APÓS A ÓPERA GIOCONDA
Horas
mais tarde, no leito, Herculano procura Páscoa, que o recebe com os nervos
estirados pelas afinidades com Gioconda. Latejam os embates perdidos do seu
querer, a esperança dissipada a cada derrota, a incapacidade em que foi arremessada
pelas negativas da vida, até ser seduzida pelo abismo escuro da solidão. No
reverso desse passado e do desejo da cantora, Páscoa quer ir para a luz, quer
viver. Agarra-se ao marido. Comprime o sexo penetrado e move o ventre no ir e
vir do corpo sobre o seu.
Herculano
sente a mudança em curso: a voracidade no lugar da placidez costumeira, até
então moldada à sua vontade, mas não consegue dizer não. Está inebriado com as
articulações realizadas nos intervalos da ópera para impor limites. Na luxúria
que o acolhe, quer regozijar o destino auspicioso que pressente a caminho.
Solta as rédeas do controle. Como sobre o dorso do seu cavalo, adere ao corpo
insurreto e se entrega à andadura escolhida pelo animal. Embebe-se do calor da
carne tenra, cheirosa e vibrante sob a sua. Delicia-se com o prazer que esse
sexo extrai do seu. Penetra-o por completo e move-se mais rápido, mais rápido,
cada vez mais, até que, durante o espasmo que também encapela o corpo sob o
seu, geme e goza o prazer final. Aniquilado, permanece um instante imóvel.
Depois desliza para fora desse corpo e tomba sobre o espaço vago e fresco do
lençol. Dorme de vez.
Páscoa
também se move. Vira-se para o outro lado, tomada pelos vestígios do orgasmo. O
coração bate forte, o corpo se expande e se contrai levado pela respiração
profunda. As pálpebras ora se abrem para a escuridão do quarto, ora se fecham e
retornam para onde tudo é sempre noite. O prazer há tanto esperado finalmente
se consumou na densa intimidade desse relacionamento. No impulso de deixar o
abismo da sua solidão, tomou para si a condução da posse do marido. Sentiu o
gozo nascer em seu sexo, ascender em seu corpo, alcançar um instante de
plenitude e depois lhe escapar, fugidio, no suspiro profundo que exalou.
O
vivido a surpreendeu. Expôs a força do seu corpo para quebrar barreiras e se
deleitar com o outro, como se nunca antes tivesse havido entre eles qualquer
rusga, falta ou descaso. Tanto e de tal modo que, durante o gozo, enquanto
mágoas e diferenças revoavam como fantasmas desalojados pelo prazer, Páscoa abraçou Herculano ainda mais forte e o desejou sôfrega e profundamente. Tamanha
intensidade a confunde, se seu coração palpita de atração por outro, bem como a intriga a atitude do marido, que jamais permitiu a ambos a liberdade
de se aventurarem no prazer aceso pelo encontro dos corpos. O que se passa com Herculano? O que se passa
comigo? O que quero afinal? Na calada da noite, Páscoa espreita o rumo que
sua vida pode tomar.
Se
há o desejo redescoberto por Herculano, se há a chance da intimidade ansiada
florescer sob a força do prazer recém-desfrutado, há também o desejo que freme
por Grego. Se um é a segurança conhecida da paixão silenciada, o outro é a
luminosidade da paixão virgem que nutre a de ser dona de si. Mas, quando pensa
em Grego, inquieta-se com os riscos dessa sobrepaixão: de se tornar
estigmatizada por um arroubo, causar mais tristezas e não dar conta de
atravessar as dificuldades da jornada da emancipação. E, quando pensa no
marido, na estabilidade do seu afeto, inquieta-se com a sua aridez ameaçadora.
Não quer mais perder-se de si mesma como a única forma de viver ao lado dele e
muito menos sucumbir à dor, a ponto de preferir a morte, como há poucos meses.
Medos e ambivalências povoam o leito; geram tensão e a fazem contrair-se,
recuar.
Tudo
seria tão mais fácil se Herculano fosse sempre como foi hoje, pensa. Vira-se
para o marido. Quer tocá-lo mais uma vez. Como pode dormir? Como pode querer tão pouco
do estar juntos? A solidão, companheira antiga, incita a raiva. Tem
vontade de acordar o marido para a urgência do novo. Despertá-lo de vez do seu
alheamento. Viver uma entrega, livre, imensa, que desnude a natureza de ambos.
Quer abrasá-lo com os pedidos do seu corpo; fazê-lo gemer de prazer, gemer ela
própria, para purgar a mágoa pisada no peito, zerar o passado e liberar o amor
que sobrevive para nele se proteger dos seus desejos desconexos, temerários.
Mas nada faz. Acha que o saldo de um temporal é sempre o silêncio da paisagem.
Vira-se para o outro lado. Adormece.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
Nenhum comentário:
Postar um comentário