DURANTE A ÓPERA GIOCONDA
Deslumbrante,
Páscoa desce do coche apoiada pela mão de Herculano. Um tecido vaporoso
contorna sinuosamente os ombros que expõem a alva pele. Branco contrasta com o
azul profundo do vestido, como a crina da onda sobre o mar. Um pequeno enfeite
reluz nos negros cabelos.
De
braço dado com o marido, cruza o saguão do Theatro Lyrico e absorve por inteiro
a magia cintilante que se desprende do ambiente. Herculano desfila a mulher
garbosamente, envergado em sua elegante e impecável farda de gala. Não menos
requintadas são as outras presenças à espera da abertura da sala de
espetáculos.
O
salão resplandece em frivolidades. Entre acenos, apertos de mãos trocados,
Páscoa é introduzida ao mundo de Herculano. Às vezes a parada é rápida,
acompanhada apenas de um comentário sobre a grande ópera. Em outros momentos, a
reciprocidade do encontro permite mais – e aí se infringe o bom-tom com
críticas ao calendário das obras do prefeito, em plena temporada artística.
Palavras ditas, licenças pedidas, a cadência da exposição social flui para um
novo contato.
O
burburinho das vozes, o farfalhar dos vestidos, a metáfora dos rostos, o perigo
sondado atrás de cada coluna mesclam apreensão e excitação em Páscoa. Tomada
por tanto, ainda está fascinada com esse charmoso Herculano que, movido pelos
próprios interesses, flana com ela pelo saguão. Finalmente as portas se abrem e
a fina flor da fidalga república move-se em direção aos seus lugares.
Do
camarote, Páscoa contempla o Lyrico de um ângulo contrário ao
apresentado por Grego. Os olhos passeiam pelo mar de gente na plateia; visitam
o fosso da orquestra, onde os músicos aguardam; percorrem os camarotes, onde
modelos e cores se expõem, e param no programa La Gioconda sobre o colo, enquanto o coração palpita na suposição
de que, por detrás da imponente cortina vermelha, Grego está a procurar por
ela.
Um
rapaz bem trajado surge no palco. Com uma lança de madeira, bate uma vez no
chão e sai. A plateia acomoda-se às poltronas, o zunzum abranda e algumas luzes
se apagam. Páscoa toca de leve o braço do marido.
--
Obrigada. É tudo muito lindo.
Satisfeito,
Herculano deseja essa delicadeza para sempre na mulher.
Novamente
o rapaz retoma a cena. Bate duas vezes a lança no chão e permanece no palco. O
maestro atravessa a cortina e é recebido com aplausos calorosos. Agradece e
desce ao encontro da orquestra. O rapaz dá o terceiro sinal e sai de cena.
Binóculos são levados aos olhos; as luzes se apagam; nada se ouve, nem uma
tosse sequer. Em seguida, vozes vibrantes explodem e o palco se descortina
colorido e iluminado.
Marinheiros,
gentios e mascarados cantam. Algumas palavras alcançam Páscoa: “festa, pane,
la reppublica... L'allegria disarma... Chi canta é libero... Chi ride é
forte... Pane e festa... Viva il Dodge e la Reppublica”. A imaginação
penetra as cenas que celebram a alegria e saúdam o conselheiro da república da
Veneza.
O
primeiro ato passa célere. Acessas as luzes, o público aplaude e Herculano diz
à esposa que retornará em breve. Sozinha e extasiada, Páscoa pensa em procurar
Grego. Não. É loucura demais. Fica e devora o programa num fôlego só.
Confirma o que os olhos viram e o coração sentiu. Um homem sinistro deseja
Gioconda, a sofrida cantora popular, que é apaixonada por um nobre bom, que ama
e é amado pela virtuosa esposa do conselheiro. Para se livrar do rival e
possuir a cantora, o pérfido urde uma trama que a tornará refém dos seus
caprichos. Herculano retorna – e é recebido por olhos ansiosos de antecipado
constrangimento.
Começa
o segundo ato. Céu e Mar! Páscoa nem se mexe na cadeira. Teme que a espera
sôfrega e apaixonada cantada pelo nobre bom evoque no marido lembranças do
banho de mar; que Herculano desconfie de que as ondas de Copacabana tenham
trocado carícias com o horizonte, como aquelas que o cantor diz ver da proa do
navio enquanto espera a mulher casada. Páscoa teme algo mais: atender a um chamado igual ao feito pelo tenor: -- Vinde, senhora, para meus
beijos! Vinde para o beijo da vida e do amor!
