terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Feliz 2015 e Nova Jornada

Rio de Janeiro de 1873, de J. Vogler e Emil Bauch

Prezados Leitores,

Acabo de postar a primeira parte de O Rio e o Mar. O desfecho de Páscoa ocorrerá mais adiante. Agora é a vez da jornada de Catarina – e também da de Valentin – que começarei a postar os capítulos em breve.

Uma novidade: O Rio e o Mar tem página no Facebook. Fotos da época e imagens de telas de pintores do período estão ao seu alcance no link https://www.facebook.com/pages/O-RIO-E-O-MAR/1562119537335944?ref=hl

Será uma satisfação ver vocês lá e saber que a leitura continua a nos aproximar ao longo dos próximos capítulos do romance.

Divirtam-se e um feliz 2015.

Maria Tereza


Capítulo Sessenta e Quatro

ESCUTE-ME


Sofia está deitada na cama, de onde fita os pingentes que contornam a cúpula do abajur. A doçura do olhar está embasada com as lembranças da tentativa da fuga da mãe que ia deixa-la para trás. Justo ela, que a ama e protege tanto. Está também triste consigo mesma. Por ter dito aquilo que nem ousa repetir em pensamentos para si.
Na sala, Páscoa entende que Grego não cumpriu com o combinado e se apega à esperança de que Maria Luísa e José Inácio consigam suavizar as penalidades do crime de adultério. Acredita que a memória do seu abandono irá lhe ajudar a suportar os tempos difíceis que terá pela frente. Sair do outro lado dessa situação é o jogo possível a ser feito com as cartas da sua natureza contra os quais não quer mais lutar. Será dona de si custe o que custar. Quitéria entra aflita.
-- Não há uma viva alma na rua. Nem um gato no muro. E a gente aqui trancada, sem poder sair. Eles já deviam estar de volta.
A última coisa que Páscoa quer pensar é no retorno de Herculano.
-- Vou ver Sofia. Sobe depois para me trancar.
-- Ah, filha!
Páscoa se afasta, sobe a escada, percorre o corredor e entra no quarto da menina.
-- Podemos conversar?
A garota não responde.
-- Não sei quando poderei ver você de novo.
Sem resposta, Páscoa se aproxima e se senta na beira da cama.
-- Então me escute. Ia fugir para pedir proteção para Maria Luísa, só ela pode me ajudar. Quero me separar do seu pai e ir morar com você no arraial, mas ele não quer. Por isso, essa triste confusão. Já causei muita dor por ser do jeito que sou. Também sofri. Quando você nasceu, temi não ser capaz de protegê-la de um destino parecido com o meu. Tudo se misturou. Minhas incapacidades, meus medos, até que o desalento me pegou, numa história que você conhece em parte. Aconteceu, então, o banho de mar. A esperança renasceu e ousei viver o que nunca tive. Hoje sei que possuo forças para recriar a minha vida, a nossa vida, de um modo sem tantos desconfortos entre o que somos e o que nos obrigam a ser. Não tenho como evitar mais essa dor. Preciso me separar do seu pai para ser livre. Para ir e vir, como os homens. Errar e acertar como eles, sem ter que mentir, sem ter que abaixar os olhos e dizer sim, senhor, quando minha vontade é outra. Muita coisa triste ainda pode acontecer. Posso ficar trancada por um longo tempo no quarto ou em outro lugar. Mas confie. Tudo passará. Conseguirei minha liberdade e estaremos juntas de novo.
Páscoa inclina-se. A dor da cabeça escorrega para os olhos durante o movimento. Beija a testa da menina, que a alcança pelo ombro com a mão. 
-- Deita aqui até ele chegar.
Lágrimas rolam pela face da mãe, que se estende ao lado da filha.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Sessenta e Três

