domingo, 14 de dezembro de 2014

Capítulo Vinte e Nove

DURANTE A ÓPERA GIOCONDA


Deslumbrante, Páscoa desce do coche apoiada pela mão de Herculano. Um tecido vaporoso contorna sinuosamente os ombros que expõem a alva pele. Branco contrasta com o azul profundo do vestido, como a crina da onda sobre o mar. Um pequeno enfeite reluz nos negros cabelos.
De braço dado com o marido, cruza o saguão do Theatro Lyrico e absorve por inteiro a magia cintilante que se desprende do ambiente. Herculano desfila a mulher garbosamente, envergado em sua elegante e impecável farda de gala. Não menos requintadas são as outras presenças à espera da abertura da sala de espetáculos.
O salão resplandece em frivolidades. Entre acenos, apertos de mãos trocados, Páscoa é introduzida ao mundo de Herculano. Às vezes a parada é rápida, acompanhada apenas de um comentário sobre a grande ópera. Em outros momentos, a reciprocidade do encontro permite mais – e aí se infringe o bom-tom com críticas ao calendário das obras do prefeito, em plena temporada artística. Palavras ditas, licenças pedidas, a cadência da exposição social flui para um novo contato.
O burburinho das vozes, o farfalhar dos vestidos, a metáfora dos rostos, o perigo sondado atrás de cada coluna mesclam apreensão e excitação em Páscoa. Tomada por tanto, ainda está fascinada com esse charmoso Herculano que, movido pelos próprios interesses, flana com ela pelo saguão. Finalmente as portas se abrem e a fina flor da fidalga república move-se em direção aos seus lugares.
Do camarote, Páscoa contempla o Lyrico de um ângulo contrário ao apresentado por Grego. Os olhos passeiam pelo mar de gente na plateia; visitam o fosso da orquestra, onde os músicos aguardam; percorrem os camarotes, onde modelos e cores se expõem, e param no programa La Gioconda sobre o colo, enquanto o coração palpita na suposição de que, por detrás da imponente cortina vermelha, Grego está a procurar por ela.
Um rapaz bem trajado surge no palco. Com uma lança de madeira, bate uma vez no chão e sai. A plateia acomoda-se às poltronas, o zunzum abranda e algumas luzes se apagam. Páscoa toca de leve o braço do marido.
-- Obrigada. É tudo muito lindo.
Satisfeito, Herculano deseja essa delicadeza para sempre na mulher.
Novamente o rapaz retoma a cena. Bate duas vezes a lança no chão e permanece no palco. O maestro atravessa a cortina e é recebido com aplausos calorosos. Agradece e desce ao encontro da orquestra. O rapaz dá o terceiro sinal e sai de cena. Binóculos são levados aos olhos; as luzes se apagam; nada se ouve, nem uma tosse sequer. Em seguida, vozes vibrantes explodem e o palco se descortina colorido e iluminado.
Marinheiros, gentios e mascarados cantam. Algumas palavras alcançam Páscoa: “festa, pane, la reppublica... L'allegria disarma... Chi canta é libero... Chi ride é forte... Pane e festa... Viva il Dodge e la Reppublica”. A imaginação penetra as cenas que celebram a alegria e saúdam o conselheiro da república da Veneza.
O primeiro ato passa célere. Acessas as luzes, o público aplaude e Herculano diz à esposa que retornará em breve. Sozinha e extasiada, Páscoa pensa em procurar Grego. Não. É loucura demais. Fica e devora o programa num fôlego só. Confirma o que os olhos viram e o coração sentiu. Um homem sinistro deseja Gioconda, a sofrida cantora popular, que é apaixonada por um nobre bom, que ama e é amado pela virtuosa esposa do conselheiro. Para se livrar do rival e possuir a cantora, o pérfido urde uma trama que a tornará refém dos seus caprichos. Herculano retorna – e é recebido por olhos ansiosos de antecipado constrangimento. 
Começa o segundo ato. Céu e Mar! Páscoa nem se mexe na cadeira. Teme que a espera sôfrega e apaixonada cantada pelo nobre bom evoque no marido lembranças do banho de mar; que Herculano desconfie de que as ondas de Copacabana tenham trocado carícias com o horizonte, como aquelas que o cantor diz ver da proa do navio enquanto espera a mulher casada. Páscoa teme algo mais: atender a um chamado igual ao feito pelo tenor: -- Vinde, senhora, para meus beijos! Vinde para o beijo da vida e do amor!