Para
além da canção, há ainda o efeito das cordas do piano, dos violinos e
violoncelos, ora suaves e alegres, ora chorosos e profundos, às vezes
solitários, às vezes encorpados pelos sopros das madeiras e pela força dos
metais. Os acordes tangem a alma de Páscoa, esticam-na ao máximo e depois a
abandonam, deixando-a desnorteada; ou então a beliscam, só para alertá-la da
vaga quente dos sons que se sucederão e a engolfarão numa ode ao prazer.
No
palco, a trama evolui com a abnegada Gioconda ajudando o nobre bom a se
encontrar com a amada casada. As pálpebras de Herculano se abrem e se fecham de
quando em quando. Não cochila, antes, divaga inspirado pela melodia. Para ele a
música, a boa música, reina absoluta no panteão das belas artes. Prefere,
inclusive, os instrumentos às vozes. Não pela voz em si, mas pelo teor do
enredo cantado, que julga ser quase sempre centrado em impulsos primários que
não enobrecem a grandeza humana. Como a vilania e o adultério que se desenrolam
no palco, e traduzidos em detalhes no resumo da história, que ignorou tão logo
começou a ler. Mas a sua atenção não está ali. Nem no mar que, para ele, é um
assunto resolvido. Está nas articulações políticas que ensaia durante a
apresentação, para regê-las no próximo intervalo.
De
novo as luzes se acendem e aplausos esfuziantes se erguem da plateia. Herculano
desperta do seu estado meditativo. Um ar
confiante colore seu rosto, e ele se prepara para deixar o camarote. Sufocada
pela paixão incendiária do protagonista, que pôs fogo no navio, num momento de
desespero, Páscoa não se contém. Quer sair, tomar ar, e diz que o acompanhará.
O marido prefere que ela fique. Mas Páscoa insiste: -- preciso ir ao toalete. Bom, assim é diferente.
Tão
logo o casal sai para o longo corredor que separa os camarotes das saletas de
espera, Herculano encontra um grupo de militares e autoriza a esposa a seguir
sozinha pelo ambiente cheio e ruidoso. Páscoa entra no toalete. Está lotado.
Não tem o que fazer ali. Retira-se. Não vê mais Herculano. Anda em sentido
oposto ao camarote e sente alguém tocar seu braço. Sem susto ou dúvida,
prossegue levada pelo toque eletrizante. Sobe os primeiros degraus de uma
escada, vira-se e vê Grego com um sorriso de vitória que ilumina ainda mais
seus olhos rasgados de desejo.
Durante
um instante, contemplam-se, indiferente aos riscos. Mas são despertados por um
casal que sobe a escada. Não podem permanecer ali, nem o intervalo espera. Grego
sabe que Páscoa precisa ir e ela se pergunta como negar a palpitação que sente.
--
Venha, vou levá-la de volta.
Sobem
a escada e retornam pelo corredor do último andar do Theatro. Lado a lado,
andam sorvendo o deleite que desfrutam passo-a-passo. No meio do corredor,
descem os degraus de outra escada e param. Grego lhe entrega uma pequena caixa.
--
Feliz aniversário, Vida.
A
alegria se expande em Páscoa e é confrontada com a prudência.
--
Vá, é melhor.
Trocam
um último olhar e se separam.
Herculano
chega atrasado ao camarote e encontra a esposa em seu lugar. Sussurra
desculpas. Não teve como aguardá-la. Reuni-me
com colegas... Ao lado, alguém chia. Ele se empertiga e a atenção converge
para o palco, onde o conselheiro traído descobre o adultério da esposa e obriga
a traidora a tomar um veneno. Gioconda salva a rival. Troca os frascos e a
outra só toma um remédio que a faz dormir.
Termina
o terceiro ato e o ritual do intervalo recomeça. Herculano deixa Páscoa
sozinha. Afetada pelo incontrolável jogo de forças que urde o destino de todos,
tal como exibido no palco, refugia-se no seu segredo. Abre o presente de Grego.
Sobre o fundo de veludo vermelho da pequena caixa brilha uma diminuta lira. Um
broche. A visão cria um encantamento desorientado: como ter harmonia se não sou dona de mim?
Alguns
minutos mais e o desfecho da ópera acontece. Gioconda ajuda o amado a fugir com
a mulher casada, que ela escondia, mas se recusa a se entregar ao homem
sinistro, conforme combinara, caso ele escoltasse o nobre bom até o
esconderijo. Despista o pérfido e, sozinha, canta suas dores e o seu único bem:
o suicídio – a voz derradeira do seu destino. Prefere a morte à inóspita vida.
Apunhala o peito. Agonizante, cai ao chão e morre. Aplausos efusivos eclodem.
--
Bravo! Bravíssimo! Magistral!
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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