NÃO POSSO


Amanhece. Grego esconde uma escada no sopé do morro diante dos fundos do casarão. Em seguida, sobe a encosta de onde avista o portão da propriedade.
Páscoa fecha a maleta com roupas dentro. Uma sacola está ao lado. Abre a gaveta da cômoda e retira as joias ali escondidas. Coloca todas em uma fronha de travesseiro. Dá um nó e guarda o volume na sua bolsa. Depois esconde a bagagem debaixo da cama. Recua com a expressão concentrada e o peito atravessado pela dor inevitável que terá que causar a Sofia para criar um novo tempo.
Transcorre a manhã. Do posto de observação, Grego avista Tião deixar o casarão. Estranha não ter visto Herculano sair se o dia é de comício. Arrisca-se. Desce o morro, retira a escada do esconderijo e a ampara no muro do casarão. Como um ladrão, penetra a propriedade e surpreende Quitéria no quintal com uma arma na mão.
-- Onde está o Capitão?
-- Santo pai! Guarde essa arma e suma daqui.
-- Ele está em casa?
-- Não, mas pelo amor de Deus não faça uma loucura.
-- Leve-me até Páscoa?
-- Deixa ela quieta e vá buscar a amiga advogada. Ensino o caminho.
Grego não a ouve e a força fazer o que ele quer.
Porta aberta, Páscoa corre para os braços de Grego, que se compadece diante das marcas no seu rosto.
-- Apresse-se, vamos dar o fora.
Quitéria se desorienta ao ver Páscoa pegar as bagagens e entregá-las para Grego, que se afasta em direção à porta.
-- Filha, o que vai fazer?
-- Vou pedir guarida para Maria Luísa.
-- Não. Será lá a primeira casa que seu marido irá procurar você. Traga Sofia, Dona Quitéria.
-- Ela não vai.
Grego se surpreende com a declaração de Páscoa. Quitéria a abraça.
 -- O que será de nós?
-- Precisamos ir, insiste Grego.
Páscoa se solta da ama e sai sem olhar para trás. Atravessa o corredor como se caminhasse contra uma rajada de vento. A escada lhe parece um abismo.
Quitéria não se contém. Destranca Sofia, que corre para o quarto vazio da mãe e depois pelo corredor afora, seguida por Belizária. No alto da escada, grita.
-- Mãe.
Páscoa para no último degrau. Vira-se e vê o semblante aterrorizado da filha. Ouve um zumbido forte, como se fosse o som do mar. Sente o chão se erguer como uma vaga. Tudo fica escuro... Grego solta as bagagens e abraça o corpo em vertigem. Por um instante, Páscoa não se mexe, atordoada. Ergue a face marcada por um dolorido desalento. O olhar de Grego a cobre.
-- Coragem. Estou com você.
-- Não posso deixar Sofia.
-- Claro que não. Ela vem com a gente.
-- Não compreende? Eu não posso ir.
Perplexo, Grego a solta.
-- É loucura ficar.
-- Pior fugir. Por favor, busque Maria Luísa.
-- Tem noção do que me pede?
-- Quero o amparo da lei e que você se proteja.
-- Pare de dizer isso e vamos dar o fora daqui.
-- Não posso abandonar o lar.
-- Está correndo risco de vida.
-- Quem irá provar? O amante? 
-- Sim e quem puder. Venha Sofia.
A menina não se mexe estarrecida com a mãe querer fugir, deixando-a para trás.
-- Não torne tudo mais difícil.
-- Você é que está complicando tudo.
Páscoa lhe dá as costas e se apoia no corrimão da escada.
-- Vá enquanto ainda pode me ajudar.
Grego sente-se um otário por ter invadido o casarão a troco de nada, um estúpido por ter querido mudar sua vida para proteger Páscoa.
-- Essa é a última vez que peço para vir comigo.
-- Por favor, não perca um tempo que me é precioso.
-- Se é isso o que quer, eu o farei.
Ao vê-lo caminhar, Quitéria cutuca Belizária.
-- Ande, acompanhe o moço.
A criada obedece de pronto e a ama enlaça Sofia.
-- Vamos deixar sua mãe quieta.
A menina se desvencilha dos braços da ama, mira Páscoa e grita:
-- Odeio você.
Quitéria não sabe quem acode se Sofia, que corre para o quarto, ou Páscoa, que se encolhe lá embaixo.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Sessenta e Dois

DA DESFORRA IMEDIATA


O carrilhão do relógio badala duas vezes. Ainda há muita noite pela frente. Páscoa se vira na cama sem conseguir dormir. Ruídos de gatos chegam de fora. São selvagens, intensos. Levanta-se e abre a janela. Vê a lua crescente e uma estrela azulada abaixo. Formam um par delicado, que reconforta a inóspita reclusão. Avista um vulto surgir à esquina. É Herculano. Tranca a janela e se senta na cama, sobressaltada.

