A MULHER QUE LÊ
Herculano sai para o trabalho, Tião leva Sofia para a escola e a arrumação do
dia dá sinais de se iniciar. Com o romance à mão, Páscoa se isola no
caramanchão para não ser interrompida. Abre a obra e encontra de novo o bilhete
de Grego. O Jardim Botânico já não lhe parece mais um local apropriado para o
encontro de uma mulher casada com um homem solteiro. Que seja! Lá deve haver algum
lugar protegido de olhares intrusos. Desloca o bilhete para outra
página e retoma a travessia pelo desejo de Bovary.
Abandonada por
Rodolphe, Emma abandona-se novamente. Páscoa, por sua vez, recusa-se a penetrar
na escuridão do luto das ilusões. Seus olhos sobrevoam as páginas seguintes e
só pousam no texto quando Madame reencontra-se com Léon. Desse ponto em diante,
o curso da leitura se realiza palavra por palavra, acompanhado da expectativa
de que Bovary se separe do marido e viva livre e plenamente o seu amor.
Páscoa mais parece uma
escultura – A mulher que lê – e que alguém, de quando em vez, muda-a de posição,
para não deixá-la ser abrasada pelo movimento do sol. Porém, o sombreado
andante do caramanchão não consegue protegê-la da luz de Emma, que ofusca sua
visão acerca das razões deste astro querer sempre mais. Angustia-se com o que
prenuncia nas suas ilimitadas aspirações de prazer e nos seus insaciáveis
apetites de luxo. Sofre com o que lhe bate à porta: a execução judicial das
promissórias não quitadas. Desesperada, a devedora pede socorro a Léon, que diz
não ter como ajudá-la. Sugere então que ele roube a quantia do cartório onde
trabalha. Está fora de si, conclui
Páscoa, aflita.
Léon abandona a amante,
assustado com a sua falta de limites. Em busca de novo socorro, Emma penetra o
palacete do rico tabelião da cidade. No suntuoso espaço, constata que aquela
sim era a sala que gostaria de ter.
Páscoa tem certeza: enlouqueceu.
Do contrário não teria cabeça para pensar em luxo. Vira a página e
depara-se com um asqueroso tabelião, que insinua sua oferta de ajuda, com
afagos repulsivos nos braços de Bovary, que evidencia o nojo e a indignação do
pudor ultrajado: -- o senhor aproveita-se impunemente da minha aflição! Eu sou
para lastimar, não para vender! Parte, sem rumo, enquanto Páscoa é freada pelas
próprias palavras: Não. Tem de voltar, se entregar a ele.
Vexada por propor o
prazer da carne em troca do dinheiro necessitado, defende-se: O
que pode fazer? Procurar a justiça? Não tem como! Nem pode arruinar a si
própria, nem a filha e o marido. Mulher alguma merece tamanha derrocada.
Apoia-se em novas
perspectivas para se justificar: Não teve drama de consciência quando
arriscou os bens da família. Por que ter agora quando tudo está por um fio? Se
o tabelião fosse sedutor como Rodolphe ou amoroso como León, teria se entregue
a ele na suntuosa sala desejada e resolveria o problema. Mas como era
repugnante, preferiu a catástrofe a macular seus ideais de perfeição.
Discorda de novo de
Flaubert e muda de ideia no instante seguinte: sim, Bovary se excita na dor.
Pouco importa se é dor do prazer ou prazer da dor, contanto que seja de acordo
com a cartilha dos seus desejos.
Protesta: que
liberdade é essa, se Emma está presa à sua natureza, ao cárcere das sensações,
se é incapaz de atravessar seus próprios obstáculos?
Remói-se em dúvidas: O livre-arbítrio é uma
ilusão? Somos escravos das nossas inclinações? Refém das nossas disposições? É
esta a moral da história?
Enraivecida, Páscoa
quer que o autor encontre uma saída diferente para Bovary. Que a faça valer-se
da sua vontade férrea, para resolver a enrascada em que se meteu e sair do
outro lado de seus enganos, nas possibilidades desconhecidas que ela própria
procura saber quais são. Caso contrário, a história terminará em derrota para a
mulher que ousou desejar. Será a vitória das convenções. A coroação dos ditames
da natureza, de quem um indivíduo tem de temer e se conter.
Brava, desassossegada,
deixa o caramanchão sem ler o final do romance. Volta para a sala, para o
bordado, para as linhas tracejadas do motivo predeterminado que borda, no espaço
delimitado pelo bastidor. Prende a revolta, os questionamentos, as incertezas,
no ponto cheio das pétalas verdes ali demarcadas.
Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e
TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos
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