segunda-feira, 30 de março de 2015

Capítulo Vinte e Seis

DIVINA NEGRÃO


Abdias atravessa o Largo da Carioca, ainda eriçado com o cerco da Brigada Sanitária, e acena para Benevides Vidal, outro empregado de Theodoro. Pequeno e moreno, quarenta anos recém-feitos, usa chapéu de coco, casaca curta sobre colete, calça de listras negras e botinas bem engraxadas, num todo em que a elegância da indumentária resiste ao tempo pelo esmero com que é tratada. À sela do também escovado e lustroso Tufão, BV, como gosta de ser chamado, trota rumo à Praça Tiradentes, situada mais adiante.
Ladeada acima pela Rua da Carioca e, abaixo, pela Sete de Setembro, a Praça é ampla, arborizada e famosa pelos teatros e cafés-cantantes de suas cercanias. O nome homenageia o dentista Joaquim José da Silva Xavier que morreu enforcado, em 1792, por ter tentado realizar, de uma única vez, o que precisou do concurso do tempo para ocorrer em duas etapas: a independência do Brasil de Portugal, em 1822, e a proclamação da República, em 1889.
Divina Negrão mora quase à esquina da Sete de Setembro, na São Jorge, que corre aos fundos da Praça. Na cozinha, mexe um doce ao fogo de um potente fogão de lenha. Louças secam ao peitoril da janela e tabuleiros de madeira, tachos de cobre, cestos de vime e bacias de alumínio, cobertos por panos alvos, repousam sobre os móveis. De fora, chega o canto em duas vozes femininas: Perdão, Emília, se te faço sofrer, quisera amar-te, mas não posso, porque gelado trago o peito meu; não me recrimines que não sou culpado, amor no mundo pra mim morreu. Era eu um...
Pensa no seu coração solitário e reconhece: cedeu de menos, exigiu demais e anelou o impossível: um homem trabalhador, de olhar iluminado e palavras sábias que a arrebatasse de paixão. Reconhece também que a providência não quis. Jamais pôs no seu caminho esse ser capaz de almofadar com seus braços a dureza da vida a ponto de fazê-la preterir a liberdade que custou para comprar pela labuta diária compartilhada com alguém. No desenrolar do fado de senhora da própria vida, curadora, consoladora e protetora de gente, o tempo passou, a juventude se foi e um desmemoriado vazio se formou. Às vezes, como neste instante, o vazio se alembra de si e recorda do amor anelado de um modo tão saudoso, que parece coisa de encantamento, por que como é possível sentir saudades do que nunca se conheceu? Divina suspira! O doce borbulha, desgruda do fundo do tacho, dá o ponto. Chamados substituem a cantilena.
-- Divina! Corre, espia o muro. Ó Divina, chega cá!
A mulher afasta o tacho do fogo, tampa a trempe e chega à porta aberta para o terreiro. A banda do lado esquerdo não é muito grande, apesar de possuir pés de goiaba, bananeiras e uma bica de lavar roupa. A frente é avantajada: toalhas de mesa secam em varais de bambu fincados no chão e outras toalhas quaram sobre pedraria ao lado, perto de uma cerca de madeira. Desse lado, a propriedade se estende em uma imprecisa área retangular. Há árvores, canteiros de horta e de ervas, além de galinheiro, chiqueiro e dois pares de casinholas geminadas. Conceição, de cinquenta e alguns anos, passa roupa em uma das casas. Por sofrer de baixa audição, não ouviu os chamados de Corina e de Delfina no quintal dos varais. Mais moças, avental molhado, mãos na cintura, as duas fitam BV, que parece em ascensão do outro lado do muro enquanto saboreia uma fruta. O homem ergue o chapéu para Divina.
-- Bom dia, senhora!
-- O que faz aí, assustando o povo?
-- Peço mil perdões, mas a culpa é desta goiaba. A boca encheu d’água.
-- E precisou apanhar assim?
-- Sou filho de Cosme e Damião. Subi no dorso do meu Tufão e cá estou a fazer a vontade dos meus protetores enquanto aprecio a paisagem.
-- Num brinca com os santos que eles num são bobo, ralha Corina.
-- E isso aqui é propriedade particular, acrescenta Delfina.
-- Que propriedade! Quase não se vê uma com tanto espaço vazio, pelo menos tão juntinho do centro da cidade.
Divina não gosta do comentário. O alargamento da Rua Sacramento em curso, perto da Praça, despertou o olho grande na casa, onde há décadas mora, em uma história de realizações que lhe gera receios de ter um final infeliz. Aos vinte anos, obteve permissão do seu senhor, Caetano Negrão, para vender quitutes no final do dia e fazer dinheiro para comprar sua alforria. Com o passar do tempo, criou clientela e a fama se espalhou. Sempre tinha alguém a dizer que seus doces e salgados eram bom demais e outro alguém a indagar que Divina era aquela: -- A do Negrão.
Certa vez, ao tabuleiro, conheceu Constância do Rosário, mulher viúva, sem filhos, que sabia se virar muito bem sozinha. Enturmada com o pessoal da Alfândega e dos navios, Sinhá Cota do Rossio, como era conhecida, comprava artigos importados e os revendia a preço superior. O lucro emprestava a juros em percentual inferior aos da praça, o que lhe garantia muitos clientes. Intermediado pelos quitutes e pela mútua simpatia, o contato entre as mulheres se estreitou, e Divina solicitou para Sinhá um empréstimo para comprar sua liberdade.
-- Com os ganhos do tabuleiro, pago vosmicê com os mais dos juros.
-- Empréstimo é coisa de gente livre. Cativo num tem garantia pra dar.