O marido adentra a biblioteca, acende o abajur. As olheiras estão pronunciadas, porém há um brilho de satisfação no olhar. Fita República e pensa na desavergonhada desgraça trancada no quarto – a ira raia nas pupilas. Pega a chave dentro da gaveta da escrivaninha e sai. No segundo andar, insere a chave na fechadura. Destranca a porta, entra e acende a luz. De pé, Páscoa pisca os olhos sob o contato com a claridade. Porta trancada, Herculano guarda a chave no bolso e senta-se na banqueta da penteadeira. Estira as pernas.
-- Tire as minhas botas.
Páscoa entende que a tortura irá começar. Obedece. Ajoelha-se e começa a soltar o cadarço da bota, que retira. Herculano cutuca o corpo com o pé.
-- A meia: tire-a também.
Ordem cumprida, o outro pé se firma sobre o joelho dela. Descalçado, Herculano inclina o tronco para frente e a pega pelo pescoço. Páscoa fecha os olhos.
-- Não tema a morte, até porque seria uma pena leve para você.
Levanta-se. Tira o casaco da farda e o solta sobre ela. Páscoa se ergue, pendura a veste no espaldar da cadeira.
-- Por que tornar tudo mais difícil?
-- Muito bem! Começou a falar, retruca, removendo as abotoaduras dos punhos da camisa e estendendo a mão para que ela as pegue.
-- Quero me mudar para o arraial com Sofia.
-- Vejo que não entende a sua situação, diz puxando a camisa para fora da calça.
-- Deixe-me ir com a melhor lembrança de você.
Herculano a agarra pelo braço e a traz para perto dele.
-- O sobrado será vendido e Sofia partirá em breve. Irá estudar em Paris.
Páscoa sente-se aliviada da filha ser poupada de mais tristezas. Buscará por ela depois, quando esse martírio tiver terminado. Quanto ao sobrado, não autorizará a venda. Mesmo adúltera, sabe que tem pelo menos esse amparo da lei.
-- Podemos resolver tudo de modo civilizado.
-- Civilizado! Antes eu a tivesse internado num hospício.
-- Seja humano mais uma vez.
Enfurecido, empurra a mulher, que bate o corpo na cama e escorrega para o chão, com o juramento de que sobreviverá a essa tortura. Herculano, por sua vez, debate-se consigo mesmo. Sabe que deve se poupar para sua causa e sair do quarto. No entanto, a raiva o aprisiona e o chafurda no lamaçal da dignidade ultrajada. Sente-se um estúpido por não ter percebido os sinais da traição, por ter buscado dias atrás guarida no colo traidor. Intoxicado de orgulho ferido, mira a perfídia à frente, com desejos de desforra imediata da violência contra si num momento em que tanto precisava de paz.
-- Nunca terá a separação.
-- Não há razão para estarmos juntos.
-- O que entende de razão?
-- Pense na sua vida. Há tanto por viver ainda.
-- Viverá o inferno neste quarto.
-- Concentre-se em causas mais nobres – não em me torturar.
Herculano voa em direção a ela e a põe de pé pelos cabelos.
-- Irá me servir até eu me fartar.
-- Não precisa de mim.
-- Isso eu que sei.
Enlaça-a pela cintura e enfia a mão por debaixo da camisola dela.
-- Solte-me.
-- Não é assim que gosta de ser tratada?
-- Pare, por favor, eu imploro.
Páscoa tenta desvencilhar-se, mas Herculano a trava com seus braços, excitando-se com a subjugação que opera. De repente, a solta, mas ordena:
-- Dispa-se.
O desespero toma conta da mulher quando o vê tirar a calça. Olha para os lados, pensando em esmurrar a porta, em gritar socorro pela janela, em jogar a cadeira sobre ele... No entanto, é detida pelo medo da aflição que os ruídos causarão a filha.
-- Não se atreva.
-- Eu mesmo a dispo.
A loucura eclode em Páscoa. Dá alguns passos para trás e arranca a camisola.
-- Vem, meu frágil Herculano.
A denominação, o corpo nu nunca visto e a ideia de que aquele corpo pertenceu a outro homem o descontrolam de vez. Desce a mão sobre o rosto dela, de um lado e de outro e a joga na cama. Vira-a de bruços e a monta, ajoelhado com as pernas entre os quadris dela. O desvario brilha no seu rosto. Abre a braguilha da ceroula, pega o pênis, cospe na outra mão, esfrega o cuspe no membro e o fricciona, fitando as costas da mulher. Recua para trás, passa a mão por debaixo da barriga dela e a faz ficar de quatro. A visão das nádegas brancas e carnudas amplia a excitação. Enterra o pênis no ânus e grunhe a desforra do seu poder, enquanto Páscoa abocanha o lençol, abafando o grito de dor, de ódio.
Os cabelos da mulher são uma rédea na mão furiosa. O som da batida do corpo no outro, a estreiteza do canal, o pênis mungido pelo vai-e-vem da movimentação, a esposa subjugada, tudo provoca no homem uma orgástica sensação, na qual se entranha cada vez mais. As estocadas tornam-se mais rápidas e o orgasmo, encarniçado no ódio, cada vez mais próximo. Então acontece. Herculano goza e gane a derrota vivida no lar. Exaurido, não consegue manter-se mais de joelhos, tomba sobre o corpo, que se desmonta também sobre o leito. Inertes ficam. O falo em decadência escapole para fora. Drenado pelo orgasmo e pela própria violência, Herculano se levanta e trôpego deixa o quarto, com a esposa ainda imobilizada pela brutalidade exposta pela crise conjugal. Lá fora, gatos rusgam-se.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Sessenta e Um

NÃO SE SERVE A DOIS SENHORES


Um silêncio sepulcral paira no casarão. Páscoa faz vigília à janela do quarto, temerosa com seu destino. Sofia volta da escola. Por debaixo da porta, deixa um desenho para a mãe, que reconhece as duas em uma praia. As lágrimas correm no rosto de ambas. Quitéria entra com a janta e a prisioneira suplica.
-- Por tudo que lhe é mais sagrado, avise Maria Luísa.
-- Não posso, filha, não posso. Sinto cheiro de sangue no ar.
-- Isso é o que acontecerá se não agir, diz e corre para a porta. Depara-se com Tião e implora: -- Pelo bem que me tem, me ajude.
-- Deixa tudo acalmar, sinhá. Venha Quitéria.
A porta se fecha. Desalentada, Páscoa encolhe-se na cama. Vislumbra a ideia de se entregar para a polícia. Prefere a prisão ao jugo de Herculano.
Amanhece e a rotina da prisioneira se arrasta com sua vigília à janela. Lembranças da felicidade vivida se sucedem sem brilho e cor. A ama se aflige com o olhar parado, com a comida quase intacta no prato, com o deslocamento mudo para o banho, com o infortúnio que se prolonga. Reza por um milagre que as livre de um mal maior.
A noite chega e avança, o escuro se esvai. Um galo canta ao longe, um cachorro cruza a rua, gatos miam, enquanto o casarão dorme um sono sobressaltado. Lá fora, Grego se esgueira pela calçada, depois ao longo do gradil lateral do imóvel, quando então ladeia o muro dos fundos da propriedade que faz divisa com as fraldas do morro. Por esse caminho, desaparece lá no final.
O casarão acorda, as saídas matinais se repetem e as horas passam em angústia. De tarde, Tião sai para buscar Sofia na escola. O coche de Maria Luísa para. Páscoa se desorienta à janela. A amiga desce do carro, seguida de Grego. A presença dos dois avoluma o suplício de Páscoa, que faz sinal para que esperem e se afasta. Maria Luísa força abrir o portão. Chama em vão por Quitéria. A ausência de resposta confirma aos dois que o casarão vive condições anormais. Grego avista novamente Páscoa, que lhe mostra uma maleta. Compreende o sinal e balança afirmativamente a cabeça. Maria Luísa grita o nome de Quitéria. Grego puxa-a pelo braço e o casal parte.
-- Nunca mais ouse tocar o meu braço.
-- Achei melhor não chamar atenção.
-- Nem se atreva a tentar fugir com Páscoa.
-- Pode estar sendo maltratada.
-- Deveria ter se preocupado quando podia evitar esse sofrimento.
-- Não nos reunimos para brigar, doutora.
-- Pois então faça o que digo. Meu irmão chega amanhã de viagem e tentaremos intermediar a situação e resolver tudo dentro da lei.
-- Quando falarão com o Capitão?
-- Na segunda-feira talvez.
-- É muito tempo.
-- Não lê jornal, não vê o que se passa na cidade?
Grego está farto das ofensas de Maria Luiza.
-- Agradeço se puder tornar a nossa convivência pelo menos respeitosa.
-- Então ponha a cabeça para funcionar. O Capitão está às voltas com a Liga contra a vacinação. Com certeza, deixará qualquer outro assunto para resolver depois do comício de sábado. 
-- Procuro pela senhora no domingo. Fico aqui.
-- Como quiser.
