DA DESFORRA IMEDIATA
O
carrilhão do relógio badala duas vezes. Ainda há muita noite pela frente.
Páscoa se vira na cama sem conseguir dormir. Ruídos de gatos chegam de fora.
São selvagens, intensos. Levanta-se e abre a janela. Vê a lua crescente e uma
estrela azulada abaixo. Formam um par delicado, que reconforta a inóspita
reclusão. Avista um vulto surgir à esquina. É Herculano. Tranca a janela e se senta na cama, sobressaltada.
O
marido adentra a biblioteca, acende o abajur. As olheiras estão pronunciadas,
porém há um brilho de satisfação no olhar. Fita República e pensa na
desavergonhada desgraça trancada no quarto – a ira raia nas pupilas. Pega a
chave dentro da gaveta da escrivaninha e sai. No segundo andar, insere a chave
na fechadura. Destranca a porta, entra e acende a luz. De pé, Páscoa pisca os
olhos sob o contato com a claridade. Porta trancada, Herculano guarda a chave
no bolso e senta-se na banqueta da penteadeira. Estira as pernas.
--
Tire as minhas botas.
Páscoa
entende que a tortura irá começar. Obedece. Ajoelha-se e começa a soltar o
cadarço da bota, que retira. Herculano cutuca o corpo com o pé.
--
A meia: tire-a também.
Ordem
cumprida, o outro pé se firma sobre o joelho dela. Descalçado, Herculano
inclina o tronco para frente e a pega pelo pescoço. Páscoa fecha os olhos.
--
Não tema a morte, até porque seria uma pena leve para você.
Levanta-se.
Tira o casaco da farda e o solta sobre ela. Páscoa se ergue, pendura a veste no
espaldar da cadeira.
--
Por que tornar tudo mais difícil?
--
Muito bem! Começou a falar, retruca, removendo as abotoaduras dos punhos da
camisa e estendendo a mão para que ela as pegue.
--
Quero me mudar para o arraial com Sofia.
--
Vejo que não entende a sua situação, diz puxando a camisa para fora da calça.
--
Deixe-me ir com a melhor lembrança de você.
Herculano
a agarra pelo braço e a traz para perto dele.
--
O sobrado será vendido e Sofia partirá em breve. Irá estudar em Paris.
Páscoa
sente-se aliviada da filha ser poupada de mais tristezas. Buscará por ela
depois, quando esse martírio tiver terminado. Quanto ao sobrado, não autorizará
a venda. Mesmo adúltera, sabe que tem pelo menos esse amparo da lei.
--
Podemos resolver tudo de modo civilizado.
--
Civilizado! Antes eu a tivesse internado num hospício.
--
Seja humano mais uma vez.
Enfurecido,
empurra a mulher, que bate o corpo na cama e escorrega para o chão, com o
juramento de que sobreviverá a essa tortura. Herculano, por sua vez, debate-se
consigo mesmo. Sabe que deve se poupar para sua causa e sair do quarto. No
entanto, a raiva o aprisiona e o chafurda no lamaçal da dignidade ultrajada.
Sente-se um estúpido por não ter percebido os sinais da traição, por ter
buscado dias atrás guarida no colo traidor. Intoxicado de orgulho ferido, mira
a perfídia à frente, com desejos de desforra imediata da violência contra si
num momento em que tanto precisava de paz.
--
Nunca terá a separação.
--
Não há razão para estarmos juntos.
--
O que entende de razão?
--
Pense na sua vida. Há tanto por viver ainda.
--
Viverá o inferno neste quarto.
--
Concentre-se em causas mais nobres – não em me torturar.
Herculano
voa em direção a ela e a põe de pé pelos cabelos.
--
Irá me servir até eu me fartar.
--
Não precisa de mim.
--
Isso eu que sei.
Enlaça-a
pela cintura e enfia a mão por debaixo da camisola dela.
--
Solte-me.
--
Não é assim que gosta de ser tratada?
--
Pare, por favor, eu imploro.
Páscoa
tenta desvencilhar-se, mas Herculano a trava com seus braços, excitando-se com
a subjugação que opera. De repente, a solta, mas ordena:
--
Dispa-se.
O
desespero toma conta da mulher quando o vê tirar a calça. Olha para os lados,
pensando em esmurrar a porta, em gritar socorro pela janela, em jogar a cadeira
sobre ele... No entanto, é detida pelo medo da aflição que os ruídos causarão a
filha.
--
Não se atreva.
--
Eu mesmo a dispo.
A
loucura eclode em Páscoa. Dá alguns passos para trás e arranca a camisola.
-- Vem, meu frágil Herculano.
A
denominação, o corpo nu nunca visto e a ideia de que aquele corpo pertenceu a
outro homem o descontrolam de vez. Desce a mão sobre o rosto dela, de um lado e
de outro e a joga na cama. Vira-a de bruços e a monta, ajoelhado com as pernas
entre os quadris dela. O desvario brilha no seu rosto. Abre a braguilha da
ceroula, pega o pênis, cospe na outra mão, esfrega o cuspe no membro e o
fricciona, fitando as costas da mulher. Recua para trás, passa a mão por
debaixo da barriga dela e a faz ficar de quatro. A visão das nádegas brancas e
carnudas amplia a excitação. Enterra o pênis no ânus e grunhe a desforra do seu
poder, enquanto Páscoa abocanha o lençol, abafando o grito de dor, de ódio.
Os
cabelos da mulher são uma rédea na mão furiosa. O som da batida do corpo no
outro, a estreiteza do canal, o pênis mungido pelo vai-e-vem da movimentação, a
esposa subjugada, tudo provoca no homem uma orgástica sensação, na qual se
entranha cada vez mais. As estocadas tornam-se mais rápidas e o orgasmo, encarniçado
no ódio, cada vez mais próximo. Então acontece. Herculano goza e gane a
derrota vivida no lar. Exaurido, não consegue manter-se mais de joelhos, tomba
sobre o corpo, que se desmonta também sobre o leito. Inertes ficam. O falo em
decadência escapole para fora. Drenado pelo orgasmo e pela própria violência,
Herculano se levanta e trôpego deixa o quarto, com a esposa ainda imobilizada
pela brutalidade exposta pela crise conjugal. Lá fora, gatos rusgam-se.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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