O BANHO DE MAR
Um
rajado avermelhado colore o céu lá para os lados do areal do Leme. O ar exala o
frescor frouxo da madrugada de verão. O mar está calmo. Ondas baixas rolam
mansas e preguiçosas. Ao longe, um barco flutua ao sabor da calmaria. Mais
além, na linha do horizonte, um navio avança rumo à cidade. As poucas
construções da orla estão fechadas, exceto a da venda no fim da curva da praia,
do lado de cá. O dono, o português Tobias, varre a frente do estabelecimento e
presencia o deslocamento do pequeno e coeso grupo pela praia em direção ao sol
que em breve nascerá.
Páscoa,
toda vestida de preto, de capa com capuz sobre uma touca franzida, segue
frágil, trôpega, amparada por Quitéria e Tião. Dr. Eugênio e Herculano fazem a
escolta. Sofia vem atrás atenta à mãe.
O
cortejo se move com dificuldade sobre a areia fofa. Dr. Eugênio segura a valise
de couro: Três imersões apenas, nada mais. O susto e a água fria dissiparão
as ideias que lhe perturbam o juízo. Herculano gostaria de ter feito o
percurso no coche da família: Tudo seria mais rápido. Que seja! Páscoa precisa ativar a circulação para enfrentar a temperatura da água.
Sofia ainda não sabe quem levará a mãe ao mar, se nem o pai nem o doutor usam
trajes de banho: será que vai sozinha? Não. Papai não deixará. Tião
também está receoso. Já puxou rede. Conhece a força do mar: a sinhá não vai
aguentar! Quitéria tem receios parecidos e reza: Oda-Ya, salve Senhora
Amada! Eu vos peço: leve embora todo mal e não deixe que nenhum outro pegue a nossa filha! A filha que neste instante procura abandonar-se de
modo completo, antes de ser levada para o mar. Páscoa não sabe como tudo será e
a perspectiva a remete ao fim: Como será afogar? Melhor dormir. Ser engolida
sem ver, engolir sem sentir, morrer sem saber. No entanto, a cada
passada, é o desejo de viver, incipiente e oculto, que lateja em seu corpo
exposto a tanto céu, areia e mar.
Assim,
o cortejo se desloca com o calor colorindo as faces, o suor porejando na testa,
a roupa pinicando a pele e a atenção fixa nas negras pedras, que se aproximam a
cada passo e são o ponto final do deslocamento.
A
fraqueza se apodera da mulher, que escorrega para a areia das mãos que a
amparavam. Nuvens brancas deslizam no céu azul da mente, nessa breve
inconsciência. Escuta ao longe a voz do marido que a chama. Abre os olhos:
rostos assustados sobre si ganham nitidez. Herculano pede o retorno para o
sobrado. O médico o afasta pelo braço.
--
O desmaio é normal. Suspender a prescrição será uma vitória da doença, com
consequências piores. Não poderei responder por elas.
Diante
da fragilidade da esposa, do temor da filha, da obediência aflita dos
agregados, Herculano hesita e lança sua dúvida para o mar: o que fazer? Afrouxar
as rédeas? Ousar em outras direções? Quem sabe até tomar a mulher nos braços e
fugir dali, para poderem chorar a sós, acolhidos um no outro, o infortúnio que
os enlaça? Impossível. O Capitão não sabe abrir o que está trancado no peito.
Decide.
--
Vamos em frente.
Satisfeito,
Dr. Eugênio manda Tião erguer a paciente. Cabisbaixa, enlaçada pelo empregado,
Páscoa volta a andar, em novos passos cansados.
De
repente, um cachorro grande, de pêlo curto, amarronzado, atravessa o caminho.
Ouve-se um assovio e, em seguida, uma ordem: -- aqui, Pã. O cão atende o
chamado e corre na direção do dono, um homem de olhar cálido, braços torneados
expostos pelo macacão de banho sem mangas. De pé, num escarpado da pedreira
negra lambida pelas águas, apenas se avizinha da maturidade, iluminado pelo sol
que começa a nascer atrás de si.
A
máscula jovialidade exposta fustiga Herculano. Sofia entende quem levará a mãe
ao mar e confia. Quitéria e Tião do Congo entreolham-se, ressabiados. Dr.