Pela janela, Grego pede para o cocheiro parar. Atendido, despede-se e desce. Maria Luísa não sabe o que a amiga viu nele: mais parece um galo garnisé assustado.
A vigília de Páscoa começa bem cedo no dia seguinte. Mais que o retorno do amante, espera o da amiga, de quem quer guarida, enquanto a justiça decide o seu destino. Pede de novo ajuda para os agregados, quando Quitéria e Tião aparecem.
-- Por favor, eu preciso de proteção.
-- Filha!
Páscoa fita o empregado.
-- Ou cumpro ordens ou deixo o casarão, sinhá.
-- Não percebem? Corro perigo de vida. 
Tião abaixa a cabeça. O vivido desarranja seus princípios de sobrevivência. Contudo, tem que contrato não se quebra e sim se rompe – perspectiva que o assusta. Fecha a porta após a saída de Quitéria e ainda ouve a voz do outro lado.
-- Não me deixem.
O casal caminha pelo corredor. 
-- Melhor a gente falar com a doutora. 
-- Ajuda pra um, traição com outro.
-- Ela tá sofrendo que nem escravo no tronco!
-- A ordem foi dada e respondemos sim, senhor.
-- Tião, não bota tudo tão justo assim.
-- Não dá para servir a dois senhores. A casa cairá para nós também.
-- Uma prosa apenas.
-- Só se quiser ir embora depois.
-- Nem morta, deixo elas.
-- Tá tudo ficando muito difícil aqui.
-- Que seja, mas irei abrir o portão, se a doutora aparecer.
-- E fechar o nosso tempo na família. Pense nisso também. Vou buscar Sofia.
Sozinha, Quitéria decide dar folga para Belizária. Poupar seu olhar enxerido de presenciar a insubordinação cogitada. Caminha para o quintal, onde a moça recolhe roupas no varal.
-- Tire o dia de amanhã pra ficar em casa e descansar.
-- Até que eu gostaria, mas não posso.
-- Ora menina se eu tô dizendo que pode é porque pode.
-- Só que o Capitão quer eu venha amanhã e domingo, pra ficar com Sofia.
Quitéria teme o quê Belizária possa ter conversado com Herculano.
-- Tá de fuxico com o patrão?
-- Virgem, Dona Quitéria! Não sou tonta, não. Só gosto de saber das coisas, pra sonhar ou bendizer a vida que tenho. Ademais, gratidão não se paga com desgraça.
-- Bom que pense assim. E o que mais o Capitão falou?
-- Só isso. Deu a ordem e eu disse sim, senhor.
-- Espero que pare por aí.
-- De mim pode esperar. Mas de outros... Num fie, não. Coração não tem dono, mas o traído quer sangue, Dona Quitéria, sangue. Eu sei das coisas. Ah, como sei! 
A ama olha para o céu e implora proteção. 


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Sessenta

ÓDIO E REVOLTA


A noite avança. Paralisados com a própria revolta, Herculano está recluso, na biblioteca, e Páscoa, no aposento do casal. Sofia se vira na cama, ainda aturdida com a surpresa de retornar da escola e encontrar a mãe em desgraça. No seu quarto, a ama reza enquanto defuma o retrato, que pousou com as duas na cidade, apoiado na imagem de uma santa sobre a mesa. Tião, por sua vez, ronda pelo lado de fora da biblioteca, temeroso de que uma tragédia aconteça. A cavalo, com uma sacola às costas, Grego passa pela rua, preocupado com o que se desenrola no casarão.

