terça-feira, 30 de junho de 2015

Cento e Quatro

O ESTOMPIM DA REVOLTA


Enquanto políticos celebram a aprovação da vacina, na Casa Rosada, Theodoro penetra os aposentos de Ninon e a encontra à escrivaninha a conferir contas do negócio.
-- Já devo descer?
-- Advinha quem está aí?
-- O presidente!
-- Valentin. Mande vinho, ópio e alguém para fazer companhia pra ele. Está lá no aposento reservado. Tem um cartão?
Ninon abre uma gaveta; Theodoro vê no interior algo que lhe interessa.
-- Posso ficar com isso?
Ninon ri do interesse despertado pelo seu porta-níquel de veludo. Retira o objeto e o cartão solicitado e lhe entrega. Saudações escritas, Theodoro dá a ela o bilhete.
-- Faça chegar até Valentin e o segure lá.
-- Tentarei fazer o melhor.

*

A aprovação da Lei da Vacina traz de Minas Gerais o barão Campos Altos, que aconselha cautela ao filho.
-- Afaste-se das reuniões. A hora é de ação nos bastidores.
-- Preciso estar presente para defender nossos interesses.
-- Pinto de Andrade o fará.
-- Um acautelamento como esse pode me alijar do movimento.
-- E lhe dar o álibi de que é um apoiador da livre-expressão, se algo der errado.
-- Covardia não me credencia no novo governo.
-- Tolice! Entramos com a bufunfa e Sodré tem um pacto firmado conosco. Em todo caso, amanhã mesmo, eu falo com Ouro Preto sobre esse ponto.
-- Penso em ir para São Paulo ouvir Leopoldino quanto aos próximos passos. 
-- Isso sim. Aproveita a estada e visita também Aureliano. Tem se revelado um estremado apoiador e a ocasião é oportuna para estreitar os laços com a jovem Eufrásia. Faça a corte e eu acerto o casório.
-- Prefiro pensar em matrimônio quando tiver clareza do meu futuro.
-- Por causa de apreensões tolas deixa escapar o que tem na mão?
-- Apenas quero organizar melhor a minha vida. Mal cheguei do exterior.
-- Casar faz parte dessa organização. A República é paulista e nossa família precisa enraizar-se lá. Agarre essa oportunidade de ter uma esposa rica e um sogro influente. Tudo o mais se resolve depois.  

*

Fabrício não comparece à reunião do levante. Sua ausência é justificada por Pinto de Andrade: -- teve de ir pra São Paulo. Os demais não se detêm no assunto e iniciam as deliberações sobre as próximas ações, pós-aprovação da vacina.
-- Já é hora de convocar o povo para a luta, diz Varela.
Vicente de Souza, em noite de estreia no grupo, fica alarmado.
-- Melhor não. Pode assustar a população ordeira, pondera.
-- Pois vamos transformar o medo em coragem.
-- Isso só dando razões pessoais para o combate, pondera Herculano. -- Que homem não pensaria em pegar em armas se a filha ou esposa tivesse que se desnudar para um estranho?
-- Há o decoro, mas chamar de desnudamento o mero levantar de uma manga, parece-me algo demasiado, comenta Agostinho.
-- Não, se a vacina for aplicada em outra região do corpo.
-- O que não será.
-- Pode haver uma versão que diga que sim.
Brito se constrange com a proposta. Fita Herculano e mais tarde, o questiona.
-- Isso é manipulação. Não estou te reconhecendo.
-- É tudo ou nada. Não podemos perder essa oportunidade. A população tem de estar disposta a pegar em armas, se for preciso.
-- Não é por aí. Preciso ir, mas a gente volta a conversar depois, diz e vai embora.

*

Sessão da Câmara. Lima discursa.
-- O que esperar de uma regulamentação que pretende lancetar braços e sabe-se lá que outras partes dos corpos das mulheres e moças de bem do Brasil?
Em pouco tempo, e para além da Casa do Povo, o local da aplicação da vacina migra dos braços para as coxas, nádegas e virilhas. Indignação e revolta agitam os ânimos e a dignidade de senhores e senhoras pela cidade afora.
-- Onde já se viu uma coisa dessas? Vá lá que a messalina tire a roupa, mas a moça donzela, a esposa, a mãe? Isso não!
-- É o bota-abaixo da decência.
-- A perdição da família!
-- Podemos pegar a moléstia da virulenta e até da degradação.
-- E pelas mãos de um homem qualquer. Que vexame!
-- É a lei cega e surda aos abaixo-assinados.
-- A nossa autoridade debaixo da bota alheia.
-- Como um homem volta pra casa no fim do dia sem poder afirmar que a honra da família está do jeitinho que deixou quando saiu para o trabalho?
-- Não sou um fracalhão nem capacho de mata-mosquito. Sou homem e cidadão. Boto pra correr o primeiro cafajeste que bater em casa.
-- Não adianta embezerrar. Ou arruma um da esmeralda pra te dar o atestado ou se prepara para a espetada da despudorada e ponto final.
-- Você que pensa. Vem luta por aí e das boas.
  