-- Compra eu, então, do meu sinhô com o trato d’eu ficar na lida dos meus quitutes porque o que quero é fazer meus réis para pagar minha alforria.
-- Queres morar na minha casa e trabalhar na minha cozinha de graça?
-- Cozinho pra vosmicê em troca.
-- Ah, assim fica melhor.
-- Então tá tudo combinado?
-- Eta negra impertinente. Tenho que pensar.
Sinhá pensou. Imaginou o crescimento do negócio dos tabuleiros e apreciou a possibilidade de ser sócia de Divina, bem como dela lhe fazer companhia, já que suas mucamas, Anunciata e Josefa, não eram dadas à prosa. Pediu sociedade, com despesas de moradia descontadas da futura receita, consonante com o seu lema de que cada um tem que pôr seus tostões pra ajudar a fazer o forno e o bolo. Termos aceitos, comprou a proponente, levou-a para morar consigo e, três anos depois, lavrou no Oficio de Notas a liberdade daquela que filha de pai desconhecido e sem sobrenome de mãe falecida passou a ser também aos olhos da lei Divina Negrão.
Atualmente, por causa da idade avançada, a saúde de Sinhá exige cuidados, ainda que o espírito continue forte. Das posses amealhadas, sobrou-lhe algum dinheiro, o imóvel de dois andares onde moram e o terreno vizinho. Há tempos, Divina administra a casa e o trabalho de um grupo de mulheres empregadas no negócio, que cresceu. Não só vende doces e salgados para restaurantes e casas de família, como também lava, passa e cerze toalheiros, além de ler a sorte e benzer os necessitados.
Com exceção da já também idosa Anunciata e da madura Josefa, todas as outras moradoras foram chegando aos poucos, cada qual com uma história de abandono e a mesma precisão de trabalhar. Além de Conceição, Corina e Delfina, que é mãe do jovem Juliano, há Bebiana e as filhas solteiras, Lindalva e Gracinda. As três estão na entrega de mercadorias e coleta de serviços. Há também Belizária que, como Josefa, é empregada em casa de família e, como as demais, contribui com as despesas de moradia. Com tanta gente que depende do negócio e do imóvel, Divina teme pelo destino da propriedade após o passatempo de Sinhá Cota, razão pela qual as palavras de BV alvejaram seu coração receoso.
-- Já pegou o que quis, agora pica a mula que a gente tem o que fazer.
-- Estou de saída, mas antes posso saber quem é o dono da propriedade?
-- Tá perguntando demais.
-- Não me queira mal, só pergunto pra saber se o proprietário tem interesse de venda. Às vezes calha d’eu conhecer um comprador e olha aí a oportunidade.
-- Bateu no muro errado e fim de prosa, diz Divina já andando para a bica.
-- Há o interesse ou a senhora não sabe dizer?
-- Num ouviu a ordem, não?
-- Óia que a gente chama a guarda!
Divina aproxima-se do muro com um balde cheio de água.
-- Moço: ou sai por bem ou sai por mal.
-- Com vossa licença, bom dia.
BV desaparece e as mulheres se entreolham.
-- Onde já se viu? Que sujeito intrometido!
-- Tá cobiçando a casa.
-- Só morta sinhá sai daqui.
-- O que será da gente quando ela for dessa pra melhor?
-- Basta a cada dia o seu fardo, Corina. Vamos trabalhar que é melhor, fala Divina, que retorna para a cozinha. Ali adentra a sala de jantar conjugada a de visita, vê Sinhá e Anunciata cochilando na cadeira de balanço – a visão da velhice suscita a sua a caminho: oh, meu Pai, nos proteja! Chega à saleta ao lado, separada por uma cortina. Dispostos num oratório, santos, em estatueta, miram a porta da rua, enfeitados com pendões de flores de papel, terços e cordões de miçangas. Nossa Senhora da Lampadosa ocupa posição central: traz à palma da mão um coração circundado por um aro dourado e, no outro braço, carrega Jesus menino, que segura uma pomba. Uma mesa está encostada à parede que faz ângulo com a do oratório. Duas cadeiras ladeiam o móvel coberto por toalha de renda branca sobre feltro, onde búzios, deitados em uma peneira, dividem o espaço com uma cambraia dobrada, um baralho e um castiçal.
Divina cobre a mão da Santa e do Menino Jesus.
-- Dadivosa e inocência, protegei esta casa.
Tudo o que sabe sobre orixás, búzios, ervas e benzeção, aprendeu com o babalaô da senzala do ex-senhor. Quanto aos mistérios católicos, os ensinamentos vieram da esposa do seu Negrão. Mais tarde, ao tabuleiro, conheceu o baralho com a cigana Najma. Só de ver as cartas, sortilégios vinham à sua mente. O acerto era tão grande que Sinhá Cota lhe deu de presente um baralho que mandou trazer do estrangeiro. Desde então, lê as cartas também.
Senta-se à mesa, acende as velas do castiçal e invoca a permissão dos orixás para jogar. Lança os búzios, que caem virados para baixo, num sinal de jogo fechado: por que não quer falar, meu Orí? Afasta a peneira, estende a cambraia e traz o baralho ao encontro do peito. A imagem de um coração trespassado lhe chega. Pensa em São Sebastião. Embaralha e divide em montes o baralho, une as partes em outra disposição e depois retira três cartas e as deita sobre o tecido. Um céu carregado de nuvens se exibe na primeira; uma montanha, na segunda; uma cruz, na terceira. Divina pressente tempos difíceis e não quer saber mais. Porém uma dúvida se formula: o que aquele homem tem a ver com isso?
O homem vai longe, na marcha do seu Tufão e rumo ao encontro do patrão.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Vinte e Cinco

ENCONTRO CASUAL


O incidente no Largo da Carioca para o trânsito e o bonde de Copacabana fica preso no congestionamento. Pelas laterais dos carros corre a enxurrada humana com a cavalgada policial ao encalço, num tropel que deixa para trás espanto e receio, além de apetrechos e tamancos perdidos. Minutos sem correria se sucedem. Ocupantes saem dos carros e caminham para averiguar o ocorrido na boca da Santo Antônio. Herculano segue junto. O colega do Dr. Eugênio prefere fazer o final do percurso a pé. Já o médico se mantém ereto no estribo, de onde acompanha o movimento. Reconhece Theodoro, que passa ao seu lado, e o chama, descendo do veículo. O secretário de governo se vira.
-- Ora, ora, quem encontro.
-- E em quê ocasião.
-- Provavelmente um acidente.
-- Ou mais uma enérgica ação do nosso Governo.
Theodoro mantém o ar afável e muda de assunto.
-- Como entrou o ano novo?
-- No olimpo, saboreando o regalo que nos ofertou.
-- Fico contente que tenha gostado. É sempre bom presentear os amigos. E Dona Magnólia como está?
-- Ah! Muito bem; espero que Dona Catarina também o esteja.
-- Felizmente sim e organizando um sarau para o Carnaval. Em breve enviaremos o convite. Ficaremos honrados se puderem comparecer.
-- A honra é nossa. Mas cuide para D. Catarina não se desgastar. Mais do que nunca, precisa descansar.
-- Estou atento. Bom, devo me despedir, tenho hora marcada na Ouvidor.
-- E eu, na Ourives. Mas recomendo aguardar o trânsito fluir. O sol está de lascar. Pode dar insolação, diz Dr. Eugênio, tentando reter a importante companhia.
-- Infelizmente, não posso me atrasar. Terei de correr esse risco.
Dividido entre ficar e fazer o estirão a pé, o médico olha para o alto da rua.
-- Ali vem um conhecido meu; vamos ouvir o que ele tem a dizer da situação.
Theodoro se vira e avista Herculano caminhando de volta. Em desvantagem com relação à altura do outro, apruma o porte, enquanto o militar o reconhece e lastima o encontro a sua espera. É interpelado pelo médico antes mesmo de parar.
-- O que houve?
-- A Brigada Sanitária cercou o Largo, houve correria e os ambulantes colidiram com uma carroça na esquina. Já está sendo removida. Logo mais o trânsito fluirá.
Theodoro acha familiar sua fisionomia e se introduz na conversa.
-- Feridos?
-- Pelo visto, não.
-- Antes isso. 
Dr. Eugênio dirige-se ao militar.
-- Conhece o nosso secretário de governo, o Dr. Theodoro de Alcântara Avelar?
-- Como está? Herculano Dias.
Theodoro responde o cumprimento e o médico completa a apresentação.
-- O Capitão é professor da Praia Vermelha.
-- Grande escola. Em que disciplina leciona?
-- Operações militares.
-- Um dos meus temas preferidos de leitura.
Herculano apenas meneia a cabeça para espanto do Dr. Eugênio que considera insossa a resposta à autoridade do governo. Quebra o silêncio.
-- Por isso digo, com o senhor no governo, estamos bem servidos. Parabéns por tão vasto apreço.
-- É o meu dever, Dr. Eugênio. Ademais, teorias militares também são úteis em tempos de paz, não acha, Capitão?
A declaração soa sem sentido e a resposta se enuncia com um recado indireto.
-- Saber como os homens lutam e porque se dão combate pode evitar velhos erros e novos conflitos.
-- Não me expressaria melhor. Sem querer mudar o assunto e já mudando, tenho a impressão que já nos vimos antes. Estou certo?
Uma lembrança dos dois no colégio Pedro II aflora em Herculano, bem como a suspeita de que a impressão alheia seja fruto de uma visão à galeria do Congresso. Sem interesse em facilitar a vida do adversário político, omite as referências.
-- Não saberia dizer.
Dr. Eugênio tenta de novo amenizar o desprestigio percebido na resposta.
-- Quem sabe de um evento da Escola?
-- As identidades se assemelham quando em farda, insiste Herculano.
-- Mas há sempre um bom fisionomista para diferenciá-las, retruca o médico, com um esgar que mistura cordialidade ao civil e crítica ao militar.
Esquivo ou é um florianista? – avalia Theodoro com um sorriso vago, enquanto Herculano se sente analisado: o que se passa com esse sujeito? Já o médico conclui seu parecer sobre o militar: sem traquejo social algum.
-- Aos lugares, estamos de saída, diz o motorneiro.
Os olhares do trio se desviam e Dr. Eugênio adianta-se nas despedidas.
-- Caríssimo, por favor, leve minhas saudações a D. Catarina.
-- Ficará feliz em recebê-las e transmita a D. Magnólia as minhas.
-- Assim o farei.
-- Foi um prazer conhecê-lo – ou reencontrá-lo, Capitão.
-- O mesmo digo. Com vossa licença.
De onde o conheço? Theodoro se pergunta dirigindo-se ao coche parado atrás. Acomoda-se no carro, que parte, conduzido por Abdias.

