sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Capítulo Quarenta e Um

AINDA VOU ME SEPARAR DE VOCÊ


Julho começa. Sofia, de férias escolares, movimenta os dias da mãe, mas também rouba sua privacidade. As caminhadas com a concha são suspensas, as leituras reduzidas e as divagações, ancoradas pelo bordado, passam a ser entrecortadas pelas conversas da filha. Grego continua sem dar notícias; as saudades intermitentes pressionam e a inquietação com o futuro não desgruda, como uma linha que, agarrada à barra da saia, é levada junto para onde se vai.
É noite. Sofia já se recolheu. Herculano está na biblioteca e Páscoa borda na sala, desassossegada com a sua imobilidade para pedir a separação. Num impulso, levanta-se e penetra a biblioteca. Encontra Herculano sentado à escrivaninha. Parece contemplar o quadro da República. Irrita-se com o foco daquele olhar e o marido com a interrupção.
-- O que houve?
-- Precisamos conversar, diz Páscoa com o coração sobressaltado.
-- Sobre o quê?
-- Sobre nós, esclarece e se senta na cadeira em frente.
-- O que temos a falar sobre nós, que desconheço?
-- É esta a vida que você quer?
-- Não vejo sentido na pergunta.
-- Tem sim: para saber o que vale a pena viver e decidir sobre o que não vale.
Herculano estranha a colocação. Achava a mulher tão cordata nos últimos tempos.
-- Pode ir direto ao assunto? O que realmente quer dizer?
Páscoa sente a oportunidade para pedir a separação. Mas a insegurança surge e embola as palavras em sua boca. Variações são ditas.
-- O que estamos fazendo com as nossas vidas? Não quer ser feliz?
-- Francamente, Páscoa. Não me venha com metafísica a esta hora da noite. Tenho mais o que fazer.
-- Penso se não existe outra possibilidade para nós.
-- A possibilidade que temos é esta. E se houver outra, eu a identificarei. Agora, me dê licença. Preciso me concentrar e trabalhar, diz e abre um caderno sobre a mesa.
Páscoa põe a mão sobre as folhas abertas. Herculano enerva-se.
-- Por favor, sem encenações.
-- Não vê que está cada vez mais distante, fechado em seu mundo? Receio não ser a mulher certa para você.
O marido ruboriza. Toma a declaração como uma cobrança. Sabe-se em falta com o dever conjugal. Desde o descontrole na cama, após a ópera, tem procurado menos pela esposa. Teme que o desejo sexual destemperado corrompa a virtude marital. Mas não cabe à esposa tal questionamento.
-- Vamos pôr um fim nesta conversa.
-- Não. Precisamos conversar. Impossível continuar neste faz de conta.
Pressionado, Herculano se levanta e deixa à escrivaninha.
-- Aonde vai?
Sem responder, o marido deixa a biblioteca.
-- Espere, não aja assim.
Quando Páscoa alcança o vestíbulo, a porta da rua já se fecha. O silêncio imposto à força faz o da noite parecer maior. A vontade é ir atrás, se atracar com Herculano, com aquela insensível e odiosa autonomia que o leva a sair da cena conforme lhe convém. Controla-se e faz um juramento: Você vai ver, ainda vou me separar de você.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário