terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo Vinte e Dois

A CAMINHADA


Mais uma manhã. Nova tarde. O sol se abranda.
Páscoa e Sofia deixam o sobrado e seguem pelo caminho que bordeja a praia e o comprido rochedo que adentra o mar. Palmilham esse braço de pedra, onde, lá, bem adiante, reina, solitária e branca, a igrejinha das portas, que só se abrem aos domingos.  
O sobrado é parcimonioso nos assuntos de Deus. Quitéria é quem comparece à missa, comunga, toma a benção em nome de todos e depois, quando pode, confirma suas preces no culto do seu povo, com Tião. Os dois zelam pelo lado religioso da família. Há muito Herculano substituiu a religião pela ciência, Páscoa, nem isso.
Quitéria bem que tentou trazê-la para a fé. No aniversário de seis anos, entregou-lhe o véu e o terço da finada mãe, esperando que tomasse gosto pelas orações.  A criança não só se recusou a pegar os pertences como chorou copiosamente. A ama entendeu que aquela não fora uma boa ideia, pois despertara tristezas irreparáveis. Adiou a nova tentativa de entregar os santos bens e continuou a rezar no lugar da sua aluna de devoção. Pensou que teria sucesso quando percebeu, na então garota de sete anos, uma ouvinte atenta à sua versão, meio católica, meio iorubana, da criação do Universo onde tudo começava no Pai, sem a Mãe, a partir de muita explosão, determinação e magia.
Percebera corretamente. A narrativa pareceu a Páscoa com a sua própria história, deu sentido à sua orfandade e aguçou sua curiosidade. Porém, findos os feitos de Oludumare, que também poderia chamar de Deus; terminados os relatos dos amores e ódios, das vitórias e derrotas dos santos e orixás e iniciada a explanação sobre as culpas, expiações e o pecado de nascença dos mortais, aí a garota paralisou-se. Suspeitou que seu pecado original fosse maior do que o normal! Só podia ser essa a explicação para ter sido privada do aconchego materno desde o nascimento. A razão do desígnio de uma vida trocada por uma morte. Possuía um enorme pecado, invencível até pelas águas do batismo. Caso contrário não sofreria também a falta de carinho do pai, ausente quase todo o tempo. Sob a onipotência da fantasia infantil, despertou para a singularidade da sua natureza e se fechou em copas. Nem para a ama confidenciou a dolorosa descoberta.
Também não quis ir mais à Igreja. Quitéria ralhou e usou sua autoridade. Levada pelo braço, a garota acompanhou diversas missas de olhos fechados. Se antes se assustava com a agonia da via sacra, exposta nos quadros da parede, agora se culpava pelo calvário de Cristo. Se um medo impreciso a tomava quando via a pintura da expulsão de Adão e Eva do Paraíso, depois da descoberta, isso virou um pavor real. Temia expor-se ao poder da serpente pintada naquele quadro, cair em tentação e fazer com que o anjo de espada de fogo, que também estava lá na tela, ordenasse seu pai a expulsá-la do sobrado, como Deus o mandara expulsar Adão e Eva, porque comeram a maça proibida, atentados pela cobra. Tudo fez para ser uma menina obediente, comportada, e se manter longe daqueles tormentos enquanto esperava o pai, que chegava e logo partia para outra viagem. Tempos difíceis.
A igrejinha aproxima-se. Ali Páscoa foi batizada e fez a primeira comunhão, para alívio de Quitéria. A ama acreditava que o corpo e o sangue de Cristo operariam milagres na menina que crescia com uma quietude resistente e insondável. Explicou-lhe a bênção magnânima de receber a hóstia consagrada: -- será o alimento de tua alma e te protegerá de todos os males e de todas as tentações pela vida afora.
A perspectiva de proteção estimulou Páscoa a enfrentar o seu pavor; retornou para a igreja por conta própria e, com devoção, tomou a hóstia. Esperou os maravilhosos efeitos, sem saber o que o destino lhe reservava, com relação a esse ato sagrado.
A primeira comunhão havia sido exigida pela madre superiora de um internato para recebê-la na instituição. O pai aceitou. Queria a filha na escola, para aprender a ler, escrever e fazer contas, falar francês e inglês e desenvolver habilidades domésticas e de comando da casa. Adquirir bons modos e ser bem-vista também eram pontos importantes para ele, assim como relacionar-se com outras meninas de famílias abastadas, que tivessem irmãos para favorecer um bom partido no futuro.
A tristeza e a frustração invadiram Páscoa quando soube dos planos paternos. Entendeu que a primeira comunhão também não funcionara. Afinal, que pai se apartaria da filha se ela não estivesse marcada para sempre pelo pecado original?