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sábado, 28 de março de 2015

Capítulo Vinte e Quatro

LARGO DA CARIOCA


O bonde de Copacabana alcança a Senador Dantas revolvida pela troca das pedras do calçamento e com os passeios em covas abertas para a plantação de mudas de oitis. Bem mais adiante, um cocheiro luta contra o sono, em marcha lenta puxada por uma parelha de burros. Sacas estufadas transbordam da carroceria e amparam engradados de vime empilhados com perus dentro. Um condutor ultrapassa o veículo e esbraveja:
-- Ó tranca rua, vai dormir em casa.
O sonolento homem abre os olhos, esboça erguer o rosto, mas mal as dobras da papada se distendem, as pálpebras pesam e a cabeça volta a tombar novamente sobre o peito. Em rédea frouxa e lentidão constante, a parelha de burros faz a curva que desemboca na Rua Santo Antônio. Conforme o deslocamento evolui, a carroça sacoleja, os engradados trepidam e o Largo da Carioca se aproxima.
Região de comércio diversificado, o Largo possui casarios, com toldos às portas e enormes compoteiras de louças aos beirais dos telhados, como as da Confeitaria Rocha & Menères, de propriedade de dois lusitanos, que conseguiram passar incólumes ao ufanismo feroz dos florianistas. Outros comerciantes portugueses tiveram a mesma sorte e se distinguem no quesito das tabuletas. De longe se lê, em letras graúdas, Armazém-Estalagem Todos os Santos, Filhos e Filiais, do Manoel do Porto, Marcenaria Atlas, do João Cunha, e Lotérica Idealista, de Borges Aragão. Quanto às demais nacionalidades, avultam-se as tabuletas da loja de roupas Os Tamoios, do turco Osman, a da casa de Materiais de Construção Os Materialistas, do espanhol Fortunato, e os dizeres: Despertar – Depósito de aves, ovos e outras aves de pena, do italiano Giovane. Finalmente, destaca-se a tabuleta da venda Ambos os Mundos – Sabão da Costa, Azeite de Dendê, Garrafadas e demais precisões, fundada por Alípio Sião após comprar a sua alforria, há mais de duas décadas.
Num entra e sai do comércio local, a caminho de algum lugar ou a ocupar o metro quadrado para fazer o pão de cada dia, é intensa a movimentação no Largo. Há gente acotovelada nos balcões dos quiosques erguidos em cada esquina, diante dos tabuleiros das baianas montados às calçadas e ainda à bancada do escrivão de cartas e na cadeira dos engraxates. Semelhante aglomeração ocorre também no passeio do chafariz que domina a vertente sul do espaço. Com vinte e nove bicas de bronze faiscantes ao sol e fachada de templo romano, o chafariz acolhe, no seu espaço, o público da Vermelhinha – um jogo proibido, mas de agrado popular, praticado com três cartas de reversos idênticos, porém duas de naipe preto e uma vermelha que, depois de embaralhadas, são apresentadas para o apostador adivinhar qual é a face colorida. Só se acerta da primeira vez, exceto quando o dono do jogo quer vender a sorte e atrair outro incauto apostador.
O hospital da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, um casarão de três andares repletos de janelas, ocupa boa parte do lado oeste do Largo e, como os demais imóveis desta vertente, os fundos margeiam o morro Santo Antônio, de cume edificado pelo convento homônimo. Nesta manhã, pessoas, coroas e ramadas de flores saem do hospital em direção ao cortejo que se forma à calçada. Cavalheiros aguardam para tomar lugar no fúnebre deslocamento ao balcão do Chope dos Mortos, do lado do necrotério da Ordem e de propriedade do alemão Glutner. Em seguida ao bar, há o portão da Companhia de Bondes Jardim Botânico, e depois o café do espanhol Fidelis, já a esquina da estreita e comprida Rua Carioca.
Despovoado de árvores, o sol de verão abrasa o calçamento do Largo neste quatro de janeiro de 1904. Rostos e corpos porejam de suor. O alívio vem de frutas consumidas no local. Cascas e bagaços tombam ao chão. Vísceras bovinas, linguiças, toucinhos e peixes também processam a sua vida biológica na inércia das bancadas postas nos passeios. Moscas revoluteiam. Baratas e ratos vencem maratonas de curta distância. Animais defecam. Fluxos nasais e catarrais molham o solo, e odores variados, de urina, bodum, mofo e peixe, emanam mais num metro quadrado do Largo do que em outro.
Do portão da Cia, surge o fiscal num impecável uniforme. Observa o paredão formado pelos coches enfileirados ao longo da calçada e dirige-se ao cocheiro-líder, postado à direita, na esquina com a calçada do Chafariz.
-- Ó Bicalho, já não disse que não pode parar na frente da Cia?
-- Ora bolas, Marcelino! A autoridade do finado exige.
-- Quem foi dessa vez?
-- O comendador Cerqueira... Suspirou como um passarinho.
-- Nesse caso há de se ter paciência. Que Deus o tenha!
-- Assim seja.
-- Quando sai o féretro?
-- Ah, aí depende!
-- Depende como, homem? A coisa não tem hora?
-- Ter tem, mas pode agarrar.
-- Veja lá. Não me afogue o trânsito. Tenho carro pra chegar e outro pra sair.
Com ar de tenho dito, Marcelino passa por entre os coches para cumprir a sua rotina. No meio do Largo, um bonde está parado, com suas cortinas verdes desenroladas para as bandas do sol. No estribo oposto, moleques pousam com tabuleiros de guloseimas equilibrados à mão, onde tentam realizar vendas entre os passageiros, e, como pombos, revoam à aproximação do fiscal.
Marcelino circula pelo bonde certificando-se da conformidade da ocupação. Por ser carro de luxo, é proibido transportar sacas e animais. Com a exceção da ausência do motorneiro e do condutor, provavelmente a fazer hora ao redor da Vermelhinha, tudo lhe parece dentro dos conformes, até que se defronta com uma bocarra aberta, pronta para cuspir. Imediatamente ergue a mão espalmada.
-- Alto lá! No chão do bonde não.
Bocarra fechada, cuspe engolido, a contrariedade rasga o ar.
-- Posso saber onde estão as escarradeiras?
-- Provavelmente algumas em vossa residência.
-- Quer que eu cuspa pra fora?
-- Isso é com vossa excelência, desde que peça licença ao vizinho, incline-se para o lado, lance seu cuspe e entenda-se depois com a autoridade sanitária.
-- Mais esta. Pois eu quero cuspir! Hei de cuspir. Tenho o direito de cuspir!
-- Perfeitamente! Mas veja bem. Vossa digníssima pessoa tem o direito de andar descalço, porém está calçado; tem o direito de não usar gravata, mas porta um formoso laço a Eduardo VII. E por quê? Porque, tendo tantos direitos, tem também o dever de ser bem-educado. E se for tuberculoso...
-- Qual o quê, homem! Tenho pulmões de ferro e se ficar tuberculoso, tanto pior pra mim e pros outros, porque hei de cuspir.
-- Não prefere usar o seu direito de morrer?
-- Como é que é?
-- Isso mesmo que ouviu. Morra, meu amigo, por amor dos seus semelhantes, mas sem antes cuspir aqui, se não terei que chamar o guarda.
-- Pois chame e também o Mata-mosquito e o Bota-abaixo. Cá ficarei a esperar pra ver o homem que vai me impedir de cuspir quando eu quiser.
Desafiado, Marcelino desce do bonde para buscar o Tinoco, que faz a ronda no Largo somente com os olhos e a partir do balcão do quiosque do Matias, situado mais adiante. Em arrufos, o desejoso cuspidor se mantém em seu lugar, com apoios solidários de alguns passageiros e o silêncio dos prudentes.
O caixão do Comendador é posto no carro do Bicalho, que dá início à saída do cortejo. Curiosos assistem à cena. De repente ouve-se um grito.
-- Meganhas no pedaço.
O grito ecoa. Em polvorosa, ambulantes, sem licença para praticar o ofício, recolhem seus pertences, num cenário de fuga difícil. Do lado da Ordem Terceira, a esquina com o passeio do chafariz é sem saída e a oposta, com a Carioca, os últimos coches fúnebres bloqueiam a passagem. E tanto as ruas na face leste do Largo, como na adjacente, ao norte, guardas a cavalo despontam, escoltando a Brigada Sanitária. O único canto desimpedido é o sudeste, à Rua Santo Antônio. Para lá, a debandada converge, enquanto a Brigada e os guardas se espalham para pegar os infratores. Num Deus nos acuda e num salve-se quem puder, o Largo regurgita ao som de gritos, vaias e verberações contra o cerco sanitário.
-- Isso é um absurdo.
-- Santo Pai!
-- Ai, minhas vísceras!
-- Que violência!
-- Não pode!
-- Não pode o quê?
-- Deixar o sujeito escapulir, responde ao brigadista o até então indignado.
Com medo de quebra-quebra, Marcelino apressa o passo do pachorrento Tinoco para que cheguem a tempo de proteger o bonde.
À boca da estreita Rua Santo Antônio, ocorre o inevitável: o encontro dos ambulantes com a parelha de burros. Os animais zurram, corpos se chocam com a carroceria, engradados caem no chão e perus escapolem dando início a outra perseguição. Despertado pela colisão, o carroceiro não entende o tumulto.
Do lado de fora do Despertar, Giovane avista a perseguição e percebe que a apetitosa caça é a carga que esperava. Enfurecido, corre aos berros para salvar suas outras aves de pena.
-- Passa cá. Este peru é meu.
Alertado sobre a colisão, Manuel do Porto deixa o depósito do Armazém. Homem grande, de sobrancelhas negras e grossas, metido em camisa de malha e tamancos, usa uma grossa corrente de ouro com um medalhão do seu santo padroeiro. À calçada, vê o tumulto, a carroça da Brigada Sanitária e o corre-corre do Giovane. Cospe no chão e sai em socorro do italiano. Osman fecha a loja, Alípio defuma a venda e, em sentinela, à porta da confeitaria, o alto Menères declara com as mãos cruzadas nas costas:
-- O Brasil acabou em 89.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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quinta-feira, 26 de março de 2015

Capítulo Vinte e Três

EXPECTATIVAS PARA 1904


Herculano conseguiu soerguer-se do seu terremoto emocional. Retornou à função acadêmica na Escola Militar e ao acompanhamento da vida nacional, movimentada pela eleição à presidência do país e, em seguida, pela vitória de Campos Salles. Um trecho do discurso de pose chamou a sua atenção: “As paixões e violências do espírito partidário, que embaraçam a atividade governamental, devem ser proscritas; espero o patriotismo do Congresso Nacional e a austeridade da nação para tornar efetivas as providências reclamadas pela difícil situação financeira do país”. Ou cuida da saúde do Tesouro Nacional ou a bancarrota alcançará a todos. Um bom motivo para a oligarquia ser patriótica, aventou Herculano durante a leitura de jornal. Dias depois, leu sobre a nomeação de Theodoro ao cargo de secretário de Campos Salles. Desde criança, frequenta os salões dos barões e coronéis que ocupam a tribuna. Eis o mérito que o guindou ao governo, pensou com relação ao antigo colega de internato.
Decerto que houve menosprezo nesse comentário, como ironia, no anterior. Mas, ao revés do ocorrido no passado, de indignações contidas, Herculano experimentou a mais glacial frieza ao conjeturar sobre o cenário nacional. A conta do tempo e do saber desperdiçados em atender interesses particularistas chegara para ser quitada e vinha acrescida dos gastos feitos com os conflitos armados dos últimos anos.  Por outro lado, Campos Salles já dera sinais de que não se esquivaria de pagar essa conta, nem de ministrar as doses necessárias do remédio amargo para renegociar a dívida externa, controlar a inflação e criar condições de encarrilhar o país na estrada do progresso. Esses sinais se configuraram na visão de Herculano como a oportunidade que ele esperava para lutar pela República: uma conjuntura marcada tanto pelo ônus de medidas impopulares, que desencadeariam insatisfações e desejos de mudanças, como pelo bônus de já ter sido realizado o pior do ruim que precisava ser feito e que reduzia as adversidades a serem enfrentadas por um governo efetivamente revolucionário. Mirou esse futuro, convicto de que faria parte não só da efetivação desse governo, como também das forças que o protegeriam de ofensivas inimigas, sequiosas de reaver o poder perdido.
O desenrolar dos acontecimentos confirmou boa parte dos seus prognósticos. Campos Salles renegociou a dívida brasileira e pactuou com os governadores o perfil dos interessados locais em disputar a próxima legislatura. Obteve o compromisso das forças estaduais de somente apoiar candidatos adeptos da austeridade almejada. As eleições foram realizadas e os resultados, das urnas e das diplomações dos eleitos, consistentes com o teor do pacto acordado. Dali em diante, Theodoro entrou em ação para cumprir a missão que o presidente lhe dera:
-- Faça o que for preciso e me dê condições de obter, sem embaraços e sem lutas intestinas, as leis de que careço para governar. Eu sanearei as contas do país, outros que façam o saneamento das eleições, do parlamento e do que mais for preciso.
Assim foi feito. Não tardou para as marés das insatisfações se levantarem e se recuarem sob a força da Lei. Os jornais da oposição se tornaram o porta-voz de revoltas impotentes. Uns combatiam o aumento dos impostos e a carestia. Outros, a penúria da educação. Atribuíam a Campos Salles a opinião de que a população podia, sem prejuízo, dispensar a cultura intelectual e tirar proveito maior com a cultura das batatas e das urnas, onde até defuntos votavam. Já, aos balcões dos cafés da cidade, entreouviam-se as opiniões de que o governo não chegaria ao seu final. Mas precisava chegar, pensava Herculano, para não mudar a situação de seis por meia dúzia e dar tempo de surgir o comandante capaz de conduzir o ansiado movimento revolucionário.
Em novembro de 1902, Campos Salles passou para Rodrigues Alves a faixa presidencial, com a dívida externa renegociada, o crédito nacional recuperado e as contas públicas equilibradas. Deixou o Palácio do Governo, com escolta reforçada e debaixo de vaias. Pouco se importou. Trocara a popularidade pelo resultado que acabara de entregar ao seu sucessor.
Essa indiferença há algum tempo intrigava Herculano. Se havia tamanha força, tão notável galhardia, por que Campos Salles não a expressara antes mesmo do governo provisório, no tempo do império? Por que deixara interesses menores se sobrepor aos nacionais? E por que revelara o melhor de si apenas sob a pressão da catástrofe?
Não alcançou resposta diferente da formulada há quatro anos: a situação de bancarrota do país amainara as ambições que historicamente impediam a proficuidade da administração pública do país. O problema do Brasil era de cunho moral.
Dirigiu sua atenção para Rodrigues Alves, que revelou possuir perfil pragmático similar ao de Campos Salles quando divulgou as prioridades do seu governo: reformar o porto, combater às epidemias e reurbanizar a Capital Federal. Theodoro continuou no governo e na mesma função. Logo mais a maioria parlamentar concedeu poderes plenos ao prefeito Pereira Passos para modernizar a cidade, mantendo para si a atribuição de aprovar o orçamento. Regulamentos renovados passaram a normatizar os hábitos de higiene e a postura nas vias públicas e as primeiras demolições ocorreram. O povo de pronto alcunhou o prefeito de Bota-abaixo e apelidou de Mata-mosquitos o diretor de Saúde  que recebeu a missão de extinguir as epidemias. 
Em nada esse quadro abalou a convicção de Herculano de que a marcha histórica rumava para a restauração da República. Há muito a população vinha sendo fustigada pela carestia e, com certeza, se indisporia com qualquer prioridade que aumentasse suas penúrias. Do contrário, não teriam ocorrido as greves que pipocaram na cidade ao longo dos últimos dois anos, nem havido, em maio último, a reivindicação de redução da jornada de trabalho para oito horas diárias que reuniu, em praça pública, cerca de vinte mil operários. Formulava o cenário de mudanças com base em fatos e nutria fortes expectativas de vê-las concretizadas num futuro próximo, quem sabe até em algum momento deste recém-nascido ano de 1904. No mais havia Páscoa. Não aguentava mais conviver com a sua tristeza sem razão de ser, nem podia ter a sua atenção desviada da luta que há anos se preparava para travar. Era hora da mulher disciplinar suas emoções e lhe dar um lar onde pudesse recuperar suas forças para a batalha do dia seguinte. Ela não pode ser vista tão debilitada.  Tem de reagir, evitar o banho de mar, repetiu Herculano consigo mesmo, sentado sozinho no banco do bonde.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