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Capítulo Cento e Três

TOUCHÉ


-- Finalmente conseguimos nos encontrar, diz Theodoro entregando a Herculano um cálice de Porto.
Ergue o seu numa menção de brinde. Herculano repete o gesto. Ambos se sentam. Estão na sala reservada do Clube dos Funcionários.
-- Então quais as perspectivas para 1905?
-- Muito trabalho, responde Herculano.  
-- Ainda mais num país como o nosso, onde tudo está por ser feito.
-- Exato.
-- Acha que a civilização depende do progresso das associações?
-- Totalmente e também do aperfeiçoamento da igualdade de condição.
-- Folgo em saber que é leitor de Tocqueville! Democracia na América é um dos livros que mais releio.
-- Há muito para assimilar. Mas faço um pequeno ajuste no aforismo do filósofo. A Moral é a ciência-mãe, não a ciência das associações. Une-se por motivos diversos e nem todos levam ao progresso da maioria.
-- Bem notado. Há esse lado. A propósito, que motivos unem os conspiradores denunciados pelo governo?
-- Não tenho acesso ao relatório policial para dizer.
-- Esgrima bem, Capitão. E me explico. Não viso obter delações do senhor. Meu interesse é saber se tem outra aspiração, ou somente a de depor o governo.
-- Pode ser um pouco mais objetivo?
-- Simpatizo-me cada vez mais com o senhor e lhe digo: bom seria se pudéssemos resolver os problemas do país de modo impecável e consecutivo como as etapas da solução de um teorema. Mas essa racionalidade parece ser somente do domínio da matemática, não das relações humanas. Essas se pautam por uma lógica pessoal, nem sempre razoáveis para o bem comum. De tal modo, se pretendemos remover o atraso do país, temos de ser hábeis no trato dessa realidade.
-- Imagino que o pragmatismo faça parte dessa habilidade.
-- Claro! Um atributo-mor da inteligência.
-- Com o risco de desvirtuar, no mínimo, para a leniência.
-- Trabalho com a matéria-prima à disposição, sem fazer juízo de valores. Preciso de resultados, pode me compreender?
-- Perfeitamente.
-- Que bom. Porque tenho uma oferta a lhe fazer, se for do seu interesse, é claro.
-- Pois não.
-- Vejo-o no governo e posso pôr o senhor na pasta da Instrução ou no ministério da Guerra. Poderá servir a Pátria e crescer. O que me diz?
-- Infelizmente, não vejo espaço, a julgar pela realidade que me descreveu.
-- Acha que carreguei na tinta?
-- Não, de modo algum. Temos um Estado impotente, e creio num forte, edificado pela aplicação das ciências e regido pela Moral.
-- Por isso o meu convite: venha construí-lo conosco.
-- Possuímos premissas diferentes.
-- Há sempre um ponto de convergência em tudo.
-- Não com o irrazoável, Dr. Theodoro. Sem ar e água não há vida. Assim não há como ignorar, nem barganhar as condições de existência e de progresso para todos.
-- Porém se barganha. Há até nome para isso: defesa de interesses e democracia. E não se engane: cada parte só quer ampliar o ar e a água que desfruta. Jamais abrir mão do que tem, nem que seja uma nesga em favor do outro.
-- Parece confortável com essa realidade.
-- Sim. Decerto que é uma atitude indefensável, porém, necessária, ou pragmática, como queira. É preciso se ater ao exequível e crescer com ele. Vê essa maleta?
Herculano diz que sim, sem olhar para o objeto no chão, ao lado de Theodoro.
-- Dentro há uma amostra do crescimento que poderá ter se nos associarmos.
-- Sei. E fora da maleta, o Estado continua sendo útil somente para a minoria.
-- Negativo. Se unirmos nossas forças, os avanços poderão ser maiores.
-- É bastante entusiasta, mas sou cético nesse particular, Dr. Theodoro.
-- Espero que não lute contra a lógica da realidade. É um adversário poderoso.
-- Todo homem tem de fazer suas escolhas.
-- Que podem ser revistas. Por que tornar o ideal um inferno para nós?  
-- No meu caso, por vaidade. Ser bem lembrado, compreende?
-- Imagina-se como um predestinado a feitos brilhantes?
-- Quase isso e, como o senhor, preciso também de resultados, mas advindos do saneamento do Estado. Só assim um número cada vez maior de desiguais poderá desenvolver o seu potencial humano e ter uma jornada de vida satisfatória. Agradeço o interesse na minha pessoa e o cálice de Porto.
Herculano se levanta e Theodoro o acompanha até a porta.
-- Mantenho em aberto o convite. Nunca me dou por vencido.
-- Boa atitude: o perdedor de hoje pode ser o vencedor de amanhã – e vice-versa.
-- Touché.  
Herculano meneia a cabeça e sai. Durante a conversa experimentou o prazer de perceber a intenção de Theodoro em cooptá-lo e agora, enquanto caminha, o prazer se redobra com a reflexão de que é visto como aquele que pode abortar ou levar adiante a tomado do poder: tudo concorre ao meu favor, pensa. O destemor se mistura com a confiança de estar a um passo de concretizar o objetivo de sua vida. O coração dispara como se fosse arrebentar. A imagem da República surge e se expande do seu corpo como um invólucro diáfano. A claridade da tarde resplandece. Raios de sol esbraseiam o paralelepípedo da rua. O sólido parece derreter. A atmosfera a ondular. E tudo faísca com o seu corpo envolvido pelo translúcido da República.
-- Está se sentindo mal? – alguém lhe pergunta.
Tenta fixar a visão, falar algo, mas não consegue. Escuridão. Quando volta a si, está sentado na cadeira de um engraxate, com um monte de gente diante de si.

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sexta-feira, 26 de junho de 2015

Capítulo Cento e Dois

PONDO A CONVERSA EM DIA


Honório Augusto está com Theodoro. Desde que regressou da Europa, essa é a primeira conversa que tem a sós com o filho. Nesse instante, ouve-o contar a explicação que deu ao presidente de como a nota do governo vazou para o jornal da oposição.
-- Inventei que um revisor vendeu a informação.
-- Ele aceitou?
-- Claro! E bem provável que tenha ocorrido isso mesmo. Tudo se compra e se vende – e aqui na cidade até rato.
-- Linguagem de expressão ou novo ramo de negócios?
-- Novíssimo, porém com vida curta. Surgiu durante a sua ausência. Cruz decidiu pagar cada rato caçado pela população. Pode imaginar o que aconteceu?
-- Fizeram criadouro para faturar com a medida sanitária?
-- Exato.
-- Meu Deus, onde esse mundo vai parar? E onde já se viu noticiar a conspiração. Que insensatez!
-- Fui voto vencido.
-- E Alves irresponsável. O que se passa com ele?
-- Muita pressão, talvez.
-- Cuide-se porque vem mais. É grande a insatisfação com o preço do café.
-- Estou sabendo. Mas não vai mudar o câmbio doa a quem doer.
-- Pra quê isso, se somos uma grande família e as finanças estão em ordem?
-- Num equilíbrio instável e há as concordadas a vencer. Se a balança pender pra menos, estaremos todos em maus lençóis.
-- Bom, por esse prisma, vale um pouco mais de sacrifício. Mas esses ânimos exaltados me preocupam. Melhor não deixar sua reputação tão colada na de Alves.
-- Pelo menos até 1906, não vejo outro jeito.
-- Sempre há modos de estar junto sem estar, Theodoro. Inclusive já poderia estar mais protegido se tivesse ajudado o comendador. Virou as costas até para o Emiliano! Como pôde? Olha se não estiverem metidos nessa conspiração.
-- Não tenho como compor com tacanhices.
-- Tacanho vota e faz voto. Aplaudo a sua visão financeira e os negócios com os estrangeiros, mas é nas mãos nacionais que esse capital enraíza aqui. Portanto, contenha-se e apare as arestas com os da terra.
-- Por quanto tempo mais acha que Ouro Preto e companhia irão querer torrar dinheiro se as fontes não estão boas para eles?
-- Torrar? Estão a investir e muito bem: voltam ao poder, se depõem Alves, e voltam, também, se o impedem de fazer seu sucessor. O próximo presidente virá realmente da tradição, enquanto você ficará em mau lençol.
-- Está a me subestimar.
-- Não subestimo meu sangue. Apenas chamo a sua atenção. A lavoura é a nossa vocação e vivemos muito bem de importação.
-- São Paulo não pensa assim. Quando propõem ao governo comprar o excedente do café, estão de olho nos recursos de que precisam para fazer suas indústrias. Isso é o que querem: risco zero, dinheiro e do Tesouro Nacional.
-- Pare com essa objetividade descortês.
-- Pai, por favor.
-- Por favor, digo eu. Não encontrará apoio com assertividades desairosas e sim com cordialidade e cautela. Esses são os nossos modos.
-- O tempo é de velocidade e ousadia.
-- E de preocupação. Desde que cheguei não faço outra coisa senão apaziguar os ânimos dos amigos. Estão receosos com a voracidade dos americanos e dos colegas canadenses. Algo me diz que sabem de você.
-- Até aí Inês é morta.
-- Deixe de ser imprudente. Os riscos desses negócios são altíssimos.
-- À altura do lucro que teremos.
-- Como, se Passos proibiu os privilégios no setor da eletricidade?
-- O Rui irá cuidar disso.
-- Como pode cuidar se defende a livre concorrência?
-- Acima de tudo, é um advogado – e bastante sagaz.
-- Espero. Mas lembre-se que nem sempre quem ganha leva.
-- Não seja tão prudente.
-- Meu filho, esse projeto da energia pode provocar rupturas irreparáveis.
-- Todos ganharão de um modo ou de outro. Não se preocupe.
-- Se é assim, sobra essa ameaça de subversão como espada na sua cabeça. Se não pode acabar com os patronos, enfraqueça os subalternos. Duvido que Ouro Preto tenha se lembrado disso. Quem esqueceu uma vez, esquecerá sempre.
-- Estou tentando isolar um capitão. Parece ser a inteligência tática do grupo. Foi bolsista do Pedro II na minha época e se formou em engenharia e estado-maior.
-- De origem humilde e preparado além do necessário, deve ter a presunção de ser capaz de fazer essa democracia do povo.
-- É o que eu acho.
-- Como pensa lidar com ele?
-- Conversar e tentar trazê-lo para o nosso lado.
-- Tem fundos para tanto?
-- Tenho. Mas estou incerto se o dinheiro o atrai.
-- Se tem dúvidas, não aja. Sabe algo dele que não possa vir a público?
-- A ficha é limpa. Já a mulher, não. Andou a passear com um homem, depois parou. Pus gente para investigar o que ela anda a fazer agora.
-- Se essa senhora trai ou não o marido, pouco importa. Guerra é guerra.
-- Isso eu sei. Mas um a carta anônima bem escrita pode vergar o Capitão de vez.
-- Sabe se o cavalheiro em questão é das relações dele?
-- Conhecido. Levou a mulher ao mar. Ela estava doente.
-- Ah, então crie uma lembrança desse senhor. Algo que suscite a dúvida e instale o desgaste da honra ferida. O capitão se vergará por conta própria. Nesses assuntos, a insegurança é tão devastadora quanto qualquer certeza.
-- É. Uma boa ideia, diz Theodoro pensando na sua própria situação.

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quarta-feira, 24 de junho de 2015