Eugênio confere as horas: Pontual o
banhista. Páscoa permanece de cabeça abaixada e assim é levada pelos
agregados e pela filha até o costão negro, onde se senta num banco de areia.
Coberta com tanta roupa escura, mais parece o prolongamento das pedras.
O
médico repassa a prescrição com quem a executará e ordena que retirem a capa da
paciente. O inevitável prestes a acontecer oprime mais um pouco o Capitão.
Despida do manto, a mulher ergue vagarosamente o rosto e vê o banhista que vem
em sua direção. Recatos driblam o encontro dos olhos, que buscam se conhecer. O
banhista absorve a densa e comovente leveza que irá acolher; Páscoa recebe a
máscula candura que envolverá seu corpo e que neste instante se curva diante
dela com os braços abertos para tomá-la. Herculano dá um passo à frente e o
médico o detém pelo ombro. Com o corpo crispado, o Capitão suporta a pressão de
ver o outro enlaçar sua mulher, quase desnuda naquele traje de banho, passar ao
seu lado sem demonstrar qualquer deferência e partir com ela para protagonizar
uma experiência da qual será um mero expectador.
De
olhos fechados, coração disparado, Páscoa segue no colo desconhecido. As
pisadas sobre a areia produzem um chiado áspero. O corpo do banhista é quente;
o dela sacoleja no deslocamento. Os braços dele são fortes e a carregam com
cuidado. A cada balanço, o ar é mais leve, o som do mar mais intenso e as
sensações mais vívidas.
Cessa
o crepitar da areia. Tampouco se ouvem outros movimentos atrás, apenas o pisar
do banhista sobre a água rasteira. Os limites se misturam. A transpiração
escorre. O cheiro do homem é familiar à mulher. Rompeu a distância e chegou até
ela, lá no quarto; é o cheiro de mar. Ele é do mar. Eles estão no mar. Páscoa
abre os olhos e, atordoada, contempla o mar-horizonte à frente: o que será
de mim?
O
banhista sorve cada olhar, cada arfar, cada pequeno estremecimento desse ser
que acolhe em seus braços, atraído por sua fragilidade e seguro do bem que quer
lhe proporcionar. Na alternância do movimento de suas pernas firmes, pressiona
o fundo das águas, de inconstante geografia, e avança mar adentro.
Curvatura
suspensa, Páscoa embebe-se do circundante leito líquido, rumoroso e possante
que se estende abaixo, a perder de vista. Ora é tomada pelo êxtase, ora pela
agonia de se ver cada vez mais perto de ser engolfada por essa tremulante
imensidão. A pele mela e o abandono do corpo parece escorrer e dissolver-se nas
águas espumantes. Páscoa ousa tocar o mar. Desliza a mão sobre a beira
ondulante. Colhe em concha a água e engole um pouco de mar. O desejo cresce no
banhista.
Sempre
em frente, a água cobre os quadris da mulher em vagas refrescantes de alucinado
bem-estar. O homem diz para ela confiar, pois a manterá segura. A voz revela um
sotaque desconhecido.
Uma
onda se aproxima. Páscoa se recusa a vê-la e esconde o rosto no peito protetor.
Medo e prazer espraiam-se pelo seu corpo conforme é suspensa pela onda. --
Ah...! – exclama tomada pelo estonteante deleite vencedor. A vaga desliza e, ao
passar, devolve Páscoa, esvaziada, maravilhada, para a imensidão flutuante, no
colo acolhedor.
O
banhista retira o braço que circunda as pernas da mulher, que se agita e se
agarra ao pescoço dele, temerosa em pisar o incógnito solo. De novo a voz
aveludada sopra ao seu ouvido: -- Coragem! Estou com você.
Novas
águas passam e a empurram para a entrega final. Páscoa aninha-se na acolhida
oceânica. Um apaziguamento profundo nasce e propaga-se pelo seu corpo molhado,
tocado, envolto por vastidões. Mas logo os braços se inteiram do indecoroso
dessa intimidade reconfortante. Recatados, reticentes, desenlaçam-se. Confuso,
o corpo também se desprende sem saber mais onde se colocar. No espaço aberto, o
banhista a reacomoda, e os olhos dela enchem-se de novo da imensidão à sua
frente.