terça-feira, 24 de março de 2015

Capítulo Vinte e Dois

DA CATARSE


A despeito do retorno ao lar, da promoção a capitão-lente da Escola Militar da Praia Vermelha, do desfrute das férias merecidas, Herculano viveu dias de mais pura escuridão. As cicatrizes invisíveis de Canudos o vexavam diante da esposa, da filha e dos agregados do lar, como se cada um enxergasse sua verdadeira medida. Constrangia-o também o retorno próximo à sala de aula, sem saber o que transmitir de Canudos aos alunos. Teria de mentir para não expor a própria cumplicidade à barbárie e se calar quanto à ambição malsã que causou a guerra e fez perdurar o fratricídio marcado por erros medíocres e selvagerias de toda ordem. Não podia denunciar os verdadeiros inimigos da Pátria, nem reconhecer alguns deles entre aqueles que se safaram da suspeita de serem os mentores do atentado frustrado ao presidente. Temia sofrer represálias por falar o que precisava ser denunciado, julgado e punido antes que Canudos caísse no esquecimento. Temia fim idêntico ao do agressor de Prudente de Morais, encontrado enforcado na cela e a morte anunciada como suicídio. Precisava proteger o nefasto de todos esses fatos, para salvar a si mesmo. Conviver com o fel da sua impotência, sem mais o álibi da crença de que um comandante inteligente só ataca quando pode derrotar seu adversário. Até que, certa noite, recluso na biblioteca, ergueu o corpo e bateu a mão sobre a escrivaninha, vomitando dores, culpas e menosprezos.
-- Essa derrocada moral não é minha. Não sou responsável por delitos sobre os quais não possuo poder para impedir e refuto a ideia de omissão como uma invenção delirante e oportunista que busca dividir culpas indivisíveis em meio à lei do mais forte.
Falava como se discursasse para sertanejos de faces escaveiradas e com panos rotos a cobrir o esqueleto acocorado naquele espaço.
-- A barbárie que eclodiu nessas terras de sol abrasador é obra de uma corja que castra o governo e a Justiça com a cumplicidade e a leniência de funcionários e parlamentares. Dos vícios hereditários dessa prática, nasceu o mal que criou vossas misérias e o atraso do nosso país. Porém, expurgo da mente os tormentos de vossas dores, das vidas perdidas, dos corpos mutilados, dos lares destruídos, de um enorme sofrimento para nada. Arranco do peito as decepções com o Exército e rompo os grilhões do sentimento de derrota, porque a guerra não terminou. Tão forte como vós, esgotarei, mas não me renderei ao poder desses facínoras que degolam anseios, estupram ideais e assassinam o tempo e o saber com os quais poderíamos evoluir de acordo com as nossas melhores afeições e os nossos mais estupendos dons.
Em pupilas dilatadas, Herculano virou-se para o quadro que fixara na parede quando se mudou para o casarão depois de casado. Caminhou e parou diante da República. Sentiu como se a corporificação dos seus ideais tocasse a sua face, afagasse seus cabelos e o abraçasse. Desmoronou, ajoelhando-se. Sentado sobre os tornozelos, chorou. Não percebeu a porta se abrir e a esposa entrar, preocupada.
-- O que houve?
-- Nada, respondeu erguendo-se de vez.
-- Mas sofre...
-- Já disse: não é nada.
-- Abra-se comigo.
-- Não se imponha assim.
-- Por favor...
-- Eu que peço: deixe-me sozinho.
Páscoa se moveu levada pelo desalento de perceber que o esposo lhe vedava também o acesso ao seu sofrimento. Porta fechada, um veio de luz riscou o chão no qual seu olhar percorreu como se buscasse o caminho para romper o grilhão que os mantinha isolados um do outro.

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Capítulo Vinte e Um

EMOÇÕES EM FRANGALHOS


Constrangido Herculano suportou a revista da tropa pelo chefe da nação em meio à luminosidade forte da manhã na Capital Federal. Sua reação não diferenciou muito da de outros soldados perfilados ali no convés do navio que os trouxera da Bahia. Com o porte alteado, em posição de sentido, escondiam emoções em frangalhos, aturdimentos ou incômodos com a cerimônia que lhes rendia homenagens pelo vitorioso combate. Talvez um observador atento pudesse identificar nos olhares opacos de uns, nas piscadelas nervosas de outros, ou na contração involuntária do músculo facial de Herculano a tensão provocada por essa celebração que se desenrolava agora com um discurso de conteúdo alheio à verdade de que a vítima fora derrotada e não o inimigo causador da mortandade em Canudos.
O pelotão finalmente desembarcou no cais Pharoux de onde seguiu o presidente e a sua comitiva. Logo mais o inesperado alterou a configuração da passagem do cortejo por entre a população reunida para saudar os combatentes. De um dos lados do aglomerado humano, um soldado à paisana pulou sobre Prudente de Morais e corpos se atracaram. Após minutos de luta e conturbação, o agressor foi preso e o ministro da Guerra, ferido, retirado em carreira, bem como o intacto presidente com a sua comitiva.
Somente após o final do tumulto e com a dispersão atônita em curso, Herculano avistou a família, ainda aglutinada em espanto a alguns metros adiante. Lá estava a mulher com a filha no colo, ladeada por Quitéria e Tião. Sentiu como se seus braços já os tocassem e o coração disparou quando Páscoa entregou Sofia ao colo da ama e veio em sua direção. Acelerou o passo contemplando o sorriso que nascia e iluminava o rosto de mais alegria à medida que se aproximava... Por um instante se nutriu da felicidade comum, mas as lembranças da guerra o atravessaram e soaram suas denúncias, como as asas negras de urubus em voo sobre o alvo putrefato. Não acolheu a mulher com o abraço anelado, nem a beijou quando a viu se abandonar saudosamente ao seu peito. Afastou-a, tomou-lhe as mãos entre as suas e a fitou em silêncio desassossegado.
-- Vamos para casa, disse-lhe Páscoa, recompondo-se diante do aflito olhar.

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domingo, 22 de março de 2015