Capítulo Cento e Um

A PREGAÇÃO DA CONSPIRAÇÃO


Theodoro lê a nota do governo publicada no Imparcial. Porém, quando o sol alcança o alto do céu, O Farol derrama sua luz, num clarão incomum ao meio-dia. O rosto do secretário de governo se sombreia ao ver o conteúdo exclusivo impresso no jornal da oposição. Como tiveram acesso? Espantado, passa os olhos na crítica que ridiculariza a mensagem assinada por Silva Castro.
“A perversidade humana, sobretudo quando aguçada pelo interesse ambicioso, é fértil em encontrar, nos mais fúteis pretextos, nos acontecimentos mais insignificantes, um campo vasto para o seu gênero predileto de explorações. Desta vez, fatos não faltaram para arrastar o chefe de polícia pelo ridículo dessa denúncia, que ficará como outra nota triste da sua administração, eivada de idênticos sinais da sua reconhecida inépcia e absoluta incompetência.”
Mal digeriu o vazamento da informação, BV o avisa de que o Prefeito acaba de assinar o decreto que proíbe a concessão de privilégios para qualquer aplicação de energia elétrica. Deixa o Palácio em direção ao escritório de Ernesto, onde irá tomar providências que impeçam os sócios principais de serem pegos de surpresa.
A repercussão da denúncia de subversão circula pela cidade. Apoios ao Chefe de Polícia são ouvidos num café.
-- O homem não dorme em serviço.
-- Melhor pecar pelo excesso que pela falta.
Avaliações são feitas também ao balcão de um quiosque.
-- Silva Castro é um pau de dois bicos, com os graúdos, uma dama, com os miúdos, o demônio.
-- Tome tento, gente, onde tem onça, macaco não pia.
-- Arre, Matias. Tu és mesmo um moleirão.
-- Num tão vendo que num pode falar mal do governo?
Porém o povo fala e até na delegacia.
-- É um desarvorado. Onde já se viu fazer essa publicação. A imprensa vai acabar com a raça do Silva Castro, profetiza Barroso.
-- Todinha? Num sei, não, responde um cabreiro Raposo.
-- Pois te digo, todinha. Perderam vendas ganhas pelo Imparcial e pelo Farol. Farão o sonso pagar a conta.
-- Chi, é mesmo. Já tô vendo ele crucificadinho, crucificadinho.
Visão parecida se vislumbra num bordel da São Jorge e nas falas da Rufina.
-- Deixou apedrejar a gente, num foi? Entonces, agora é nóis quem apedreja ele com esses daí – os tais dito pelo jornal.
-- E como a gente topamos com eles?
-- Ora Maria Monga, onde a gente levanta a força? Na rua!
Justamente o que o fiscal Marcelino mais teme: o ajuntamento da miséria pouco é bobagem. Santo pai, cuide da minha frota!
Um pedido pertinente, a julgar pelo que se ouve ao redor da Vermelhinha.
-- Os conjurados têm razão. O governo faz da gente gato e sapato. Tá na hora de mostrar a nossa indignação.
-- Eu tô junto. Quero mais a confusão geral.
-- A patrulha vem pra cima e ó, sova n’ocês!
-- Quero ver! Meto o andante nas partes do primeiro que riscar na frente.
Determinação semelhante se expressa na venda Todos os Santos.
-- Só tá perdido o que não tem dono, diz um revigorado Manuel do Porto para um grupo de comerciantes desapropriados. É hora de juntar a força de outro modo.
-- Se cada um ajudar, o povo vai pras ruas, completa Fortunato.
Ao lado do patrão está Correia, satisfeito com o convencimento em curso.
Outros convencimentos evoluem no porão de um navio, com o serviço de descarga esperando o final da pregação. O pregador é Touro.
-- A abolição não tá completa. E o embelezamento da cidade não traz ganho pra gente, nem as obras do porto. É tudo pra inglês ver e o mesmo de sempre pra nós. Rachar o lombo sem ver melhoria. Agora, se querem mudar as coisas. Ser emancipado pra valer, homem respeitado pela mulher e pelos filhos, junte ao movimento. É hora de derrubar esse governo e acabar com esse progresso de merda.
No morro da Conceição, com vista para o navio, um homem magro, negro, sentado à soleira do seu barraco, dedilha a viola e entoa a sua mais nova criação.
-- Avançam a picareta e a injeção, o palacete e o casebre. Os deputados também avançam e nos réis da nação. Os senadores correm pra não ficar de fora, entram na lambança e no avanço todos vão.  Avança Progresso! É o doutor e o fidalgo a cantar. E lá vai o coió do povo puxando tanto avanço que nem fiel em procissão.

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Capítulo Cem

MAIS PARECE ÓPERA ÉPICA


Galos anunciam a aurora. Herculano atravessa o jardim do casarão com Agostinho e Varela. Juntos até horas atrás, no aniversário de Sodré, notícias sobre a nota do governo os reuniu de novo. Com o objetivo de explorar o fato, os três partem no coche conduzido por Tião rumo ao diário O Farol, que imprime o Comércio do Brasil.
O acaso teceu o acesso à notícia. Theodoro escolhera O Imparcial para publicar a nota. Só que o revisor do jornal é espião do editor-chefe d’O Farol. Fez com que uma cópia chegasse ao oficioso empregador, Maurício Carvalhais, amigo de Ouro Preto e adepto da deposição de Rodrigues Alves. Vizinho de Varela, Carvalhais bateu na porta do deputado e mostrou a cópia da denúncia, na qual há a menção até de um brinde feito por Barbosa Lima ao senador Sodré: “salve o guião impoluto na vereda da vitória”.
Durante o percurso, Agostinho avista um sujeito a cavalo vindo atrás e comenta com Herculano.  
-- Será que é o seu secreta?
-- Pode ser, nunca se aparta da montaria.
-- Os nossos ficaram a ver navios hoje.
-- Descemos cada um num ponto diferente e o despistamos.
-- Quanto mais perto do Catete, mais guardas estão na rua, observa Varela.
-- Assim que vejo a ação do golpe: a tropa perfilada e, de repente, movimenta-se sob o nosso comando. A parada militar de 15 de novembro me parece uma boa ocasião.
A proposta de Herculano surpreende os colegas.
-- Mais parece uma ópera épica, exclama Varela.
-- De volta ao hoje, diz Agostinho, quem vocês acham que é o alcaguete?
-- Se a nota fala no brinde, infelizmente um dos que estavam presente.
-- Mas quem? Éramos um grupo pequeno nessa hora!
Varela revela a sua preocupação.
-- Pode não ter sido intencional. Um comentário no calor da hora. Eu mesmo falei do brinde no quintal, com alguns dos alunos convidados.
-- Com quem?
-- Não conheço todos e traidor pode ser qualquer um.
-- Há o lado bom da denúncia, diz Herculano. Mostrou que o governo está com medo. Caso contrário, haveria investigação, não um comunicado esdrúxulo.
-- Isso mesmo. Onde já se viu dizer que matou a cobra sem mostrar o pau, zomba Agostinho.
-- Porém, averte Herculano, campanhas prolongadas nunca são favoráveis. Sugiro acelerarmos a preparação da operação militar.
-- Que venha a ruma das esporas.  
A impetuosidade de Varela apraz Herculano.

