terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Capítulo Sessenta e Dois

DA DESFORRA IMEDIATA


O carrilhão do relógio badala duas vezes. Ainda há muita noite pela frente. Páscoa se vira na cama sem conseguir dormir. Ruídos de gatos chegam de fora. São selvagens, intensos. Levanta-se e abre a janela. Vê a lua crescente e uma estrela azulada abaixo. Formam um par delicado, que reconforta a inóspita reclusão. Avista um vulto surgir à esquina. É Herculano. Tranca a janela e se senta na cama, sobressaltada.

O marido adentra a biblioteca, acende o abajur. As olheiras estão pronunciadas, porém há um brilho de satisfação no olhar. Fita República e pensa na desavergonhada desgraça trancada no quarto – a ira raia nas pupilas. Pega a chave dentro da gaveta da escrivaninha e sai. No segundo andar, insere a chave na fechadura. Destranca a porta, entra e acende a luz. De pé, Páscoa pisca os olhos sob o contato com a claridade. Porta trancada, Herculano guarda a chave no bolso e senta-se na banqueta da penteadeira. Estira as pernas.
-- Tire as minhas botas.
Páscoa entende que a tortura irá começar. Obedece. Ajoelha-se e começa a soltar o cadarço da bota, que retira. Herculano cutuca o corpo com o pé.
-- A meia: tire-a também.
Ordem cumprida, o outro pé se firma sobre o joelho dela. Descalçado, Herculano inclina o tronco para frente e a pega pelo pescoço. Páscoa fecha os olhos.
-- Não tema a morte, até porque seria uma pena leve para você.
Levanta-se. Tira o casaco da farda e o solta sobre ela. Páscoa se ergue, pendura a veste no espaldar da cadeira.
-- Por que tornar tudo mais difícil?
-- Muito bem! Começou a falar, retruca, removendo as abotoaduras dos punhos da camisa e estendendo a mão para que ela as pegue.
-- Quero me mudar para o arraial com Sofia.
-- Vejo que não entende a sua situação, diz puxando a camisa para fora da calça.
-- Deixe-me ir com a melhor lembrança de você.
Herculano a agarra pelo braço e a traz para perto dele.
-- O sobrado será vendido e Sofia partirá em breve. Irá estudar em Paris.
Páscoa sente-se aliviada da filha ser poupada de mais tristezas. Buscará por ela depois, quando esse martírio tiver terminado. Quanto ao sobrado, não autorizará a venda. Mesmo adúltera, sabe que tem pelo menos esse amparo da lei.
-- Podemos resolver tudo de modo civilizado.
-- Civilizado! Antes eu a tivesse internado num hospício.
-- Seja humano mais uma vez.
Enfurecido, empurra a mulher, que bate o corpo na cama e escorrega para o chão, com o juramento de que sobreviverá a essa tortura. Herculano, por sua vez, debate-se consigo mesmo. Sabe que deve se poupar para sua causa e sair do quarto. No entanto, a raiva o aprisiona e o chafurda no lamaçal da dignidade ultrajada. Sente-se um estúpido por não ter percebido os sinais da traição, por ter buscado dias atrás guarida no colo traidor. Intoxicado de orgulho ferido, mira a perfídia à frente, com desejos de desforra imediata da violência contra si num momento em que tanto precisava de paz.
-- Nunca terá a separação.
-- Não há razão para estarmos juntos.
-- O que entende de razão?
-- Pense na sua vida. Há tanto por viver ainda.
-- Viverá o inferno neste quarto.
-- Concentre-se em causas mais nobres – não em me torturar.
Herculano voa em direção a ela e a põe de pé pelos cabelos.
-- Irá me servir até eu me fartar.
-- Não precisa de mim.
-- Isso eu que sei.
Enlaça-a pela cintura e enfia a mão por debaixo da camisola dela.
-- Solte-me.
-- Não é assim que gosta de ser tratada?
-- Pare, por favor, eu imploro.
Páscoa tenta desvencilhar-se, mas Herculano a trava com seus braços, excitando-se com a subjugação que opera. De repente, a solta, mas ordena:
-- Dispa-se.
O desespero toma conta da mulher quando o vê tirar a calça. Olha para os lados, pensando em esmurrar a porta, em gritar socorro pela janela, em jogar a cadeira sobre ele... No entanto, é detida pelo medo da aflição que os ruídos causarão a filha.
-- Não se atreva.
-- Eu mesmo a dispo.
A loucura eclode em Páscoa. Dá alguns passos para trás e arranca a camisola.
-- Vem, meu frágil Herculano.
A denominação, o corpo nu nunca visto e a ideia de que aquele corpo pertenceu a outro homem o descontrolam de vez. Desce a mão sobre o rosto dela, de um lado e de outro e a joga na cama. Vira-a de bruços e a monta, ajoelhado com as pernas entre os quadris dela. O desvario brilha no seu rosto. Abre a braguilha da ceroula, pega o pênis, cospe na outra mão, esfrega o cuspe no membro e o fricciona, fitando as costas da mulher. Recua para trás, passa a mão por debaixo da barriga dela e a faz ficar de quatro. A visão das nádegas brancas e carnudas amplia a excitação. Enterra o pênis no ânus e grunhe a desforra do seu poder, enquanto Páscoa abocanha o lençol, abafando o grito de dor, de ódio.
Os cabelos da mulher são uma rédea na mão furiosa. O som da batida do corpo no outro, a estreiteza do canal, o pênis mungido pelo vai-e-vem da movimentação, a esposa subjugada, tudo provoca no homem uma orgástica sensação, na qual se entranha cada vez mais. As estocadas tornam-se mais rápidas e o orgasmo, encarniçado no ódio, cada vez mais próximo. Então acontece. Herculano goza e gane a derrota vivida no lar. Exaurido, não consegue manter-se mais de joelhos, tomba sobre o corpo, que se desmonta também sobre o leito. Inertes ficam. O falo em decadência escapole para fora. Drenado pelo orgasmo e pela própria violência, Herculano se levanta e trôpego deixa o quarto, com a esposa ainda imobilizada pela brutalidade exposta pela crise conjugal. Lá fora, gatos rusgam-se.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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