Bem cedo pela manhã, Quitéria e Belizária olham inquietas para o chão da biblioteca. Herculano está diante delas. Sente-se traído pela tropa da sua própria casa. Ninguém sabe de nada. Ninguém viu nada. Ninguém fala uma palavra sequer. Essa resistência silenciosa o estorva. Contudo, não tem como montar uma nova retaguarda, nem pode dividir energia com a inesperada batalha que eclodiu em seu lar. O momento exige ação concentrada para o que se preparou ao longo dos últimos anos e em vias de acontecer nas ruas da cidade. Montará a emboscada, deixará o inimigo confiante e o pegará na hora certa. Cada um terá a sua punição.
-- Arrumem minhas coisas em outro quarto. Em casa, Sofia deve permanecer em seu aposento quando regressar da escola. A alimentação será levada até ela e o banho acompanhado por uma de vocês. Nenhum contato com a mãe. A mesma ordem se aplica ao outro quarto, que deverá ser servido e atendido no estrito do necessário, sem delongas nem prosa. Ninguém recebe visitas ou atende ao portão. Quando se recolher, Quitéria, deixe a chave nesta gaveta. Cumpram bem suas obrigações. Responderão por qualquer deslize. Podem ir.
Aliviada, Quitéria puxa Belizária pela mão. Quer retirá-la dali o mais depressa possível. Teme que dívidas de gratidão abram sua boca emudecida até o momento.
Tão logo a porta se fecha, Herculano mira República: nada me derrotará, pensa e sai. No vestíbulo olha para o alto da escada. Um músculo se contrai no seu rosto. Os dedos das mãos se fecham como garras.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Cinquenta e Nove

DESTRUIÇÕES


Ao ultrapassar o portão do casarão, Páscoa vê Tião e Belizária que se esquivam em direção do fundo do jardim. Estranha a reação. Hesita em entrar. Tarde para recuar. Herculano aparece à porta principal, com a fisionomia tesa. O coração dela dispara e lhe ocorre que ele está bravo por não tê-la encontrado em casa.
O marido se aproxima, toma seu braço e a impulsiona a andar. Penetram o vestíbulo e passam ao lado de Quitéria desolada. Na sala de estar, Páscoa vê seu cesto de bordado aberto com os objetos jogados sobre o sofá. Suspeita das razões e de quem vasculhou a cesta: mas como pôde ter sabido de Grego? À biblioteca, é forçada a se sentar na cadeira em frente da escrivaninha, enquanto a descoberta da saída clandestina, as dúvidas de uma traição atiçam os demônios de Herculano. Quer uma confissão.
-- Onde estava?
Páscoa teme falar e mentir. Mantém-se em silêncio.
-- Pelo amor que tem a sua vida, diga onde estava?
Sem obter resposta, contorna a escrivaninha. Da gaveta, retira um revólver.
Páscoa tem certeza que alguém a denunciou ao marido e tenta se convencer de que a arma é apenas para amedrontá-la. Fecha as mãos nos braços da cadeira e com o olhar acompanha o deslocamento de Herculano em sua direção. Pelo cabelo, sua cabeça é puxada para trás e sua face se mantém sob o foco da expressão vidrada de ódio.
-- Quer levar para o inferno sua perdição?
Seus olhos aterrorizados esguelham-se ao máximo, atentos ao braço que se ergue, com a arma em punho. As pálpebras se fecham quando o metal frio e duro pressiona a têmpora. É o fim, pensa.
-- Ainda há tempo. Diga, onde estava?
O ódio embranquece o rosto de Herculano. As maçãs da face tremulam e o dedo aperta o gatilho. Um estalo seco soa. Páscoa percebe que nada aconteceu. Abre os olhos e vê a sordidez sobre si. Sente a ânsia subir à garganta, o sufoco, agita-se, Herculano a solta e ela vomita.
-- Confesse e terá uma pena mais leve, diz e a empurra para fora da biblioteca.
De novo, cruzam com Quitéria, que se desespera de vez com a feição alucinada de um e a palidez desgrenhada do outro. Segue os dois até a cozinha, onde param diante do fogão, sob o olhar aflito de Tião e Belizária. Um tacho de cobre está sobre o degrau do fogão, ao lado dos livros, da concha e do lençol. Quitéria suplica.
-- Tenha piedade, Capitão.
-- Tião leve sua mulher daqui e feche a porta.
Os empregados saem e se amontoam ao lado da janela.
Páscoa continua parada, cabeça abaixada, coração acelerado. Ouve a violência que destroça o romance Bovary e lança as páginas dentro do tacho de cobre. Não vê também o destino idêntico que se abate sobre Casa de Bonecas, até que as mãos furiosas erguem o seu rosto. Com um sorriso perverso, ele joga a enseada bordada dentro do tacho, verte um líquido sobre os pertences e ateia o fogo. -- Não, ela exclama ao som da combustão.
Herculano pega um martelo e anda ao redor da mulher, que olha para a concha solitária no avermelhado degrau do fogão.
-- Tenho todo o tempo do mundo. Você falará.
Tudo então se repete. O afastamento, a aproximação... Neste instante, o furor se acende em Páscoa, que avança sobre o marido. Com um safanão, é arremessada para uma cadeira, que se vira, e, sobre o móvel, cai no chão. Faz-se o som do martelo sobre a concha. Partes voam. Páscoa se recusa a ver essa destruição.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Capítulo Cinquenta e Oito