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Capítulo Noventa e Nove

DELIBERAÇÕES PRESIDENCIAIS


A alta cúpula do governo se reúne na manhã seguinte para deliberar sobre os rumores do golpe. O presidente autoriza o reforço da segurança do Palácio do Catete e o aquartelamento dos soldados da Brigada Policial. O ministro da Justiça apresenta a sugestão de publicar uma nota na imprensa e passa a palavra para o subordinado Silva Castro, autor da ideia.
-- Proponho um texto curto, em que a segurança pública informa à sociedade de que tomou conhecimento da existência de um plano subversivo. Avisamos que conhecemos a identidade de seus autores e que agiremos contra os aliciadores da subversão, caso aviltem a Carta Magna e a integridade do governo.
Theodoro discorda de modo categórico.
-- Não é matéria de comunicado, mas de prisão para investigação.
Há reações. Oficiais militares alegam que inexistem provas para amparar a ação proposta. Autoridades civis endossam o parecer, receosas de que a ação desencadeie ondas de protestos. O presidente procura se inteirar de informações específicas.
-- Se os insurretos não agirem durante o dia de amanhã, temos condições seguras de saber o que se passará nessa festa?
-- Sim, responde Silva Castro. Um estudante da Escola tem cooperado conosco.
-- Dr. Theodoro, até que horas uma tipografia pode aguardar a nota sem prejuízo dos seus trabalhos?
-- Se de sobreaviso, até de madrugada.
-- Por favor, tome as providências para tanto. Decidiremos a publicação com base no retorno da celebração dos anos do senador. No mais, que as medidas de segurança sejam tomadas o quanto antes.

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Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Noventa e Oito

VAZA A CONSPIRAÇÃO


É sábado, de noite, Abdias atende Vivaldino no portão do solar.
-- Preciso falar com o patrão.
-- A essa hora?
-- É coisa braba e contra o governo!
Em robe de seda, Theodoro o recebe e escuta suas notícias. 
-- Daí juntei uma parte na outra e posso disser: vão marchar contra o governo.  
-- Disjunta e conta parte por parte.
-- Sim senhor. Sabe como é, tudo escrito, calhamaços mandados para a tipografia, a raia miúda foi embora e os graúdos ficaram.
-- Pula os detalhes.
-- Acho que o senhor gostará de ouvir tudo para tirar suas conclusões.
-- Fale logo, rapaz.
-- Então, dali a pouco, chegou o doutor Fabrício. Apanhei um saco pra esvaziar as lixeiras e entrei na sala como um gato, de orelha espichada nas falas da festa de anos do senador Sodré. O capitão Herculano deu por mim e disse: já é tarde, Vivaldino, vai descansar. Eu respondi sim senhor, mas não querem um café fresco?
-- Resume.
-- Sim, senhor. Mas tenho de contar por que saí?
-- Vamos, rápido.
-- É prá já. Bom, deu no major Agostinho uma vontade danada de comer empada e do quiosque do Matias. Tive de ir comprar. Quando voltei, não entrei de pronto. Grudei atrás da porta, com um dedo assim de fresta aberta, e ouvi um resto de prosa. O Dr. Varela disse que era isso mesmo, que não há glória maior que ganhar a pátria como presente de anos! Aí entendi tudo. Vão derrubar o governo para ter o presente que querem dar pra o Dr. Sodré.
-- Quando será a festa?
-- Na segunda-feira.
 Theodoro pensa em como encaminhar a questão.
-- Sabe onde Silva Castro mora?
-- Sei, sim.
-- Vá com o Abdias até a casa dele e traga-o aqui.
Ordem cumprida, o relato de Theodoro enerva o chefe de polícia.
-- Parece que estamos a fazer a mesma função, secretário.
-- Tem alguém no Comércio do Brasil?
-- Não.
-- Resolvido esse ponto, apreciaria ouvir suas impressões sobre o relato.
-- De fato, os conspiradores estão se preparando para celebrar os anos do senador. Há dias um grupo de alunos se cotizou para presenteá-lo com uma escultura de bronze. Desse modo, suponho que seu informante aferiu a lástima dos conjurados em não poder realizar o que há tempos sabemos que é a intenção deles.
-- Seus homens estão em vigia ininterrupta?
-- Dia e noite. E não há nenhuma movimentação suspeita. Se houvesse, eu já teria sido avisado e agido com a prontidão que tão bem conhece.
-- Foi o que imaginei e que teria compartilhado comigo a sua eficiência.
-- Sem sombra de dúvida, senhor secretário.
-- Tem alguém para ir nessa celebração?
-- Sim, um aluno cotista do presente.
-- Isso que chamo de boas associações: cada um complementa a força do outro.
-- Farei uma ronda para me certificar da conveniência de informar o ministro Seabra ainda hoje ou na primeira hora de amanhã.
-- Abdias fica a sua disposição.
-- Agradeço, logo o liberarei.
-- Acompanho até o jardim e obrigado pela gentileza em me atender.
-- A Pátria sempre em primeiro lugar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


sábado, 20 de junho de 2015

Capítulo Noventa e Sete

DO FALCÃO DESTRONADO


Ninon lê na coluna social de um jornal a nota sobre o falecimento de Carlota. De noite, Theodoro lhe conta que foi suicídio.
-- Não há como abafar uma informação como essa durante muito tempo. Enfim, tragédias acontecem.
-- Sabe dizer se as filhas já chegaram?
-- Não.
-- Vou visitar Abreu Vaz.
-- Agora?
-- As horas noturnas são apropriadas para mim.
Theodoro acaricia o rosto de Ninon de quem anda afastado. 
-- Entendo seu apreço ao magistrado, mas estou aqui.
-- E logo partirá. Curtas e retas são as trilhas do seu desejo.
-- É ainda aprendiz de maga, minha deusa, porque enquanto a olhava, pensava como a duração da volúpia é longa.
-- Sim para os amantes que gostam de se conquistar todos os dias.
-- Ando distante, mas não quer dizer que não a quero mais.
-- Possui alma de bandeirante: assentamentos o entendiam.
-- Alguma dúvida de que é a minha gema mais preciosa?
-- Nenhuma, mas conceda-me a virtude de compreender a sua natureza.
-- Adoro você. E lhe concedo também a expressão da virtude da amizade. Não a atrasarei mais para ir ao encontro de Abreu Vaz. Passo aqui amanhã – se der!
A cortesã o acompanha até a porta, tranquila em perceber que o desejo se foi e a amizade ficou. Tem como se defender da concorrência sem se sujeitar ao falcão destronado.  

