terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Sessenta e Quatro

ESCUTE-ME


Sofia está deitada na cama, de onde fita os pingentes que contornam a cúpula do abajur. A doçura do olhar está embasada com as lembranças da tentativa da fuga da mãe que ia deixa-la para trás. Justo ela, que a ama e protege tanto. Está também triste consigo mesma. Por ter dito aquilo que nem ousa repetir em pensamentos para si.
Na sala, Páscoa entende que Grego não cumpriu com o combinado e se apega à esperança de que Maria Luísa e José Inácio consigam suavizar as penalidades do crime de adultério. Acredita que a memória do seu abandono irá lhe ajudar a suportar os tempos difíceis que terá pela frente. Sair do outro lado dessa situação é o jogo possível a ser feito com as cartas da sua natureza contra os quais não quer mais lutar. Será dona de si custe o que custar. Quitéria entra aflita.
-- Não há uma viva alma na rua. Nem um gato no muro. E a gente aqui trancada, sem poder sair. Eles já deviam estar de volta.
A última coisa que Páscoa quer pensar é no retorno de Herculano.
-- Vou ver Sofia. Sobe depois para me trancar.
-- Ah, filha!
Páscoa se afasta, sobe a escada, percorre o corredor e entra no quarto da menina.
-- Podemos conversar?
A garota não responde.
-- Não sei quando poderei ver você de novo.
Sem resposta, Páscoa se aproxima e se senta na beira da cama.
-- Então me escute. Ia fugir para pedir proteção para Maria Luísa, só ela pode me ajudar. Quero me separar do seu pai e ir morar com você no arraial, mas ele não quer. Por isso, essa triste confusão. Já causei muita dor por ser do jeito que sou. Também sofri. Quando você nasceu, temi não ser capaz de protegê-la de um destino parecido com o meu. Tudo se misturou. Minhas incapacidades, meus medos, até que o desalento me pegou, numa história que você conhece em parte. Aconteceu, então, o banho de mar. A esperança renasceu e ousei viver o que nunca tive. Hoje sei que possuo forças para recriar a minha vida, a nossa vida, de um modo sem tantos desconfortos entre o que somos e o que nos obrigam a ser. Não tenho como evitar mais essa dor. Preciso me separar do seu pai para ser livre. Para ir e vir, como os homens. Errar e acertar como eles, sem ter que mentir, sem ter que abaixar os olhos e dizer sim, senhor, quando minha vontade é outra. Muita coisa triste ainda pode acontecer. Posso ficar trancada por um longo tempo no quarto ou em outro lugar. Mas confie. Tudo passará. Conseguirei minha liberdade e estaremos juntas de novo.
Páscoa inclina-se. A dor da cabeça escorrega para os olhos durante o movimento. Beija a testa da menina, que a alcança pelo ombro com a mão. 
-- Deita aqui até ele chegar.
Lágrimas rolam pela face da mãe, que se estende ao lado da filha.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário