sexta-feira, 12 de junho de 2015

Oitenta e Seis

DE OBÁ E DE IANSÃ


Herculano regressa, com Tião, do encontro com os operários. Depara-se com a empregada em prantos, consolados por Páscoa, Sofia e Quitéria. Ao saber da prisão da benzedeira, fica indignado e lamenta não ter o endereço da casa do advogado Anacleto. Páscoa lhe sugere procurar José Inácio. Mas Herculano se acanha em pedir favor a quem conheceu outro dia. Parte para a delegacia em companhia de Belizária e do Tião.
O encontro com Delfina e vizinhos diante da chefatura de polícia emociona a moça e o choro nervoso recomeça. Receoso de que esse comportamento agrave mais a situação, Herculano ordena Belizária a ficar com os conhecidos e se apresenta sozinho na delegacia. Prisões tumultuam o ambiente. Após longa espera, o subdelegado Ananias o atende e relata a causa da detenção.
-- Artigo 157 por fascinar e subjugar a crendice popular. Já o elemento subjugado, tornou-se réu por desacato e ofensas físicas conforme o artigo 134.
-- Entendo. Porém, a senhora é uma pessoa séria, trabalhadeira, tem oficio estabelecido, e nossa constituição defende a liberdade de culto.
-- Não superstição e baixo espiritismo.
-- Parece-me que os meios curativos empregados pela ré devem ser vistos do mesmo modo que a fé de um católico em água benta.
-- Cumprimos a lei e deixamos a interpretação para o juiz.
-- Posso conversar alguns instantes com ela?
-- Sem ofensas, doutor capitão, mas não somos sala de visita.
-- Tenho certeza disso e também de sua solidariedade para eu poder tranquilizar a senhora e levar notícias para a família.
-- Vou ver o que posso fazer.
Após outra longa espera, o pleito é atendido e Herculano se dirige para uma saleta encardida, ocupada apenas por uma mesa e duas cadeiras.
Divina caminha pelo corredor, atarantada com a ideia de que a sua visita seja o patrão de Belizária. Procura obter esclarecimento com o guarda, que a escolta.
-- O senhor não sabe mesmo quem é a pessoa que irei ver?
-- A ordem foi bota a detenta na saleta que um Dr. Capitão quer falar com ela.
A expressão detenta avoluma o constrangimento da benzedeira.
Porta aberta, Herculano se ergue da cadeira.
-- Cinco minutos, sem choro nem vela, avisa o guarda.
Divina entra e sente como se raios enviados por Iansã riscassem a atmosfera do espaço. Durante esse relampear, a natureza máscula se alumia em átimos de visibilidade estonteante, intercalados pelos estrondos da razão enfurecida, que, das profundezas da mulher, desaprovam a inapropriada e arrebatadora sensação.
-- Boa noite, D. Divina. Sou Herculano Dias, o patrão de Belizária.
A voz reverbera dentro do corpo magnetizado e não menos vexado de se apresentar numa situação humilhante como essa. As mãos tocam rapidamente o turbante, tentando consertar um possível desalinho e depois deslizam pela saia.
Herculano puxa uma cadeira, inconsciente dos efeitos que causa.
-- Não quer se sentar?
Divina nunca gostou de ouvir Belizária falar que o patrão sofria demais com o mal da esposa, de que não merecia tanta tristeza nem a pobre coitada; de que só a obra do tinhoso podia explicar porque um homem tão bom, tão sério, tão garboso – e D. Páscoa? Tão mansa! Mãos de fada, pele de porcelana e cabelo bom – vivia naquela infelicidade, que dava um desalento cão só de olhar. Era um desgostar não por sentir maledicência na moça, mas porque as palavras entravam na sua cabeça, como um eco, que levava a mente a imaginar o garbo, a seriedade e a bondade do capitão. Ralhava consigo mesma: deixa de sandice! O homem é casado, branco, doutor e muito mais novo que você. E agora aqueles atributos todos estavam ali, diante dela, em cabelos assentados em ondas, voz quente, porte altaneiro, braços longos para bem enlaçar – e modos de um fidalgo cavalheiro. Ah, que peça o destino pregou nela! Numa cadeia e nessa altura da vida!
-- Por favor, sente-se D. Divina.
-- Obrigada.
-- Infelizmente nada pode ser feito hoje, mas amanhã um advogado tomará as providências para tirá-la daqui e ao senhor da Silva.
-- Agradeço em nome também do Touro... Quer dizer, do seu Damião.
Herculano se surpreende.
-- Esse senhor é um estivador, alto, forte?
-- Sabe quem é?
-- Creio que sim. Pouco provável haver dois Touros e tão parecidos.
O guarda interrompe a conversa.
-- Cinco minutos.
Herculano olha o relógio.
-- Ainda falta um minuto.
-- Melhor eu ir, diz Divina.
-- Logo estará de volta a sua casa.
-- Que Deus lhe pague em dobro.
-- Fique bem.
Divina retorna para o cubículo de janela estreita, gradeada no alto da parede do fundo. A interferência de Raposo lhe garantiu essa cela individual, servida por lamparina, enxerga de capim, manta, moringa d’água e caixote onde se senta e reza: Obá, minha mãe, senhora dos justos feitiços, protetora de todos os encantos e de todas as paixões. Eu vos chamo e imploro: desate com a tua espada as tramas, os nós, o embaralhado dessa prisão injusta e, com o poder da tua magia, dê disfarce a doidice do meu coração. Num renego o destino. Assim desejou Iansã. Mas rogo, senhora, torne leve o fardo dessa injustiça e doce o confinamento dessa emoção.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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