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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Capítulo Noventa e Seis

DRAGADO PELO VAZIO


Desde a publicação dos Cruzados da Moral, Abreu Vaz tem se desdobrado para comparecer no L’ Onde Bleue e também para estar junto da esposa. Quando a temática do meretrício sumiu dos jornais e as críticas à aventura extraconjugal silenciaram, suspirou certo de poder aquietar o seu elixir com a sua presença constante. Porém, o inesperado aconteceu. Carlota rompeu a dignidade do silêncio. Descarregou seus ressentimentos e acusou o marido de arruinar o casamento com o vício da carne. Novamente as escapulidas de Abreu Vaz tornaram-se céleres e difíceis, como essa que realiza pela Rua da Alfândega, por onde caminha com a bengala de osso negro e ponteira de prata a ajudar a carregar o fardo de seus dilemas morais.
Não entende a esposa, se o problema conjugal se desenrolou por causa do seu decoro. Com paciência e empenho, consumou a noite de núpcias meses depois de casado. Pensou que com o tempo Carlota se rendesse não aos deveres conjugais, mas ao aprazível do leito nupcial. Enganou-se. Quando a procurava, ela se enrijecia. Tanto que, se não fosse o desejo de ser pai, teria desistido do intento. As gêmeas Angélica e Amarílis foram concebidas. O juiz lançou-se em novas investidas desejoso de ter um filho. Violeta nasceu e Carlota pôs um ponto final nas procuras noturnas: “respeito-te como o baluarte da família e é na tua dignidade que quero me agarrar, não em teu corpo”. Da cama de casal, o magistrado se mudou para a do quarto ao lado, e desse leito para o dos bordéis. Até que houve a perda da potência, a resignação em ter se tornado velho antes da hora e o renascimento com as carícias de Mariinha, que avista entretida em contemplar uma vitrine na Rua Direita. Apressa o passo e enxerga a aproximação de um encarador pronto para dar o bote da conquista. O sujeito é Rubião, que, irisado de desejos, pega-a pelo braço. A moça reage.
-- Me solta.
-- Se é por falta de réis, tenho uns tostões aqui.
-- Vai lamber sabão.
-- Nunca me enganou, sua safadinha.
Abreu Vaz o interpela. 
-- Que modos são esses?
-- Ioiô!
-- Não se meta em assunto alheio.
-- Sabe com quem o senhor está falando?
-- Por acaso com Napoleão à paisana?
-- Com o Juiz Abreu Vaz e posso te prender por molestar a jovem.
-- Deixa a autoridade de lado e vem pra cima se é homem.
-- Biltre, diz e ergue a bengala.
-- Não, ioiô! Vamos embora!
Mariinha enlaça o braço do magistrado e o impulsiona a andar. Altivo, mão crispada na bengala, passa ao lado do encarador. No quarto do L’ Onde Bleue, o incidente acarreta a proibição de saídas sozinhas.
-- Ah, não.
-- Ah, sim. Ir pra rua desacompanhada é ser amoestada por ordinários.
-- E eu digo: ô seu pronto, não se enxerga?
-- Os homens são terríveis e ardilosos. Têm os brutos, como aqueles, e também os sonsos. És muito inocente, não vês maldade em nada, só alegria.
-- Não vejo problema algum. Ademais toda mulher sabe com que linha quer coser a sua vida – e as minhas são do seu carretel, Ioiô.
Amolecido com tanto dengo, Abreu Vaz a puxa para o seu peito.
-- Vem cá.
-- Ó, Ioiô! Eu não quero ver a vida passar trancada num quarto.
-- Calma! Tem todo o tempo do mundo pela frente.
-- Você não pensa em mim.
-- Piteuzinho, não recomece.
-- Se pelo menos viesse todos os dias...
-- Por que me faz sofrer, se sabes que não posso me casar com você?
-- Por que maltratas meu amor por ti?
-- Não maltrato e mereço a tua compreensão.
-- E eu a tua. Preciso tomar ar de vez em quando.
-- Não fica bem andares por aí sozinha. O que os outros dirão?
-- E de mim para mim, o que direi: és uma teúda e manteúda, sem direito a fazer nada na vida?
-- Não fale assim.
-- É verdade. Sou que nem um passarinho preso em gaiola de ouro. Não sei se aguento mais essa prisão.
-- Se eu chegar aqui e não te encontrar, nunca mais me verá.
-- É melhor então nem voltar.
-- É o que queres?
-- Eu não. Você.
Indignado, o magistrado dá as costas... Mariinha se mantém firme, mas depois que a porta se fecha, joga-se na cama em prantos.
Ao entrar em casa, Abreu Vaz intui problemas sinalizados pela presença da cunhada sóror e pelo seu semblante sombrio. A intuição se confirma com a notícia de que Carlota se suicidou. Sente-se dragado pelo vazio.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Noventa e Cinco

DOS TEMORES DE DIVINA


Divina arruma na mesa o lugar de sinhá Cota e de Anunciata, enquanto Delfina lava as louças do café já tomado. Para espanto das duas, Juliano surge em hora madrugadora para o seu despertar. Desde que retornou da viagem, o jovem trabalha na segurança do Maison Moderne, do meio dia até tarde da noite.
-- Bença, mãe, bença, tia.
-- Deus te abençoe, meu filho.
-- Tinha prego no colchão ou caiu da cama?
-- Coisa do seu Pietro. Pediu pra eu tomar conta duma arrumação pra não haver corpo mole e lengalenga.
-- Isso mesmo. Faz a coisa certa e hás de crescer.
-- Sabe quem vi ontem de noite, tia?
-- Quem?
-- O Capitão.
Divina sente um calor e Delfina estranha o local do provável encontro.
-- Na Meson?
-- No CCO.
-- E o que ele fazia lá?
-- Palestrava sobre a vacina e que o governo não pode vir chegando com o pé na medalhinha da gente. Gostei de ver a decisão do Vicente e a fala do Capitão.
-- É um homem muito estudado.
-- Seu Pietro não liga d’ocê dar uma saidinha do serviço?
-- Fui no conhecimento dele.  Pra conferir se o Pinto de Andrade estava lá.
-- E estava?
-- Todo cheio de noves horas com o pessoal do Centro.
-- Chi, isso não é bom.
-- Seu Vicente não é de arruaça, nem o Capitão.
-- A mãe tá certa, tia, Pinto de Andrade não estava lá a troco de nada, e o povo não pode ficar acarneirado, tem de ir pra rua mostrar sua razão.
-- Tinha muita gente?
-- Um mundaréu: do Touro até o alcaguete do Beiço de Prata.
-- Santo Pai! Isso não é bom sinal.
-- Vai que Beiço de Prata só foi pra se inteirar da injeção. A maldita pega os bons e os maus, sem olhar a quem.
-- Pois podia fazer a distinção e limpar o mundo de vez.
-- Ó meu filho, não diga isso. Há Deus pra julgar.
-- Por que não avisa o Capitão sobre o alcaguete?
-- Só sou da soleira da porta, tia. E há o Touro: já deve ter avisado pra ele.
Divina espera que sim. Mas os presságios do baralho inquietam seu coração. Procura tranquilidade junto a sua madona. Reza.
  
