DE OBÁ E DE IANSÃ
Herculano regressa, com Tião, do encontro com
os operários. Depara-se com a empregada em prantos, consolados por Páscoa,
Sofia e Quitéria. Ao saber da prisão da benzedeira, fica indignado e lamenta
não ter o endereço da casa do advogado Anacleto. Páscoa lhe sugere procurar
José Inácio. Mas Herculano se acanha em pedir favor a quem conheceu outro dia.
Parte para a delegacia em companhia de Belizária e do Tião.
O encontro com Delfina e vizinhos diante da
chefatura de polícia emociona a moça e o choro nervoso recomeça. Receoso de que
esse comportamento agrave mais a situação, Herculano ordena Belizária a ficar
com os conhecidos e se apresenta sozinho na delegacia. Prisões tumultuam o
ambiente. Após longa espera, o subdelegado Ananias o atende e relata a causa da
detenção.
-- Artigo 157 por fascinar e subjugar a
crendice popular. Já o elemento subjugado, tornou-se réu por desacato e ofensas
físicas conforme o artigo 134.
-- Entendo. Porém, a senhora é uma pessoa
séria, trabalhadeira, tem oficio estabelecido, e nossa constituição defende a
liberdade de culto.
-- Não superstição e baixo espiritismo.
-- Parece-me que os meios curativos
empregados pela ré devem ser vistos do mesmo modo que a fé de um católico em
água benta.
-- Cumprimos a lei e deixamos a interpretação
para o juiz.
-- Posso conversar alguns instantes com ela?
-- Sem ofensas, doutor capitão, mas não somos
sala de visita.
-- Tenho certeza disso e também de sua
solidariedade para eu poder tranquilizar a senhora e levar notícias para a
família.
-- Vou ver o que posso fazer.
Após outra longa espera, o pleito é atendido
e Herculano se dirige para uma saleta encardida, ocupada apenas por uma mesa e
duas cadeiras.
Divina caminha pelo corredor, atarantada com
a ideia de que a sua visita seja o patrão de Belizária. Procura obter
esclarecimento com o guarda, que a escolta.
-- O senhor não sabe mesmo quem é a pessoa
que irei ver?
-- A ordem foi bota a detenta na saleta que
um Dr. Capitão quer falar com ela.
A expressão detenta avoluma o constrangimento
da benzedeira.
Porta aberta, Herculano se ergue da cadeira.
-- Cinco minutos, sem choro nem vela, avisa o
guarda.
Divina entra e sente como se raios enviados
por Iansã riscassem a atmosfera do espaço. Durante esse relampear, a natureza
máscula se alumia em átimos de visibilidade estonteante, intercalados pelos
estrondos da razão enfurecida, que, das profundezas da mulher, desaprovam a
inapropriada e arrebatadora sensação.
-- Boa noite, D. Divina. Sou Herculano Dias,
o patrão de Belizária.
A voz reverbera dentro do corpo magnetizado e
não menos vexado de se apresentar numa situação humilhante como essa. As mãos
tocam rapidamente o turbante, tentando consertar um possível desalinho e depois
deslizam pela saia.
Herculano puxa uma cadeira, inconsciente dos
efeitos que causa.
-- Não quer se sentar?
Divina nunca gostou de ouvir Belizária falar
que o patrão sofria demais com o mal da esposa, de que não merecia tanta
tristeza nem a pobre coitada; de que só a obra do tinhoso podia explicar porque
um homem tão bom, tão sério, tão garboso – e D. Páscoa? Tão mansa! Mãos de
fada, pele de porcelana e cabelo bom – vivia naquela infelicidade, que dava um
desalento cão só de olhar. Era um desgostar não por sentir maledicência na
moça, mas porque as palavras entravam na sua cabeça, como um eco, que levava a
mente a imaginar o garbo, a seriedade e a bondade do capitão. Ralhava consigo
mesma: deixa de sandice! O homem é
casado, branco, doutor e muito mais novo que você. E agora aqueles
atributos todos estavam ali, diante dela, em cabelos assentados em ondas, voz
quente, porte altaneiro, braços longos para bem enlaçar – e modos de um fidalgo
cavalheiro. Ah, que peça o destino pregou nela! Numa cadeia e nessa altura da
vida!
-- Por favor, sente-se D. Divina.
-- Obrigada.
-- Infelizmente nada pode ser feito hoje, mas
amanhã um advogado tomará as providências para tirá-la daqui e ao senhor da
Silva.
-- Agradeço em nome também do Touro... Quer
dizer, do seu Damião.
Herculano se surpreende.
-- Esse senhor é um estivador, alto, forte?
-- Sabe quem é?
-- Creio que sim. Pouco provável haver dois Touros
e tão parecidos.
O guarda interrompe a conversa.
-- Cinco minutos.
Herculano olha o relógio.
-- Ainda falta um minuto.
-- Melhor eu ir, diz Divina.
-- Logo estará de volta a sua casa.
-- Que Deus lhe pague em dobro.
-- Fique bem.
Divina retorna para o cubículo de janela
estreita, gradeada no alto da parede do fundo. A interferência de Raposo lhe
garantiu essa cela individual, servida por lamparina, enxerga de capim, manta,
moringa d’água e caixote onde se senta e reza: Obá, minha mãe, senhora dos justos feitiços, protetora de todos os
encantos e de todas as paixões. Eu vos chamo e imploro: desate com a tua espada
as tramas, os nós, o embaralhado dessa prisão injusta e, com o poder da tua
magia, dê disfarce a doidice do meu coração. Num renego o destino. Assim
desejou Iansã. Mas rogo, senhora, torne leve o fardo dessa injustiça e doce o
confinamento dessa emoção.
Copyright © 2013
by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema
e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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