arraial de Copacabana. Entra no sobrado e observa a sala impecavelmente arrumada: as flores no vaso, as almofadas sobre o sofá, a mesa posta para o jantar. Escuta os ruídos das panelas movimentadas por Quitéria na cozinha. O tempero refogado chia, o cheiro alcança o ambiente e o apraz, em outro sinal da rotina acolhedora, na qual só falta a figura da esposa bordando serenamente a sua espera. Mira o alto da escada. A perspectiva de ter de encarar o desalento lá em cima sombreia seu rosto. Investe-se de paciência e segue para o inevitável. Encontra Páscoa recostada na cama. Olham-se. Calado, depõe um jornal sobre a cômoda e a maleta sobre a arca. Só então fala.
-- Como se sente?
-- Não bem.
-- Reaja, não se entregue assim, diz e dá as costas para o leito. Desabotoa o casaco, conferindo com o olhar a conformidade do ambiente. A mulher pede:
-- Por favor, cancele a visita do médico.
-- Sabe que não posso, responde, pendurando, com esmero, o casaco no cabide. Depois afrouxa o colarinho da camisa e se volta para a esposa. -- Esteja de pé amanhã para receber o Dr. Eugênio e evitará o constrangimento desse banho de mar. Se não puder fazer isso por mim, faça-o por Sofia.
O peito de Páscoa aperta e ela desvia o rosto. Ele se aproxima.
-- É assim que mostra amor pela própria filha?
Não obtém resposta. À beira da repulsa, senta-se na borda da cama e observa o fastio ali deitado.
-- Não percebe que arruina nossa vida com esta prostração obstinada?
Mais uma vez, o silêncio se faz. Irritado, vira-a pelos ombros.
-- Por quê? Por que não reage?
Páscoa fecha os olhos. O gesto incita a raiva no marido, que a sacode.
-- Em nome do bom senso que sobrou em você, responda!
Tumultuado com a própria agressividade, larga a esposa e se afasta, enquanto Páscoa se enrodilha, enlaçando as pernas e repetindo em silêncio que não pode agir assim, que não pode se soltar desse modo completo, que não pode, não pode se rebelar.
Apoiado na cômoda, Herculano busca se controlar. UM BARRACO DE MENOS – parece gritar a legenda da caricatura do jornal diante dos seus olhos. Impossível deixar de se enojar perante o desenho do prefeito, obstinado em desalojar pessoas que não têm onde morar. Inevitável lembrar-se das lutas a travar para conquistar o lugar almejado no mundo. Fatal deparar-se com a sua necessidade de voltar para casa a cada noite, tirar a armadura e se recompor, em paz, para a batalha do dia seguinte.
-- Apenas um lar. É só o que peço, desabafa Herculano antes de sair.
Se eu pudesse, pensa Páscoa, tomada pelas lembranças de quanto quis criar esse lar, de quanto se empenhou para iluminar o rosto do marido a cada retorno e ser iluminada pela rara luz dos olhos dele. Como desejou que essa luz aclarasse as trilhas do abrandamento de regras sufocantes. Quem sabe, se nutrida pela intimidade nascida desse abrandamento, talvez não tivesse se desatado de tudo o que ama e sucumbido à prostração que diminui a dor de sentir as horas, os dias, os anos de tanta incapacidade. O que fazer? Deixar todos de vez? A própria vida? Ser engolida pelo mar?
A imagem do globo terrestre, de base de madeira e régua de prata, companheiro dos anos do internato e guia das inúmeras rotas que traçou para viagens tão sonhadas e jamais realizadas, rompe a névoa do torpor. Países coloridos e oceanos azuis giram e embalam Páscoa em seu abandono, enquanto Herculano e Sofia sentam-se em silêncio à mesa do jantar.