Na véspera da partida para a escola, a menina acordou com uma febre incomum. O médico que a examinou nada achou que explicasse a doença. Prescreveu descanso, canja e foi embora.
O pai estranhou aquele mal súbito e uma lembrança umedeceu seus modos e miolos áridos. Rondou ao redor da cama, depois pela sala, com as ideias a girar a suspeita de que a filha estivesse a sofrer a mesma dor que ele sentira quando foi desgarrado do lar. Na tentativa de acreditar que estava certo, que cumpria sua missão de pai, repetiu para si mesmo a sua ladainha decantada há muito no ouvido de Páscoa: se fosse um menino, ah, se fosse!... Poria a filha na garupa do cavalo e sairia com ela por esse Brasil afora, para ensinar a arte de comerciar. Ensinaria a ver na falta o muito que se pode fazer, a ligar quem tem com quem precisa, a jogar na retranca, com calma, para negociar sem pressa de ganhar, da mesma forma que o tio lhe ensinara a fazer, em terra e no mar. Mas Páscoa era menina. De natureza diferente, com outras necessidades e obrigações. Não podia dar a si próprio, nem a ela, o luxo de tamanha extravagância.
A filha aproximou-se em meio às reflexões do pai, que, surpreendido, perguntou:
-- Está melhor?
-- Não sei.
-- Venha cá. O que sente?
-- Um aperto aqui – e a mãozinha enrugou a pala da camisola sobre o peito.
-- Logo passará.
Páscoa olhou-o por baixo dos cílios. Toda a sua dor e dúvida penetraram os olhos do pai, que a tomou pela cintura – e a garota se viu alçada pelo voo da felicidade e depois pousar no colo daquela autoridade que admirava e de quem ansiava por libertar-se dos seus limites de menina. Acomodada no trono esplêndido, escutou as palavras mais doces de sua vida.
-- Filha minha, escute. Um dia, quando for moça feita, vamos viajar.
A promessa do pai abrandou-lhe a angústia e lhe deu força para atravessar com galhardia a grande e pesada porta do internato. O encontro com outras meninas também lhe fez bem. Ajudou-a desmistificar a causa do seu mal. Se a maioria possuía mãe e pai e estava lá, haveria outra razão para o afastamento da casa – não a do tamanho do pecado original de cada uma ou o fracasso do batismo e da primeira comunhão.
-- Deveras que há, declararam em coro as colegas mais velhas chamadas para dar seu parecer. -- Estamos aqui para nos tornarmos mulheres de bem. Isso é para quem pode! Os argumentos a convenceram.
Mãe e filha alcançam a igrejinha. No entanto, Páscoa não caminha levada por motivações religiosas. Suas dificuldades com a fé surgiram novamente quando tinha treze anos. A causa foi um pronunciamento da madre instrutora de religião.
-- Cada mulher é uma Eva, traz a marca do fruto proibido. O potencial para a deserção da divina lei.
-- Como assim? Jesus Cristo não morreu na cruz para salvar a nós todos, homens e mulheres? O sacrifício dele então foi em vão?
-- Não blasfeme, repreendeu a madre com fúria no olhar e indignação na voz. --Aprenda com calma e total submissão, como falou o apóstolo Paulo.
Durante a recriminação da madre, Páscoa sentiu uma sombra quente nascer em seu corpo e abrasar-lhe o rosto, enquanto o coração batia forte. Envergonhada consigo, olhos e pés grudados no chão, constatou, mais uma vez, o perigo que era. Errara sem querer! A raiva de carregar o maldito legado de Eva e a percepção do sacrifício inútil do salvador pressionaram o peito, e o pensamento baforou o inabordável. Como esquecer o perigo que se é? Como conviver com esse perigo?
O entrevero rendeu horas diante de um espelho à procura da marca do mal: o próprio potencial para a deserção da divina lei. Rendeu ainda páginas e páginas escritas: oro e vigio para não cair em tentação. Rendeu também a decisão de rezar tudo sem pensar. Aprender tudo sem nada perguntar. Repetir tudo certo e da primeira vez, para ser deixada em paz na biblioteca, com os parcos livros de história e com o globo colorido, de base de madeira e régua de prata, que lhe inspirava a rota da viagem que um dia faria com o pai. Nesses momentos, esquecia o próprio mal. Deleitava-se com leituras e divagações. Alcançava a plenitude com as viagens de Marco Polo, que lhe contavam sobre regiões distantes, paisagens exuberantes, costumes diferentes, aventuras perigosas que podiam ser enfrentadas e vencidas. Lia e relia explorações e valentias, descobertas e conquistas, que situava no globo para saber de onde partia e aonde chegava tanta liberdade e coragem. Lá longe, muito longe do seu mundo, das fronteiras que a cercavam. Regiões que poderia alcançar se fosse levada pelas mãos do pai. Territórios que poderia penetrar, apoiada na autoridade e no destemor paterno.