Capítulo Vinte

CAMINHO SEM VOLTA

Na alta da madrugada de 18 de julho, soldados a pé, seguidos por outros a cavalo, começaram a descer Favela. Herculano compunha a leva montada que, como manchas escuras, moviam-se pelos declives do morro, deixando para trás os feridos e a coluna defensiva, comandada pelo combalido Savaget. A tensão os mantinha em alerta e o coração disparava ao menor ruído de pedras roladas ou do resfolegar dos cavalos.
A alvorada chegou abandonada pelas aves. Quieta iluminou o solo revolto por outeiros, que, intercalados por planícies breves, circundavam Canudos. A caatinga se mostrou amarelada pelo estio e serpenteada pelo rio Vaza-Barris que, em água rasa, dirigia-se para o alvo do combate. Logo os soldados avistaram os primeiros casebres desprendidos do aglomerado do arraial, de onde se assomavam as torres de duas igrejas.
Veio o sol e depois o fogo da artilharia inimiga disparado dos recostos e cumes dos montes. Em trotes livres para a morte ou para a sobrevivência, a cavalaria revidou o ataque. Herculano trotou em direção ao coronel Telles a fim de criar a cumplicidade necessária ao pleito almejado de lhe propor a disposição do comando-geral da brigada. Mas o destino concorreu contra, e o coronel tombou alvejado. Herculano apeou para socorrê-lo – a montaria fugiu assustada com a zuada da batalha – e só lhe restou correr com o superior vergado no ombro. Atravessou em meio dos tiros, dos gritos de dor e das vivas dadas ora à República, ora ao Bom Jesus. Alcançou enfermeiros, deitou Telles na padiola e retornou ao combate, atirando, rolando, rastejando até alcançar as bordas de Canudos, onde pulou numa trincheira e de lá continuou a tirotear em alvos à janela, ao telhado, à esquina de vielas, onde os inimigos os detinham. Sem tréguas, o tiroteio se desenrolou até o poente quando o silêncio se fez. Ouviram-se então os sinos das igrejas, depois o canto da Ave-Maria e, em seguida, o murmúrio da ladainha entoada pelos oponentes, que ressoou pelas terras onduladas de céu avermelhado. A emoção tomou conta de Herculano, com o olhar na arena, onde cerca de oitocentos companheiros estiravam-se entre mortos e agonizantes.
Os sertanejos inovaram as regras do combate e recomeçaram o tiroteio à luz evanescente do dia. Palmo a palmo, tomaram o espaço perdido horas atrás para as baionetas legais e, por horas sucessivas, fustigaram os soldados entrincheirados, sem condições de remover os tombados. Canudos parecia insuperável e a noite, infindável.

Canhões desceram Favela no amanhecer. O bombardeio forçou o retrocesso dos oponentes e deu cobertura para a retirada dos mortos e feridos. A operação se prolongou abastecida pelas baixas de novos e consecutivos ataques. Minguava a força militar detida no quintal dos canudenses, enquanto superlotava os feridos no morro, em níveis de insalubridade alarmantes. A permanência em Favela tornou-se insustentável e a remoção dos combalidos, inadiável.
Encurralado pelas consequências de seus erros, Arthur Oscar autorizou a remoção da primeira leva de baixas e pediu reforço ao governo. Herculano acatou a ordem de conduzir o grupo, sentindo um misto de alívio em sair da linha de combate e de menosprezo a si mesmo por não ter coragem de meter uma bala na cara do comandante.  Com centenas de feridos, partiu sem carroças e cavalos para tanta gente.
Ao longo do deslocamento vagaroso e dolorido, o calor crestava, enquanto a água e a comida rareavam. Fome, sede, putrefação e delírios incorporaram a marcha. Muito iam ficando pelo caminho, sem forças para prosseguir e sem braços que os apoiassem.
A obstinação em chegar anestesiava Herculano às voltas com o sofrimento ao redor e com as próprias tentativas fracassadas de enviar mensageiros para providenciar ajuda. Houve então o encontro providencial com a expedição enviada pelo governo para conhecer a verdadeira situação do combate. Comida e carroças foram partilhadas, e a marcha seguiu seu torturante curso.
Dois dias de agonia transcorreram antes de Herculano penetrar Monte Santo com seus mortos vivos. Por conta própria, não retornou para a área de combate. Telegrafou a Benício – “precariedade no QG; desespero no campo de batalha” – e se integrou aos esforços para cuidar dos enfermos e despachar os mais fortes para um vilarejo, onde tomaram o trem para Salvador. Nessa leva seguiram Savaget e Telles levando a sua esperança de que os relatos dos oficiais ajudassem a pôr fim na maldita guerra.

O possível esperado por Herculano se concretizou das notícias desembarcadas na Capital Federal. Prudente de Morais ordenou a intervenção pessoal do Ministro da Guerra em Monte Santo e para lá se dirigiu o marechal. Sua presença mudou o cenário local. Duas mil barracas ocuparam o vilarejo, cirurgiões e estudantes de medicina foram recrutados e assumiram posições no hospital, e serviços de abastecimento implantados.
A guerra entrou em nova fase. Cinco mil homens reforçaram as colunas, enquanto barreiras fecharam os acessos para Canudos. Submetidos a regime de privações, mulheres e crianças do arraial se renderam e rebeldes foram capturados em número expressivo. Arthur Oscar indagou ao ministro da Guerra sobre o destino dos rendidos.
-- Nas áreas da retaguarda não pode haver jagunços, respondeu o marechal.
Logo depois retornou à Capital Federal.
Casos de estupros e de degolas de prisioneiros vieram à tona. Médicos se indignaram e protestaram. Arthur Oscar declarou que os indignados tomassem tento porque estavam em uma praça de guerra. A ferocidade migrou da escuridão da noite para a luz do dia. A violência vingou mortes e dores, liberou selvagerias e criou uma coesão criminosa direcionada ao extermínio dos sertanejos.
Ao cáustico brilho solar ou em tépida claridade lunar, Herculano purgava em tormento. Se a sensatez lhe mostrava sua impotência para conter a crueldade em curso, se o advertia para se proteger da fúria assassina contra os prisioneiros, outra voz interna lhe figurava sua cumplicidade com essas involuções. A imagem da barbárie despojada das vestes leves da civilização se assomou, pronta para degolar a sua fé na lógica do ideal. Como um vulto à noite, uma sombra ao dia, que postergava a navalhada mortal, o espectro se satisfazia em estuprar seu sentido de hombridade, em zombar da sua pequenez, em escarnecer da sua pretensão de influir na edificação de uma nova ordem material. Herculano sentia não possuir a mesma nobreza de suas crenças, de não ser tão íntegro quanto aspirava, de ser um covarde que se agarrava ao ideal republicano numa tentativa desesperada para valorar a própria existência e corresponder em dignidade aos milhares de anos despendidos pelo homo sapiens para se firmar com as potencialidades da sua inteligência esclarecida pelas ciências e pelas artes.
Dormir tornou-se um problema. O ar quente e estagnado da tenda o incomodava, e o sono quase sempre era agitado e interrompido pela sensação de opressão. Acordado em assombro, levantava-se e, na fresca da madrugada, se quedava buscando apaziguar suas emoções. Durante uma dessas saídas noturnas, aproximou-se de si uma referência cara e há alguns dias em deslocamentos pela região como correspondente de guerra. Era Euclides, acossado pelos mesmos fantasmas. Os tormentos comuns dissolveram divergências passadas e intermediaram o resgate da amizade.
-- O que nos espera nas bandas do futuro?
Herculano respondeu com ar descrente.
-- Não sei.
-- Pesa-me tudo. A violência e o meu próprio silêncio. Mas como denunciar a verdade absoluta desse extermínio?
-- Esquece isso. Somos a impotência do ideal e o abalo da fé na evolução.
Euclides atentou para a amargura de Herculano.
-- A campanha já está no fim. Por que não pede uma licença?
-- Não quero e não devo. Escolhi o Exército.
-- Entendo. Eu se pudesse viveria só de escrita, mas não tenho essa opção.
-- O livre-arbítrio resume-se na capacidade de perseverar.
-- Nossos patrícios que o digam. Em vez de fugir enquanto havia estrada aberta para a salvação, preferiram permanecer.
-- Alguns caminhos não têm volta. É o caso do tomado pelos daqui. Resistirão até o completo esgotamento. 
E resistiram. A seis de outubro de 1897, ao som dos últimos gritos de dor, o fogo destruiu o que não fora incendiado por chamas antecessoras. Findava assim quase um ano de luta, com um saldo de cerca de cinco mil soldados mortos para um desconhecido número de baixas sertanejas de uma população estimada em vinte e cinco mil pessoas.
  