NO JARDIM BOTÂNICO


O feriado de Finados termina e um bilhete de Grego chega ao casarão. Após momentos de indecisão, Páscoa responde: terça-feira, 8h, Jardim Botânico. Portão principal.  Comparece ao encontro.
Quietos, o casal caminha por uma aleia de palmeiras imperiais. O ar é leve e fresco. Páscoa contempla a amplitude verde desconhecida e mira um arvoredo distante. Grego sugere que sigam para lá. Alcançam mangueiras de troncos fartos e trilham por entre outros de copas frondosas que cortinam o céu. Galhos esparramados entrelaçam-se nos vizinhos, como mãos que procuram não se separar. A luminosidade suave e o cheiro de terra confortam, acalentam os sentidos. Sentam-se num banco. Que preguiça de falar! Pelos dois, ficariam em silêncio, ouvindo o frêmito das plantas e a cantiga da água. Mas o tempo urge.
-- Preciso lhe falar e são temas desagradáveis.
-- Mas antes me escuta. Fui rude com você. Perdão.
-- É. Foi.
-- Oh, Vida!
-- Acontece.
-- Diga tudo, sem receios.
-- Tenho adiado meu pedido de separação. Esperado o melhor momento para falar com o meu marido, mas vejo que essa ocasião nunca chega e não posso mais adiar o que precisa ser feito. Quero que se proteja. Seria bom se pudesse viajar.
As palavras são como um soco no estômago de Grego. É vergonhoso se imaginar em carreira enquanto ela fica entregue à própria sorte. Deve pegar o timão dos acontecimentos e defender essa criatura que tanto prazer lhe deu.
-- Pode esperar um pouco mais?
-- Por quê?
-- Preciso de tempo para organizar a partida. Pegamos Sofia e sumimos daqui.
Páscoa o contempla com dúvidas no olhar.
-- Para onde iremos?
-- Atenas. Lá poderei cuidar melhor de vocês.
A mulher ainda imagina o mar, o navio, os três a caminho de outro destino... Mas o coração aperta. Não é assim que quer essa possibilidade para si.
-- Como acha que a sua família irá receber uma fugitiva com a filha?
-- Não precisamos dar detalhes.
-- A informação não atravessa o mar?
-- Até lá vocês já farão parte da família.
-- Crê que será feliz?
-- É o que precisa ser feito.
-- Será o melhor caminho?
O outro é cada um seguir sozinho. Como dizer isso? -- Não vejo outra saída.
-- Eu sim. Preciso enfrentar meu marido e sair do outro lado do que possa vir a me acontecer. Quero a minha liberdade, ao preço que for.
A resposta causa preocupação.
-- Não terá a separação.
-- Tenho que tentar. Não quero ser uma fugitiva.
-- Pense que viverá uma vida nova.
-- Mas sem poder retornar para cá nem desfrutar do que é meu por direito.
Grego só apreende o sentido que pretere a sua ajuda, não o da liberdade ansiada.
-- Falando assim não me dá outra saída senão cruzar os braços.
-- Sinto por esse transtorno.
-- Por favor, Páscoa, não sou eu que mereço preocupação.
-- Espero que me entenda, mas não poderemos nos ver até tudo se resolver.
-- O que Maria Luísa acha?
-- Irá me ajudar e prometeu que o irmão também.
-- Se seu marido a ameaçar, fuja para a casa da Glória e deixe seus amigos resolverem a questão. Hoje mesmo me mudo para lá.
Apreensões geram o silêncio e Grego rompe a sua imobilidade. Puxa Páscoa pela mão e a abraça atrás de uma árvore. Beijos sôfregos se sucedem.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Cinquenta e Sete

