sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Capítulo Trinta e Sete

A MULHER QUE LÊ


Herculano sai para o trabalho, Tião leva Sofia para a escola e a arrumação do dia dá sinais de se iniciar. Com o romance à mão, Páscoa se isola no caramanchão para não ser interrompida. Abre a obra e encontra de novo o bilhete de Grego. O Jardim Botânico já não lhe parece mais um local apropriado para o encontro de uma mulher casada com um homem solteiro. Que seja! Lá deve haver algum lugar protegido de olhares intrusos. Desloca o bilhete para outra página e retoma a travessia pelo desejo de Bovary.
Abandonada por Rodolphe, Emma abandona-se novamente. Páscoa, por sua vez, recusa-se a penetrar na escuridão do luto das ilusões. Seus olhos sobrevoam as páginas seguintes e só pousam no texto quando Madame reencontra-se com Léon. Desse ponto em diante, o curso da leitura se realiza palavra por palavra, acompanhado da expectativa de que Bovary se separe do marido e viva livre e plenamente o seu amor.
Páscoa mais parece uma escultura – A mulher que lê – e que alguém, de quando em vez, muda-a de posição, para não deixá-la ser abrasada pelo movimento do sol. Porém, o sombreado andante do caramanchão não consegue protegê-la da luz de Emma, que ofusca sua visão acerca das razões deste astro querer sempre mais. Angustia-se com o que prenuncia nas suas ilimitadas aspirações de prazer e nos seus insaciáveis apetites de luxo. Sofre com o que lhe bate à porta: a execução judicial das promissórias não quitadas. Desesperada, a devedora pede socorro a Léon, que diz não ter como ajudá-la. Sugere então que ele roube a quantia do cartório onde trabalha. Está fora de si, conclui Páscoa, aflita.
Léon abandona a amante, assustado com a sua falta de limites. Em busca de novo socorro, Emma penetra o palacete do rico tabelião da cidade. No suntuoso espaço, constata que aquela sim era a sala que gostaria de ter.
Páscoa tem certeza: enlouqueceu. Do contrário não teria cabeça para pensar em luxo. Vira a página e depara-se com um asqueroso tabelião, que insinua sua oferta de ajuda, com afagos repulsivos nos braços de Bovary, que evidencia o nojo e a indignação do pudor ultrajado: -- o senhor aproveita-se impunemente da minha aflição! Eu sou para lastimar, não para vender! Parte, sem rumo, enquanto Páscoa é freada pelas próprias palavras: Não. Tem de voltar, se entregar a ele.
Vexada por propor o prazer da carne em troca do dinheiro necessitado, defende-se: O que pode fazer? Procurar a justiça? Não tem como! Nem pode arruinar a si própria, nem a filha e o marido. Mulher alguma merece tamanha derrocada.
Apoia-se em novas perspectivas para se justificar: Não teve drama de consciência quando arriscou os bens da família. Por que ter agora quando tudo está por um fio? Se o tabelião fosse sedutor como Rodolphe ou amoroso como León, teria se entregue a ele na suntuosa sala desejada e resolveria o problema. Mas como era repugnante, preferiu a catástrofe a macular seus ideais de perfeição.
Discorda de novo de Flaubert e muda de ideia no instante seguinte: sim, Bovary se excita na dor. Pouco importa se é dor do prazer ou prazer da dor, contanto que seja de acordo com a cartilha dos seus desejos.
Protesta: que liberdade é essa, se Emma está presa à sua natureza, ao cárcere das sensações, se é incapaz de atravessar seus próprios obstáculos?
Remói-se em dúvidas: O livre-arbítrio é uma ilusão? Somos escravos das nossas inclinações? Refém das nossas disposições? É esta a moral da história?
Enraivecida, Páscoa quer que o autor encontre uma saída diferente para Bovary. Que a faça valer-se da sua vontade férrea, para resolver a enrascada em que se meteu e sair do outro lado de seus enganos, nas possibilidades desconhecidas que ela própria procura saber quais são. Caso contrário, a história terminará em derrota para a mulher que ousou desejar. Será a vitória das convenções. A coroação dos ditames da natureza, de quem um indivíduo tem de temer e se conter.
Brava, desassossegada, deixa o caramanchão sem ler o final do romance. Volta para a sala, para o bordado, para as linhas tracejadas do motivo predeterminado que borda, no espaço delimitado pelo bastidor. Prende a revolta, os questionamentos, as incertezas, no ponto cheio das pétalas verdes ali demarcadas.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


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