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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sexta-feira, 20 de março de 2015

Capítulo Dezenove

EM FAVELA


A mensagem do comando-geral para avançar só chegou em 26 de junho, com a tropa em deslocamento. Dias antes, o general Savaget levantara acampamento, pressionado pelas condições de insalubridade que a permanência no local criava, e comandara o primeiro ataque vitorioso durante a travessia das serras de Cocorobó. Porém se ferira e a tomada do território adiante se deu sob o comando do coronel Telles.
Após o recebimento da retardatária ordem, novas horas transcorreram-se em ataques vencedores ao longo da passagem pelos morros de Macambira que elevaram o número de mortos para oitenta num total de trezentas e vinte sete baixas.
O poente já avermelhava o céu quando pisaram as cercanias do arraial e ouviram os canhões de Arthur Oscar. Herculano e Benício se entreolharam, com o entendimento comum de que o comandante-geral iniciara o ataque para tentar derrotar sozinho o adversário e concretizar seus interesses de glória. Confirmaram seus entendimentos ao saber que o bombardeio a Canudos começara de manhã, e, para os soldados pasmados com a precipitação bélica, repetiram a justificativa de Savaget que um motivo de força maior ainda desconhecido explicava o ocorrido. Era o possível a ser feito para fortalecer o moral abalado com o risco de o ataque não combinado vir a comprometer a vitória de táticas bem planejadas e executadas até ali com maestria pelo agrupamento.
Entraram em ofensiva no raiar do dia e foram silenciados pelo pedido de socorro de Arthur Oscar, sitiado em um morro chamado Favela. Depois de análises entre mandar recursos ou unir-se a outra tropa, o ferido Savaget decidiu pela união. Durante o comunicado da decisão, Herculano viu a troca de olhares ariscos e, depois, homens sussurrando. Percebeu desaprovações e receou o vindouro de um deslocamento feito sob a força da disciplina e não da confiança no general. Mas logo a questão se dissipou em seus pensamentos, tomado pela prontidão em revidar o ataque inimigo.
Com descargas enfurecidas ao longo do dia, impuseram a derrota aos adversários e liberaram o caminho até os companheiros. Galgaram os recostos de Favela e um cenário desolador se descortinou. Pelo chão, estiravam-se seiscentas baixas entre mortos e feridos. Ao luar os mais resistentes ainda se ocupavam de enterrar mortos, socorrer feridos, alimentar famintos, reconstruir trincheiras, enquanto o Estado-maior das duas brigadas tentava convencer Arthur Oscar de acampar em outro local com acesso à estrada para obter alimentos, água e munições.
-- Não sou homem de arredar pé de posição conquistada. Além do mais, Monte Santo mandará em breve um comboio, disse o inflexível comandante-geral.
O medo da derrota por inanição encorajou as altas patentes a se indispor com a relutância do superior. Pressionado, Arthur Oscar autorizou o envio de um piquete para acelerar a chegada do reforço e protegê-lo do risco de interceptação pelos inimigos.
Herculano foi escalado para a missão e partiu com outros oficiais. Encontraram o quartel-mestre de Monte Santo desorganizado e desprovido de víveres. Apenas a seção do telégrafo funcionava. Pediram reforços. Quando retornaram com o carregamento, em 13 de julho, Favela vivia a penúria física e moral. Durante os últimos dias, somente os enfermos haviam recebido rações diárias; os sãos se alimentavam com o obtido em caçadas e incursões às roças do entorno. Instalou-se, no acampamento, um comércio oportunista. A falta de solidariedade proliferou como erva daninha. Isolado na sua tenda, Arthur Oscar ignorava a situação da tropa, aferrado no seu pernicioso comando.
-- A desdita não me afrouxa o garrão!
Por fonte não identificada, o retorno à Favela trouxe também notícias dos telegramas de Benício. O comandante-geral chamou o jornalista.
-- Vossos telegramas tiveram mau efeito na Capital; o que andas a falar?
-- Das lutas e do cerco de fome e de jagunços em que nos metemos aqui.
-- Parece que a zona de combate não é o local certo para o senhor.
-- Queira Vossa Excelência me desculpar, mas não invento nem aumento o que vejo e, se não for para dar notícia ao jornal, o que devo fazer?
-- Partir porque não posso mais zelar pela vossa segurança. Assim, por apreço a vossa vida, deixe o acampamento – e sem voltas, dessa vez.
Logo depois, o jornalista se despedia de Herculano.
-- Melhor eu dar o fora antes que uma bala não sertaneja atinja meus miolos.
-- Com tudo o que viu, é mais útil no Rio do que aqui.
-- Espero que sim. Outra coisa: houve consultas de uma deserção em grupo durante a sua ausência. Tudo à boca miúda e vacilante.
Enquanto ouvia Benício relatar a consulta, Herculano pensava nas consequências da debandada para a reputação do Exército e na operacionalização da iniciativa. Era impossível deixar para trás a artilharia para aliviar o peso durante a fuga e impraticável remover enfermos sem retardar a marcha nem ser alvo fácil do inimigo. Não precisou objetar a ideia, pois o jornalista fez a mesma análise e contou que os consultantes não estavam mais no acampamento: um sumira após dizer que iria procurar comida e outro fora alvejado na véspera talvez por alguém da tropa.
-- Temos de trocar o comando, é a única solução, concluiu Herculano.
-- Há espaço para isso. Savaget está prostrado e há tensão no seu Estado-maior. Sinal que não compactuam com a loucura de Arthur Oscar.
Benício se foi e Arthur Oscar falou a tropa sobre o ataque próximo. Durante a exposição, Herculano mirou o coronel Telles, responsável pelas táticas vitoriosas da sua brigada. Vislumbrou no coronel o oficial apto a destituir o extrapolado comandante.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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