domingo, 14 de dezembro de 2014

Capítulo Trinta

APÓS A ÓPERA GIOCONDA


Horas mais tarde, no leito, Herculano procura Páscoa, que o recebe com os nervos estirados pelas afinidades com Gioconda. Latejam os embates perdidos do seu querer, a esperança dissipada a cada derrota, a incapacidade em que foi arremessada pelas negativas da vida, até ser seduzida pelo abismo escuro da solidão. No reverso desse passado e do desejo da cantora, Páscoa quer ir para a luz, quer viver. Agarra-se ao marido. Comprime o sexo penetrado e move o ventre no ir e vir do corpo sobre o seu.
Herculano sente a mudança em curso: a voracidade no lugar da placidez costumeira, até então moldada à sua vontade, mas não consegue dizer não. Está inebriado com as articulações realizadas nos intervalos da ópera para impor limites. Na luxúria que o acolhe, quer regozijar o destino auspicioso que pressente a caminho. Solta as rédeas do controle. Como sobre o dorso do seu cavalo, adere ao corpo insurreto e se entrega à andadura escolhida pelo animal. Embebe-se do calor da carne tenra, cheirosa e vibrante sob a sua. Delicia-se com o prazer que esse sexo extrai do seu. Penetra-o por completo e move-se mais rápido, mais rápido, cada vez mais, até que, durante o espasmo que também encapela o corpo sob o seu, geme e goza o prazer final. Aniquilado, permanece um instante imóvel. Depois desliza para fora desse corpo e tomba sobre o espaço vago e fresco do lençol. Dorme de vez.
Páscoa também se move. Vira-se para o outro lado, tomada pelos vestígios do orgasmo. O coração bate forte, o corpo se expande e se contrai levado pela respiração profunda. As pálpebras ora se abrem para a escuridão do quarto, ora se fecham e retornam para onde tudo é sempre noite. O prazer há tanto esperado finalmente se consumou na densa intimidade desse relacionamento. No impulso de deixar o abismo da sua solidão, tomou para si a condução da posse do marido. Sentiu o gozo nascer em seu sexo, ascender em seu corpo, alcançar um instante de plenitude e depois lhe escapar, fugidio, no suspiro profundo que exalou.
O vivido a surpreendeu. Expôs a força do seu corpo para quebrar barreiras e se deleitar com o outro, como se nunca antes tivesse havido entre eles qualquer rusga, falta ou descaso. Tanto e de tal modo que, durante o gozo, enquanto mágoas e diferenças revoavam como fantasmas desalojados pelo prazer, Páscoa abraçou Herculano ainda mais forte e o desejou sôfrega e profundamente. Tamanha intensidade a confunde, se seu coração palpita de atração por outro, bem como a intriga a atitude do marido, que jamais permitiu a ambos a liberdade de se aventurarem no prazer aceso pelo encontro dos corpos. O que se passa com Herculano? O que se passa comigo? O que quero afinal? Na calada da noite, Páscoa espreita o rumo que sua vida pode tomar.
Se há o desejo redescoberto por Herculano, se há a chance da intimidade ansiada florescer sob a força do prazer recém-desfrutado, há também o desejo que freme por Grego. Se um é a segurança conhecida da paixão silenciada, o outro é a luminosidade da paixão virgem que nutre a de ser dona de si. Mas, quando pensa em Grego, inquieta-se com os riscos dessa sobrepaixão: de se tornar estigmatizada por um arroubo, causar mais tristezas e não dar conta de atravessar as dificuldades da jornada da emancipação. E, quando pensa no marido, na estabilidade do seu afeto, inquieta-se com a sua aridez ameaçadora. Não quer mais perder-se de si mesma como a única forma de viver ao lado dele e muito menos sucumbir à dor, a ponto de preferir a morte, como há poucos meses. Medos e ambivalências povoam o leito; geram tensão e a fazem contrair-se, recuar.
Tudo seria tão mais fácil se Herculano fosse sempre como foi hoje, pensa. Vira-se para o marido. Quer tocá-lo mais uma vez. Como pode dormir? Como pode querer tão pouco do estar juntos? A solidão, companheira antiga, incita a raiva. Tem vontade de acordar o marido para a urgência do novo. Despertá-lo de vez do seu alheamento. Viver uma entrega, livre, imensa, que desnude a natureza de ambos. Quer abrasá-lo com os pedidos do seu corpo; fazê-lo gemer de prazer, gemer ela própria, para purgar a mágoa pisada no peito, zerar o passado e liberar o amor que sobrevive para nele se proteger dos seus desejos desconexos, temerários. Mas nada faz. Acha que o saldo de um temporal é sempre o silêncio da paisagem. Vira-se para o outro lado. Adormece.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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