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Quatro

PICO INSTANTÂNEO DE UM ÚNICO FUROR


O lento abrir e fechar dos olhos não define se Páscoa está quase a dormir ou prestes a despertar, nem a penumbra do ambiente lhe revela se entardece ou amanhece. Pouca diferença faz para tamanha reclusão. Nesse abrir e fechar de pálpebras, ela vê a sanca branca de desenhos ondulados... Adormece.
No aposento vizinho, Sofia está sentada em sua cama, com a janela aberta para a tarde que cai. Retira um retrato de dentro de uma caixa revestida com um tecido floral desbotado. Na fotografia, os pais posam juntos. A mão de Páscoa se apoia sobre o antebraço de Herculano, dobrado em frente do próprio corpo. O pai emana sóbria responsabilidade e exibe, na lapela da bem talhada farda de tenente de então, um pequeno ramo de delicadas flores. Páscoa usa um elegante vestido escuro e um véu branco de bordas que lhe roçam os ombros. Preso por uma tiara de flores de laranjeira, idênticas à da lapela do marido, o véu emoldura o jovem rosto. Uma chispa de sorriso ilumina a curiosidade do olhar. A menina suspira inundada de amor.
Revira a caixa e pega uma foto de quando era bebê, sentada no colo do pai e com a mãe de pé ao lado, com um semblante triste. Consternada, acaricia a foto e toca em outra na qual está sozinha com Herculano. Embaralha essa imagem em meio à ausência inscrita nos poucos retratos ali guardados. Páscoa preferiu assim. Não quis registrar para sempre a tristeza de uma vida na qual não se encaixava pela rigidez das normas e pela própria incapacidade de ser feliz com o que possuía. Lágrimas nascentes embaçam a visão de Sofia, mas uma esperança brilha – e a menina corre na direção do que concretizará essa esperança. Da janela, contempla o mar, certa de que aquela imensidão de mistérios irá curar a mãe, assim como o susto faz passar o soluço.
No quarto vizinho, o mar também se faz presente de maneira onipotente. Transformou a cama na pequena parte descoberta de um platô, de onde Páscoa fita a fúria das ondas. A cada estrondo, ergue-se um paredão de espumas brancas, enquanto águas violentas avançam em sua direção. Acuada, teme ser arrastada, engolida, dissolvida por essa voracidade. Outra vaga levanta-se, mais alta, mais forte, e se quebra sobre Páscoa, arrastando-a em seu turbilhão. Submersa, debate-se em busca de ar. Pernas e braços se agitam e impulsionam o corpo no caminho de volta. Mas ao romper a superfície espumante, é alcançado por novo repuxo. Mulher e onda transformam-se num pico instantâneo de um único furor. A vaga volta-se sobre si mesma, Páscoa cai e é engolida pela arrebentação. Quer gritar, mas a voz lhe falta.
Sôfrega, acorda. Olha para as mãos, para as pernas, para o cômodo e deixa a cama. A ação traz a vertigem. Apoia-se num móvel, em outro, na parede e chega até a porta que não se abre. Exaspera-se. Em passos cambaleantes, alcança a janela, descerra a cortina, abre as venezianas e inspira o ar da noite que cobre o mar do seu destino. Quando isso terá fim?


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

domingo, 23 de novembro de 2014

Capítulo Três

NATUREZA FEMININA EM COLAPSO


Há cinco semanas Herculano procurara Dr. Eugênio, atormentado com o desalento da mulher. A primeira consulta se realizou na casa da família, em Botafogo, e as demais nesse sobrado, no arraial de Copacabana, onde Páscoa nasceu e está em tratamento. Agora, na sala, o Capitão questiona o médico a ausência de um diagnóstico.
– Como não há? – Reage Dr. Eugênio com empáfia.
– Agradeço se puder saber qual é.
– Vossa esposa sofre do que chamo de natureza feminina em colapso.
A tensão de Herculano colide com a couraça de sua impassibilidade.
– Apreciaria conhecer os fundamentos do vosso parecer.
– Já ouviu falar na ciência da frenologia?
– O estudo do caráter e das capacidades mentais pelo formato da cabeça.
– E tamanho. A parte frontal associa-se às funções intelectuais e costuma ser maior nos homens, como acontece comigo e com o senhor. Já a parte posterior, geralmente mais volumosa nas mulheres, relaciona-se às faculdades afetivas. 
– A testa de Páscoa é larga...
– E a cabeça grande. Decerto um todo harmonioso, mas revelador de um cérebro problemático para um corpo feminino. Daí a prostração. De tão incitadas pelas funções intelectuais, as faculdades afetivas entraram em colapso, entendeu?
Herculano teme que o médico esteja certo. Pois, até cair nesta prostração, Páscoa era dada a questionar a ordem das coisas, não de modo ríspido, mas manso e insistente, o que podia ser um sinal das funções intelectuais em desalinho. E reconhece na maternidade conturbada evidências das funções afetivas comprometidas. A gravidez decorreu com períodos de tristeza e Páscoa chorou após o nascimento da filha. Teve vez que suou frio e tremeu ao banhar a menina. Depois passou, mas um quê de desalento ficou que lhe pareceu uma falta de disciplina para encarar a vida como ela é.
– Arrastará para sempre esse desequilíbrio?
– Não, se depender de mim. O susto que ela tomará no mar irá sará-la de vez.
– Em que isso afetará o tamanho do cérebro?
– Em nada, mas o seu interior será organizado. Esvaziará a mente de D. Páscoa, que ouvirá a voz da razão para sempre.
A exibição da mulher doente, o próprio banho, constrange Herculano.
– Ela está tão debilitada. Não será conveniente adiar um pouco mais a prescrição?
– Jamais! Naquela cama há uma pequena tirana pronta para desafiar a lei da natureza. Ademais, D. Páscoa frequentou a escola e estudos americanos atestam que metade das mulheres, com problema similar, possui elevada educação.  
– Minha esposa aprendeu disciplinas afetas à vida do lar e conhecimentos gerais. 
– O suficiente para desequilibrar seu cérebro problemático. E há outro ponto a ser considerado que exige do senhor franqueza científica.
– Pois não.
– Como descreve as reações da sua mulher durante o coito: de passiva abnegação ou de agitações sensuais?
A pergunta soa descabida e invasiva, ao mesmo tempo em que lembranças das aspirações de prazer de Páscoa vêm à mente de Herculano.
– O que essa particularidade tem a ver com o caso de tristeza, Dr. Eugênio?
– Tudo. As exigências despóticas do útero podem estar atiçando a mente da vossa mulher. Se o senhor atende às demandas decorrentes, perderá o controle por completo sobre a saúde física e moral do seu casamento. Cuide-se, pois.
– Não tenho a minha esposa como um brinquedinho voluptuoso.
– Atitude sábia. Seja sábio também agora e acate a prescrição. É rápida, indolor e eficaz até para os distúrbios do ventre.
O Capitão balança a cabeça afirmativamente, mas está incerto se irá permitir o banho de mar.