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Capítulo Noventa e Quatro

ENQUANTO RODA O COCHE


Theodoro confia nos prognósticos de que os deputados rejeitarão a emenda da vacina obrigatória. Porém, receia que derrota da oposição amplie a insatisfação nas ruas. Afinal, milhares aderiram aos abaixo-assinados contra a vacina. As tratativas para a aquisição dos ativos da concessão Willians também o preocupam. Avanços obtidos num dia, em outro, empacam por causa de ações adversárias. Da mesma forma o grupo não consegue obter a autorização para operar na Capital Federal. Para agravar esse cenário, acaba de saber que o prefeito está às voltas com a elaboração de um decreto para impedir o monopólio das concessões nos serviços de eletricidade. 
Anoitece quando encerra a jornada de trabalho e deixa o Palácio. Seu próximo compromisso será um jantar no solar. Irá receber os pais, que retornaram da Europa, quando verão que Catarina está grávida. Confere as horas. Dá tempo, acha e dirige-se ao o coche, com Abdias aposto. Ordena-lhe tocar para o cais. O empregado sabe aonde o patrão quer ir e o que espera de si.
O carro roda por uma viela iluminada pelo luar dos lampiões. Theodoro observa as prostitutas nas calçadas, às janelas das casas e às soleiras de pocilgas abastecidas de sexo, álcool e ópio. Escolhe uma meretriz e faz sinal para Abdias parar. O empregado estanca os cavalos, apeia, informa-se acerca da escolhida e a aborda. Negociada as condições, abre a porta do coche para a contratada entrar e põe os animais em marcha.
A mulher é morena e grande. A boca é larga e os lábios carnudos estão pintados de vermelho. Idade? Uma maturidade indecifrável. Usa blusa rosada, saia estampada e argolas douradas. Traz um galho de arruda atrás da orelha que impregna o ambiente com o seu aroma.
-- Tira a blusa e chupa, ordena Theodoro com o sexo exposto.
Desnudados, os seios se exibem volumosos, com os mamilos amarronzados e os bicos negros. Tatuagens em cores desbotadas marcam os braços carnudos. A mulher desliza um lábio no outro fazendo cuspe enquanto se ajoelha por entre as pernas do cliente. Acomodada, enfia a mão calça adentro e põe os testículos também para fora, por onde começa o serviço. Chupa-os. Theodoro se arrepia e sua excitação cresce conforme a língua áspera e quente corre ao longo da coluna do pênis. Excita-o também a sensação de deslocamento do carro, a penumbra, o cheiro da arruda e ver o seu sexo resvalar a face da mulher de um lado para outro. Pensa em açoites. A prostituta lambe o freio, as nervuras, a glande avermelhada e a abocanha. Num sobe e desce, fricciona a pele do pênis com os beiços, num movimento coordenado com a mão. Theodoro desliza os quadris e tomba as pernas dobradas, cada uma para um lado. Aperta os peitos da servidora, como se o ordenhasse. Não provoca reação nem a interrupção da felação. Pelos cabelos da mulher, imprime nas fricções o ritmo que quer. Sente o calor nascer dentro do seu sexo e correr como larva em direção da boca da cratera... – Haaa! Ejacula. A prostituta engole o sêmen espesso; esboça erguer a cabeça, mas é detida. Theodoro segura o pênis e o fricciona, com a glande coberta pelos beiços. Gotas finais de esperma saem. Então libera a mulher, que limpa os lábios com um lenço; veste a blusa, recebe o pagamento e vai embora. O coche parte em direção ao solar.

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Capítulo Noventa e Três

MORRA A LEI DA VACINA


O governo inaugura o primeiro trecho da Avenida Central em solenidade que celebra também a independência do Brasil de Portugal. Algumas gazetas parabenizam a entrega da via, outras criticam a reforma. Apolônio Cidadão critica o embelezamento, que chama de cenografia cara e alheia à penúria da população.  
Os dias se sucedem. Listas de assinaturas contra a obrigatoriedade da vacina circulam pela cidade e panfletos são distribuídos à população. Na Câmara Federal, a oposição obstrui a votação da Lei com intermináveis discussões. É aplaudida pela claquete arregimentada por Correia e pelo CCO. Nesta manhã, a força policial está presente dentro e fora da Casa do Povo, que ouve um assistente de Oswaldo Cruz.
-- A vacina é indiscutivelmente o meio mais eficaz de premunir o individuo contra o ataque da varíola. Porém é preciso elucidar aqueles que duvidam dessa eficácia e fazer com que a convicção se arraigue no espírito de todos. -- Como elucidar se de seguro só temos a intenção dos poderes públicos de transformar os brasileiros em cobaia das experiências claudicantes e incertas da pseudociência oficial? Coercitivamente, a Diretoria de Saúde manda aplicar na população as novidades que surgem no mundo das titubeações bacteriológicas. Mais parece as moças, que mudam os chapéus de acordo com as mudanças nas vitrines das lojas, declara Barbosa Lima.
Integrantes das bancadas vaiam e os das galerias aplaudem.
-- As medidas são frutos de pesquisas seriíssimas, realizadas aqui e no exterior com quem trocamos valiosas informações, atesta o orador.
-- Devem então indicar que a imunização não é sempre acompanhada de excelentes resultados como confirmam os registros de óbito.
-- Ao contrário, mostram que os casos de infortúnio devem ser relevados à vista das reais vantagens colhidas.
Varela brada.
-- Confirma então que a população está sujeita ao risco de morte?
O silêncio se faz.
-- Confirmo apenas que ninguém elimina da terapêutica os medicamentos como o ópio, o mercúrio e tantos outros, porque tenham produzido acidentes, mesmo mortais.
-- Morra a lei da vacina, grita a galeria e punhos rasgam o ar.
O presidente da Câmara pede ordem e Barbosa Lima ocupa de novo a tribuna.
-- Espero a condescendência desta Casa para com aqueles que o governo impõe a aprovação dessa temeridade. Mas queira ou não queira o governo, a responsabilidade é da Câmara. Quem vai decretar o despotismo é a Câmara, quem vai decretar a maior das abjeções para o povo é a Câmara. Que esta Casa cumpra o seu dever se puder. Se não puder, a Câmara que seja maldita!
Bancadas e galerias se digladiam em xingamentos. Jornalistas deixam o recinto e a expressão maldita Câmara aparece na edição de 30 de setembro na primeira página dos principais jornais da nação. Com a imprensa a favor da vacina facultativa, a equipe do Comércio do Brasil celebra o resultado.