DO IMPENSÁVEL


O relógio badala a décima primeira hora da noite. Páscoa borda o lençol já cheio de diferentes correntezas de azul. A mão por debaixo do pano faz com que ele caia em repuxos sobre o colo de onde se estende sobre o sofá. Mesclas de linhas circundam o braço do móvel, que ainda ampara uma tesoura e um coração de pano trespassado por agulhas. Silencioso e abatido, Herculano aparece. Para à porta da sala. Páscoa percebe sua presença e ergue o rosto.
--Tudo bem?
-- Por que acordada?
-- Aguardava você.
Herculano abre um sorriso terno. Em outra reação inusitada, deixa a pasta sobre a poltrona e desabotoa a farda ali mesmo enquanto observa o bordado. Páscoa se arrepende de ter se exposto com o seu mar.
-- Estou tentando bordar a enseada.
O marido balança um sim com a cabeça, despe-se do casaco da farda e a solta sobre a poltrona. Caminha para o sofá. Surpresa, prontamente a esposa abre espaço: puxa o lençol para mais perto de si e o vê se sentar ao lado, reclinar-se no encosto, estirar as pernas e afrouxar o colarinho.
-- A vacina foi aprovada.
Desapontamento. Páscoa esperava que Herculano e os companheiros vencessem essa contenda. Nem tanto pelo triunfo da livre-escolha dos homens, e sim porque possuía esperanças de que a vitória abrandasse os ânimos dele e criasse condições mais favoráveis para pedir a separação.
-- Sinto muito.
-- É só uma batalha perdida, não a guerra.
Páscoa compreende a nulidade de esperar por um momento adequado para o que tem a fazer. Com Herculano, uma luta se sucede a outra, sem tréguas. Observa a aparência fatigada do marido e pensa no longo histórico de dedicação à República. Tamanho empenho lhe parece um sorvedouro de forças inúteis até para ele.
-- O que vem pela frente?
-- Tudo pode acontecer.
-- Tudo o quê?
-- Não se preocupe com isso.
O impensável acontece de modo ainda mais radical do que o inusitado da ternura no rosto, da farda tirada ali mesmo, da pasta deixada na poltrona e dos modos relaxados no sofá. Herculano se inclina em direção ao colo de Páscoa e invade sem cerimônia a correnteza das emoções bordadas. Deita a cabeça sobre o lençol, com as pernas sobre o assento. Jamais se permitiu tal descontração nem se apossou de tanto. Páscoa é incapaz de proteger o bordado dessa invasão. Mira a longitude abandonada que lhe suscita o atrasado dessa entrega que sempre quis acolher. Inunda-se de compaixão. Espeta a agulha no coração trespassado, pousa uma mão sobre o braço do marido e, com a outra, afaga os cabelos dele com a tristeza de saber que não há mais como resgatar a jornada em comum. Herculano fecha e abre os olhos, reconfortado em sentir que tem um lar.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


Capítulo Cinquenta e Seis

O QUE FAZER?


Nova semana começa. Correntezas esparsas de azul já atravessam o lençol bordado por Páscoa. Um recado de Grego lhe chega pelas mãos de Azulão: Preciso lhe falar; quando pode ser? O coração constrito bate descompassado: tristeza e alegria ecoam pedidos opostos – e a negação do desejo triunfa. O bilhete sem resposta é jogado às chamas do fogão. 
Pasmo à porta da casa do Leme. Azulão aparece de mãos vazias diante de Grego e também não lhe diz o que quer ouvir. O menino vai para a marcenaria, onde pega um violino e se põe a praticar. Inconformado, Grego volta ao trabalho. Com um formão entalha delicadamente o dorso de um violino. Fios de madeira se desprendem da peça trabalhada, como os pensamentos, que se enrolam na mente. Sente-se mal com a sua reação na casa da Glória. A criatura não merecia. Mas o que eu podia fazer? Melhor deixar tudo como está. Que enrascada me meti!
Sem a atenção que gostaria de ter, Azulão desafina.
-- Opa!
-- Acho melhor seguir com a minha flauta, que já sei tocar.
-- Deixa disso. Tô atento. Repete o movimento.
-- Tá nada. Volto aqui pra semana.
-- Mas antes de ir para lá.
Azulão sai. Grego ainda tenta trabalhar um pouco mais, mas desiste. Deixa a ferramenta sobre a mesa, passa a mão nos cabelos: Vida, o que faço com você?

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