Entre rotas traçadas, páginas viradas, desejos anelados, luz e sombra, a vida fluía, enquanto a população do internato se renovava a cada ano, com as entradas e saídas das alunas. O carinho e as notícias continuavam a chegar com Quitéria e Tião. Páscoa reconfortava-se com a visita deles, que aplacava a dor da ausência do pai.
Por essa época, o poder de outra lógica entrou em ação. Se Deus abandonou seu filho na cruz, por que meu pai não pode me abandonar? Desencantada, mergulhou na deserção divina. Abandonou Deus e os seus de vez. Deixou de voltar para o sobrado nas férias. Era sofrido ser exposta à matriz de suas dores e de seus sonhos; depois era mais custoso reaprender a se sujeitar aos preceitos e às normas rígidas do internato.
A igrejinha é deixada para trás, marco no percurso inevitável que Páscoa tem que ultrapassar rumo aonde quer chegar. Caminha assim decidida, com a filha e com os olhos em seu objetivo. Poucas vezes caminhou desse jeito. Poucas vezes também lhe perguntaram o que queria.
Dezoito anos feitos, continuava no internato, sem nada mais para aprender. Um dia seu pai a surpreendeu com uma visita inesperada e com uma notícia transmitida, após uma conversa reservada com a madre superiora.
-- Voltas para casa, filha minha, para se casar. 
A intuição de quem seria o marido raiou com tanta força em Páscoa que dissipou o medo de que aquela notícia selasse seu destino com alguém que jamais escolheria para ser seu marido. A confirmação veio em seguida.
-- É um jovem militar. Bacharel. Não um tarimbeiro como esses que tem por aí, que só estudaram coisas de guerra. Chama-se Herculano Dias. Parece que já o viu aqui.
Decerto que Páscoa já havia visto o futuro marido nas visitas de domingo. Estava sempre lá visitando a irmã, noviça da congregação. Nesses momentos, admirava-o a distância. Reconhecia-se olhada e se deixava olhar. Por pouco tempo, porque sempre era afastada pela madre bedel.
-- O que fazes aí? Já para o quarto. Moça direita não fica a espreitar nada nem ninguém.
Páscoa guardava a emoção do encontro e esperava o próximo. Enamoraram-se nesse mútuo e mudo observar.
-- Quer se casar com esse jovem? – Perguntou o pai.
-- Quero.
Páscoa jamais foi tão feliz como nesses dias. Ia se casar com aquele jovem bonito e reservado, dono de um olhar e um porte que emanavam força e a atraíam. Não reconhecia nada igual nos outros jovens que rondavam o internato. Confiou nessa força – desejou-a para si. Para ir em frente com a sua vida sem precisar retornar para o sobrado nem permanecer indefinidamente no internato. Para construir o aconchego não vivido e desfrutar, de um modo diferente, a viagem imaginada com o pai; iria agora abraçada ao moço, à sua coragem, na garupa do cavalo que via chegar e partir com ele. Devaneou.
Há de se ter chão para sonhar, pensou o pai perante essa felicidade, que adensava seu único receio com a união: a estabilidade financeira do casal. Não via com bons olhos o desinteresse do futuro genro pelo comércio, nem os parcos proventos que ganhava como bacharel militar. Contudo, era um jovem íntegro, saudável e trabalhador, que chegara até ali por mérito próprio. Melhor esse marido do que nenhum, concluiu, pensando na idade que já pesava na filha. Cuidou então de resolver sua preocupação. Mandou construir o casarão em Botafogo e foi generoso no dote.
Casamento realizado, missão cumprida, o pai viajou. A notícia de um rebento a caminho não demorou a chegar. Desejou por carta que a criança fosse um menino. Ensinarei ao meu neto tudo que aprendi, para que possa começar a vida léguas à frente de vantagem. Este será o melhor patrimônio que deixarei, em valor superior a qualquer outro bem, respondeu, para a filha e para o genro.
Páscoa ficou preocupada se seria capaz de atender o pai, de gerar um destino diferente do seu. Herculano sentiu os brios atingidos pela intromissão do sogro na sua futura autoridade paterna. Possuía também restrições ao Seu Mourão. Achava-o presunçoso, acima de qualquer ordem. A desforra ocorreu meses depois quando lhe escreveu que era avô de uma menina.  O sogro voltou, abençoou a neta, fez negócios e partiu, com votos de novo rebento e dessa vez um varão. Anos depois, morreu inesperadamente em Manaus, para dor de uns e pesar de outros.