     


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Capítulo Dois

O BANHO DE MAR PRESCRITO


      Dr. Eugênio, homem grande, de ombros largos, andar firme e ar autoritário, atravessa o feixe de luz da manhã que vaza pela claraboia do corredor do sobrado. Carrega uma valise de couro marrom na qual brilha uma fechadura dourada. Médico formado na Europa, com especialização nos Estados Unidos da América, desfruta da fama de saber tudo sobre doenças femininas. Os moradores da casa o seguem.
Em sua farda de capitão, Herculano controla o desconforto de ter uma mulher que sofre de um mal incerto. Próxima do pai, vem Sofia, que olha para as costas enormes do médico. A cada visita, o doutor lhe parece mais bravo e ameaçador. Quitéria e Tião do Congo são os últimos da formação. Ex-escravos, sexagenários, foram comprados, alforriados e agregados à família pelo pai de Páscoa. Enquanto anda, Quitéria contorce as mãos sobre o peito farto e apela em silêncio para que os deuses daqui e do além-mar protejam a menina que viu nascer e que cuidou como se fosse sua, após a mãe morrer ao dar à luz. Já Tião, cabisbaixo, carrega a suspeita do mal que aflige a sinhá. Contudo, nunca conseguiu entender de qual cativeiro o espírito dela quer se libertar e para qual pátria quer voltar, porque, para ele, é banzo o que ela tem e, como foi com muitos dos seus, teme que seja mortal. Tião para à porta. Não cabe a ele entrar.
Dr. Eugênio irrompe no quarto.
– Ora, pois, D. Páscoa, não está de pé para me receber?
 Indiferente ao silêncio da paciente, põe a valise sobre a cômoda e fita a caricatura impressa num jornal que ali está. Os Passos de Passos diz a legenda do desenho de um idoso, que, em trajes elegantes e ar enfurecido, anda sobre uma monte de gente brava, aprisionada pelos próprios corpos. O médico balança a cabeça em desaprovação à sátira, gira o corpo e ordena, batendo as mãos:
– Ano Novo, vida nova, minha cara! Vamos, levante-se.
Páscoa não se mexe, para irritação contida de Herculano. . 
– O tratamento tem sido seguido à risca?
– Tem sim, responde a ama ao doutor.
– Interessante! Nada de bordado, leitura ou escrita?
– Nadinha de nada.
– Sem visita, nem companhia? – Insiste o médico com os olhos cravados no rosto de Sofia, que treme de medo de que sejam descobertas suas incursões até a mãe.
– Nenhumazinha – responde Quitéria, convencida de ser uma injustiça chamar de visita os minutinhos que consente à pequena passar ali no quarto.
– Sei. D. Páscoa tem estado em isolamento completo.
– Como o senhor recomendou – fala Herculano, irritado com o interrogatório. – Eu mesmo só a vejo quando venho acompanhar vossa visita.
– Nem autoriza uma saída para uma prosa na varanda ou quem sabe para tomar a fresca da tarde?
– Não.
Dr. Eugênio fita um, fita outro e depois Páscoa. Inclina seu corpo para trás, como se a maior perspectiva ampliasse sua capacidade de análise, então, aproxima-se.
– Caríssima, escute-me bem. Contarei até cinco. Se, no número cinco, a senhora não se levantar, eu mesmo a boto de pé.
A contagem começa. De modos diferentes, as mulheres se perguntam como Herculano permite ao médico agir como o senhor da casa. Acontece que elas não conseguem ver na sua feição um traço sequer do esforço que ele faz para se conter ante aquela arrogância. Tanto que Herculano decide se retirar a ser confrontado com o que está por vir. Tarde demais. A contagem termina e, num rompante, Dr. Eugênio apossa-se do corpo de Páscoa e o retira da cama.
O marido retesa-se diante da mulher vergada sobre aquele braço, como uma boneca de pano rota e desconjuntada. Quitéria cobre o rosto com as mãos. Sofia abraça a si própria, aterrorizada. Tião aguarda, compungido, em alerta.
– Endireite-se, D. Páscoa.
Qual o quê! Tronco, cabelos, pernas e braços continuam tombados – e a paciente decidida a não se render ao seu algoz.
 – Se D. Páscoa se recusa a ouvir a voz da razão, que enfrente a força do mar.
Dr. Eugênio solta o braço: o corpo da paciente se agita em busca de amparo e cai. Herculano esboça um movimento de socorro...
– Fique onde está, Capitão – ordena o médico, com a mão espalmada para o alto. Uma vez obedecido, olha para a mulher largada aos seus pés, como uma trouxa de roupa, e esgrima os detalhes da prescrição: – Minha cara, três imersões a esperam, e de cabeça para baixo, se não melhorar até a visita da próxima semana.
Por um instante, os olhos de Páscoa, prostrada no chão, e os de Herculano, com o tronco ainda inclinado pelo socorro imobilizado no ar, se encontram, transbordando apelos impotentes.
Empertigado, Dr. Eugênio se afasta. Quitéria o ajuda a se recompor, ávida por sua partida. Os homens saem do quarto, com Tião atrás, receoso do que está por vir. Sofia permanece parada, com os dedinhos presos à borda da cortina fechada e os pensamentos agitados de mar: as ondas, os peixes, as conchinhas... Como tudo será?  


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

O MAR - Capítulo Um

A PANTOMIMA DO DESEJO


Páscoa ensaia o abandono da partida: a porta que fecha atrás de si; o portão que abre para a rua vazia à frente; a caminhada que inicia rumo ao desconhecido. Escuta seus passos sobre as pedras do calçamento. Troca de mão a maleta que segura e testa o limite do peso que pode suportar, ora mais, ora menos, em movimentos lentos e concentrados.
Sua figura recorta-se na penumbra do quarto como uma mancha do escuro. Efeito dos cabelos negros, derramados pelas costas, e do branco longo e largo da sua camisola. A poucos metros, o marido dorme. O lençol que o cobre desliza de um lado do corpo sem um vinco sequer. Do outro lado, pende em veios e redemoinha em dobras sobre a superfície lisa do leito. As mãos cruzadas sobre o peito e as pernas estiradas evocam rígida prontidão. Herculano, como se chama, tem trinta e sete anos. Páscoa, quase trinta.
Soa um estalido e o rosto de Sofia, de nove anos, surge pela fresta da porta que se abre, deixando penetrar no ambiente tênue claridade. A menina se assusta em dar com a mãe como um fantasma. Já Pascoa ao vê-la, se lembra de quando, na cama, apoiada nos braços, curvou-se sobre si e viu, por entre suas pernas, o futuro sem escolhas que acabara de nascer de olhos abertos. Sente-se mal; a maleta cai da sua mão.
O barulho acorda Herculano. Sobressaltado, levanta-se, enquanto Sofia, que não sabia da sua chegada, fecha a porta, sem fazer barulho.
– O que faz? – pergunta Herculano dirigindo-se à Páscoa, que não lhe responde.
Custa-lhe tanto falar, ainda mais atordoada. Deixa-se ser conduzida à cama.
Herculano observa o espaço e ergue a sua maleta do chão. O que quis fazer? Olha para a mulher encolhida sobre o emaranhado do lençol. Está cada dia pior. Quando isso terá fim? Põe o objeto sobre a arca e sai. Ronda o interior do sobrado: primeiro o quarto da filha, que finge dormir; depois, os outros aposentos. Ao longo do percurso, torna-se cada vez mais audível o soar do pêndulo do relógio da sala. Neste espaço, tudo também está fechado, em perfeita ordem. A única desordem é Páscoa.
    

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