Para além da canção, há ainda o efeito das cordas do piano, dos violinos e violoncelos, ora suaves e alegres, ora chorosos e profundos, às vezes solitários, às vezes encorpados pelos sopros das madeiras e pela força dos metais. Os acordes tangem a alma de Páscoa, esticam-na ao máximo e depois a abandonam, deixando-a desnorteada; ou então a beliscam, só para alertá-la da vaga quente dos sons que se sucederão e a engolfarão numa ode ao prazer.
No palco, a trama evolui com a abnegada Gioconda ajudando o nobre bom a se encontrar com a amada casada. As pálpebras de Herculano se abrem e se fecham de quando em quando. Não cochila, antes, divaga inspirado pela melodia. Para ele a música, a boa música, reina absoluta no panteão das belas artes. Prefere, inclusive, os instrumentos às vozes. Não pela voz em si, mas pelo teor do enredo cantado, que julga ser quase sempre centrado em impulsos primários que não enobrecem a grandeza humana. Como a vilania e o adultério que se desenrolam no palco, e traduzidos em detalhes no resumo da história, que ignorou tão logo começou a ler. Mas a sua atenção não está ali. Nem no mar que, para ele, é um assunto resolvido. Está nas articulações políticas que ensaia durante a apresentação, para regê-las no próximo intervalo.
De novo as luzes se acendem e aplausos esfuziantes se erguem da plateia. Herculano desperta do seu estado meditativo.  Um ar confiante colore seu rosto, e ele se prepara para deixar o camarote. Sufocada pela paixão incendiária do protagonista, que pôs fogo no navio, num momento de desespero, Páscoa não se contém. Quer sair, tomar ar, e diz que o acompanhará. O marido prefere que ela fique. Mas Páscoa insiste: -- preciso ir ao toalete. Bom, assim é diferente.
Tão logo o casal sai para o longo corredor que separa os camarotes das saletas de espera, Herculano encontra um grupo de militares e autoriza a esposa a seguir sozinha pelo ambiente cheio e ruidoso. Páscoa entra no toalete. Está lotado. Não tem o que fazer ali. Retira-se. Não vê mais Herculano. Anda em sentido oposto ao camarote e sente alguém tocar seu braço. Sem susto ou dúvida, prossegue levada pelo toque eletrizante. Sobe os primeiros degraus de uma escada, vira-se e vê Grego com um sorriso de vitória que ilumina ainda mais seus olhos rasgados de desejo.
Durante um instante, contemplam-se, indiferente aos riscos. Mas são despertados por um casal que sobe a escada. Não podem permanecer ali, nem o intervalo espera. Grego sabe que Páscoa precisa ir e ela se pergunta como negar a palpitação que sente.
-- Venha, vou levá-la de volta.
Sobem a escada e retornam pelo corredor do último andar do Theatro. Lado a lado, andam sorvendo o deleite que desfrutam passo-a-passo. No meio do corredor, descem os degraus de outra escada e param. Grego lhe entrega uma pequena caixa.
-- Feliz aniversário, Vida.
A alegria se expande em Páscoa e é confrontada com a prudência.
-- Vá, é melhor.
Trocam um último olhar e se separam.
Herculano chega atrasado ao camarote e encontra a esposa em seu lugar. Sussurra desculpas. Não teve como aguardá-la. Reuni-me com colegas... Ao lado, alguém chia. Ele se empertiga e a atenção converge para o palco, onde o conselheiro traído descobre o adultério da esposa e obriga a traidora a tomar um veneno. Gioconda salva a rival. Troca os frascos e a outra só toma um remédio que a faz dormir.
Termina o terceiro ato e o ritual do intervalo recomeça. Herculano deixa Páscoa sozinha. Afetada pelo incontrolável jogo de forças que urde o destino de todos, tal como exibido no palco, refugia-se no seu segredo. Abre o presente de Grego. Sobre o fundo de veludo vermelho da pequena caixa brilha uma diminuta lira. Um broche. A visão cria um encantamento desorientado: como ter harmonia se não sou dona de mim?
Alguns minutos mais e o desfecho da ópera acontece. Gioconda ajuda o amado a fugir com a mulher casada, que ela escondia, mas se recusa a se entregar ao homem sinistro, conforme combinara, caso ele escoltasse o nobre bom até o esconderijo. Despista o pérfido e, sozinha, canta suas dores e o seu único bem: o suicídio – a voz derradeira do seu destino. Prefere a morte à inóspita vida. Apunhala o peito. Agonizante, cai ao chão e morre. Aplausos efusivos eclodem.
-- Bravo! Bravíssimo! Magistral!

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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