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Capítulo Noventa e Dois

O QUE FOR SOARÁ


Manoel do Porto anda quieto ultimamente. Retornou para a venda fundada pelo pai à Rua do Mercado e administrada pelo seu primogênito. O nome Todos Os Santos recebeu o adendo Filhos e Filiais após a morte do fundador, que veio de Portugal com a família, quando Manoel era menino. O negócio cresceu e se ampliou para o recém-perdido ponto no centro da cidade. Os filhos, três rapazes entre quinze e vinte poucos anos, atendem nesse momento a freguesia ao som da ruma dos seus tamancos. Nos fundos, numa cadeira e ao balcão, como estátua em pedestal, a esposa Joaquina, com o cabelo preso em coque, trajando vestido preto e um crucifixo de ouro sobre o peito, policia as vendas, com o caderno do armazém na mão e um lápis preso à orelha.
O imóvel passou por uma reforma recente para se adequar às exigências do Código Sanitário. Paredes foram caiadas de branco, prateleiras limpas e envernizadas, e um monte de tudo reorganizado, entre secos e molhados, comestíveis ou não.  
Pelos fundos da venda, chega-se ao quintal e à casa, onde Manoel se casou e os filhos nasceram. Ali, enquadrado pela janela da sala, o comerciante pode ser visto, de camisolão, tamancas, barba por fazer e numa inatividade que preocupa a família.
Manoel praguejou, rebanhou os amigos para buscar em conjunto o auxílio da lei. Jurou sair no braço, caso suas perdas não fossem ressarcidas pelo governo. Contudo, com a lentidão da justiça, a fúria empedrou e o imobilizou. Como seu santo protetor, que morreu alvejado por flechas, ao lutar pela liberdade da fé, sente-se lancetado pelo infortúnio e nos mesmos órgãos: no coração, sofre a dilaceração causada pela perda das suas propriedades; na cabeça, a dor de não saber como esfolar os responsáveis pelo seu prejuízo. Porém, diferente da expressão de São Manuel, cunhada na medalha assentada no peito do português, seu olhar não fita o céu, com olhinhos revirados de santidade resignada. Seu olhar exala ódio.
Fortunado atravessa o quintal e acotovela-se no parapeito da janela. O conhecido, aparentado do finado padrasto, não se mexe.
-- O que te passas, Manoel?
-- O que tu vês. Estou a pensar.
-- Por que não atrás do balcão?
-- A mulher está lá.
-- Mas aquele é o teu lugar.
-- Há coisas que só um homem pode fazer e cá estou a queimar as pestanas para saber como arrancar do peito as flechas do destino.
-- Ah, bom. É disso que venho falar.
-- Estou a ouvir.
-- Há um plano para unir a força do povo e rebelar contra o governo.
O olhar de Manoel brilha.
-- Que gajo tá metido nisso?
-- Um tanto de militar, jornalista e operário, e uns políticos também. A ideia é ir para a rua e exigir a renúncia do presidente. Tem mais coisa pra acertar e o grupo precisa de apoio. Então, o que dizes?
-- Se foi fácil banir um rei bom, fácil será tirar um vira-casaca de merda.
-- Tem lá suas dificuldades, mas ao cabo de tudo, é a rebelião que sobra. Meu intento é unir os conhecidos e apoiar um capitão. Alguns meses ele está a palestrar comigo e com um grupo de obreiros. O homem tem fibra e preparo. 
-- A terra clama à ira divina – e Deus exalta o braço corajoso.
-- Que pode ser valente de muitos modos. Sabes que não fio em revolução pronta e acabada, mas na rotineira, feita pela cooperação entre homens livres.
-- O que te dá cuidados para disser isso?
-- Clareza dos intentos. O capitão precisa de dinheiro para pôr de imediato uma tropa de não fardados na rua. Conforme o andar da carruagem, ele vai explicando o que fazer e a gente se entendendo em como ajudar. Se o governo cair, tá bom; se só levar um susto, tá bom também. Algo já será surrupiado da sua tirania infernal. É assim que eu vejo a situação. O que tu achas?
-- Vale a fava se não tem a ervilha. O que for soará.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
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terça-feira, 16 de junho de 2015

Capítulo Noventa e Um

OPOSIÇÃO NAS RUAS


Inicia-se a coleta de assinaturas contra a vacina no Largo de São Francisco. A operação conta com o apoio do CCO e dos estudantes da Politécnica. Um universitário aproxima-se de Grego, recém-chegado da turnê.
-- Hei, é contra ou a favor do livre-arbítrio?
-- Que pergunta! Liberdade sempre!
-- Vem então assinar a lista contra a vacina obrigatória.
-- Onde?
-- Logo ali.
Ao olhar o local apontado, Grego avista Herculano, contemplando a ação cívica. Receia que o encontro suscite lembranças que façam o Capitão voltar a sua atenção das questões patrióticas para as conjugais, ainda mais quando acaba de ser brindado com os carinhos de Páscoa. Mais que depressa, vai embora ao som dos reclamos do jovem. 

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