O fim do rochedo é alcançado, alvo da caminhada de Páscoa. Quis contemplar o mar desse local. Desanuviar com a sua imponência o desassossego que lhe chega como ondas nesta tarde quente de verão. De mãos dadas com a filha, abeira-se do ponto onde o rochedo escamado mergulha no mar profundo, que se mostra mais volumoso, poderoso. Lá longe, levanta-se a amplitude arqueada do céu. É azul sobre azul, em ar úmido e melado. Fascínio. Apreensão.
Uma onda invade a escarpa e as duas recuam. Sobre os mariscos incrustados nas ranhuras da pedra, espumas brancas borbulham despedidas agonizantes entre as que ficam e as que retornam com as águas para o mar.
Sofia se põe atrás da mãe e a abraça pela cintura. Páscoa envolve os braços da filha com os seus e fecha os olhos. Quer sentir o medo que tremula em seu desassossego e anterior à exposição ao mar. Um medo quase imemorial. Sabe que não possui raiz firme que a suporte do tremor de suas terras. Nem lançou âncora ao turbulento mar de suas emoções, se é que é possível tal feito. Muito menos possui um cordão que a ligue ao céu da redenção. Vertigem do existir. Ainda assim, o pêndulo de gente quer prosseguir. Se há o medo, há também a coragem revelada nas águas do mar. Impulsionada pela força descoberta, apanhou a concha deixada por Grego e atravessou a fronteira para viver o desejo. A coragem crescerá. Acredita.
Como de olhos fechados, com o corpo exposto à tamanha imensidão, Grego se torna um prazer bem vivido, uma dádiva que o acaso lhe trouxe e que, também por obra do acaso, partiu. A despeito dos limites, conseguiu desfrutar do que durou. Compactuou consigo as regras. Trouxe Sofia e Quitéria para o seu lado. Foi até onde deu conta de ir. Por que as emoções flagelam e tornam tudo mais difícil? Prendem-se no que foi perdido e desprezam o que foi conquistado? A coragem é o grande tesouro que descobriu ao viver seu destino. Tão nova! Merece ser cuidada, protegida. Inhangá! A vida não pede licença nem autorização. Traz e leva, empresta e toma de volta, para desespero do desejo. Já se crucificou pelas suas falhas, culpas, incapacidades. Já se martirizou pela sua impotência diante da vida. Por que sua natureza ainda a maltrata assim? Que suas emoções sejam sacrificadas neste rochedo, levadas e dissolvidas pelas águas do mar. No propósito de si, quer se livrar da dor do que não pode ser. Nutrida pela memória dos breves dias iluminados, abraçada à concha da sua coragem, seguirá. Aprenderá a equilibrar-se em meio à vertigem do existir, a se entender com a sua solidão, a conviver com uma realidade de sonhos esquivos, a viver a vida possível.
Abre os olhos. As cores do horizonte já são outras. O coral se sobrepõe ao azul. Vira o rosto para a vila de Ipanema, onde o sol começa a se pôr. E a beleza da paisagem opera a magia: coroa entendimentos, releva temores e insufla esperança e segurança no observador para prosseguir sozinho. Páscoa orgulha-se de si, de ter se permitido viver o prazer. Reacomoda-se sobre o rochedo com Sofia diante de si. 
-- Veja que lindo, filha, o pôr-do-sol.
Mas o que Sofia realmente vê é a si mesma, enlaçada no porto dessas águas agora acolhedoras, de onde mira esse mundão belo e não menos assustador.
-- Não tá com medo de ficar aqui?
-- Estou, mas também sinto coragem como você, quando entrou no mar.
Sofia se desmancha em amor-próprio, vira-se e abraça fortemente a mãe.
Bela como um farol sobre o oceano, Páscoa se deixa ficar ali, bem próxima dos estrondos brancos do mar, com os pés plantados sobre o rochedo, o ventre aquecido pela filha e os olhos no horizonte, onde Vênus certamente brilhará.
Cá no sobrado, Herculano chega mais cedo, tenso com os assuntos da oposição ao governo. Ninguém o recebe. Ninguém está na casa. No quintal, enxerga os agregados nos fundos da plantação, mas não vê a filha e a mulher com eles. Cruza de volta o sobrado e sai. Na praia, altivo e teso, mira o costão negro de Inhangá. Onde estão? Vira-se para a curva da praia e as avista lá na ponta do rochedo. O que fazem? Por que Quitéria não está com elas? Que desatenção de Tião. Voltamos amanhã para Botafogo.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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