Outra
onda se aproxima. A ansiedade comprime o peito de Páscoa e mãos mais firmes
cingem sua cintura. -- Vamos juntos, soa o pedido. Num salto louco, impulsiona-se
e se lança, com o banhista, à onda-êxtase que os suspende. Tornam-se um ponto
escuro no corpo azulado e tremulante do mar.
Grande
tormento é esse ponto para Herculano. Sitiado na praia, não tem como precisar a
distância a natureza dos fatos que tornam aquela imagem tão indivisível. Dr.
Eugênio compartilha a mesma dúvida e, em acenos frenéticos, exige o retorno
imediato dos dois. Quitéria e Tião estão preocupados. Sofia nem tanto. O
encantamento com o banho de mar suplanta receios. Pã pula e late antes da
arrebentação.
Alheios
às emoções na terra firme, paciente e banhista extasiam-se, encharcados da
existência um do outro. Páscoa é grata a esse homem por ser quem ele é; ao
destino que o trouxe até ela, para converter a punição médica nesse imenso
deleite; ao mar, que transformou o mal que sentia no bem que agora experimenta.
Ouve outro pedido: -- Segure a respiração. Pressente o porvir: que venha o
fim!
O
banhista a suspende e a puxa para dentro do corpo do mar.
Submersa
e ancorada ao homem, quase agachada no chão, sente a pressão da onda que rola
sobre si e arranca sua touca. Seus cabelos se espalham como algas na massa
oscilante raiada de sal e de luz. Num crescendo arrebatador, desaparece até
mesmo o som cavo do mar e a mulher escuta apenas as batidas do seu coração
ressoando nas têmporas. O desejo de viver clama dentro dela. Um instante a mais
e o banhista a ergue rapidamente. Quando irrompe sem ar na superfície, cabelos
a jorrar sobre a água circulante, boca, olhos e entranhas abertas e salgadas,
Páscoa inspira, geme e desfalece.
Na
praia, o grupo desalinhado assiste ao tenso retorno do banhista, que luta com o
fluxo-refluxo das ondas, trazendo nos braços a desfalecida. Pã nada na direção
do dono. Angustiadas, Sofia e Quitéria se abraçam. Herculano e Dr. Eugênio
correm do avanço das águas, aviltados com o indisciplinado banho de mar. Só
Tião permanece à espera de uma ordem qualquer, com as águas cobrindo seus pés.
No
recuo da onda, o marido ocupa de novo o espaço. A pressão no estômago é atroz.
A boca amarga. A cólera o domina. De peito aberto, em saltos furiosos, adentra
o mar. Rostos tensos enfrentam-se cada vez mais próximos. Frente a frente, o
Capitão toma a esposa do banhista e volta com ela em seus braços.
--
Imprudente. Está dispensado para nunca mais, diz o médico para o servidor.
O
olhar fulminante de Herculano também alcança o insolente, que sabe bem o que
fez e faria tudo de novo por essa mulher. Mas não gosta de confrontos e recua.
--
Rápido. Retire-se daqui com este cachorro infernal, insiste o médico.
O
banhista ainda olha para a mulher, antes de partir, seguido por Pã.
Livre
da presença indesejada, Herculano estende Páscoa sobre a areia. O grupo se
ajoelha ao seu redor. Dr. Eugênio cuida da paciente, que não reage. A aflição
sua nos corpos e a dúvida aperta o coração de Sofia: E se o sono do mar não passar?
Seu rosto aflito encontra o de Herculano, atônito. A filha não sabe se pode
lançar-se ao refúgio do corpo paterno. O pai não se permite acolher a aflição
da filha e tampouco sabe o que fazer. Vira-se para o mar. Sua memória insiste
em devolver a mulher para as águas; mira então as pedras negras. Ninguém está
lá. Mas o homem veio de lá. Um músculo se contrai sob a face tensa, e o Capitão
ordena o retorno para casa. Todos obedecem, até o Dr. Eugênio. Começa o
deslocamento, com Páscoa levada no colo de Tião. Súbito, a voz de Sofia corta o
ar: -- Acordou. Mamãe acordou!
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by Maria Tereza O. S. Campos
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