sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Capítulo Trinta e Dois

DO QUE UM HOMEM DEVE SABER INICIAR UMA MULHER.


É sábado. As mulheres saem com destino à costureira e, em seguida, para as compras. Herculano fica em casa, entretido com seus escritos na biblioteca. Desde a ópera, Páscoa não viu Grego, nem recebeu recados dele. O silêncio reforça inseguranças com relação aos riscos dessa paixão e ainda causa decepção. Páscoa cogita que o broche tenha sido mais que um presente de aniversário: um mimo de despedida. Cansou de esperar por mim, de se iludir com o impossível. Mas daí a ser descortês, isso não! Tinha que ter proposto um encontro para pôr um ponto final nessa história, com a mesma franqueza que me contou dos seus amores passados. Sente vontade de procurá-lo para obter clareza do que se passa. Porém, o orgulho a detém.
Parte da programação cumprida, as três chegam à Rua Gonçalves Dias. Livros usados se esparramam sobre um tecido, que cobre quase toda a calçada. Param para olhar, enquanto o livreiro tenta realizar uma venda.
-- Ó, rapaz, por que não fica com a História de Carlos Magno? Está como novo. Vendo por três tostões e ainda leva de graça esta encadernação de versos. Olha que faz muita donzela suspirar!
O cliente não se convence e parte. O livreiro volta-se para elas.
-- Em que posso ajudar as senhoras e a senhorinha? Tenho romances, versos, trovas e modinhas, de segunda mão e com preço bom.
-- Obrigada. Estamos apenas olhando.
-- Fiquem à vontade. Encontrarão os assuntos mais variados: saúde da mulher, conselhos matrimoniais e oração para qualquer tipo de precisão.
Páscoa agradece de novo e continua a passar os olhos pelos livros. Uma encadernação lhe chama a atenção.  Aponta o dedo na direção.
-- Posso ver aquele livro?
O livreiro surpreende-se. Confirma se é mesmo aquele o livro pedido. Obtida a confirmação, embaraça-se na explicação.
-- Pois então, madame, como direi? Veja... Esse romance é assim... Digamos pouco recomendado para uma senhora de família, conclui de sopetão.
O interesse de ver a obra se mantém e o homem meneia a cabeça, preocupado. 
-- Por favor, hein! Não quero complicações com o esposo.
Tudo bem explicado, não tem remédio senão entregar o romance.
As letras douradas na capa bordô parecem mais belas: Madame Bovary, Gustave Flaubert. Páscoa abre uma página qualquer e os olhos pousam a esmo numa frase.
Antes de se casar, julgara sentir amor; mas, como a ventura resultante desse amor não aparecia, com certeza se enganara, pensava Emma. E procurava saber qual era, afinal, o significado certo, nesta vida, das palavras felicidade, paixão e embriaguez, que nos livros pareciam tão belas.
A leitura calou fundo em Páscoa, que intuiu as razões da resistência do livreiro. Dá as costas para a filha e para ama, e vira rapidamente a página.
Um homem não devia primar em múltiplas atividades, saber iniciar uma mulher no frenesi da paixão, nos requintes da vida, enfim, em todos os mistérios? Mas aquele não ensinava. Nada sabia. Nada desejava. Supunha-a feliz; e ela não podia lhe perdoar aquela tranquilidade tão bem assente, aquela gravidade serena, nem a própria felicidade que ele lhe dava.
Tal qual Herculano, conclui Páscoa consigo mesma, sequiosa de ler mais. Dois passos à frente, devora outro trecho de mais uma página aberta ao acaso.
Bovary repetia para si: Tenho um amante! Um amante.
Os olhos assombrados se elevam e voltam rapidamente para o livro.
Ia, finalmente, possuir as alegrias do amor, a febre da felicidade de que já desesperara. Entrava em algo de maravilhoso onde tudo era paixão, êxtase, delírio; uma imensidão azulada a envolvia, os píncaros do sentimento cintilavam sob a sua imaginação, e a vida cotidiana aparecia-lhe longínqua, distante...
Preciso ler esse livro, exclama Páscoa em silêncio, fechando a obra e decidida a comprá-la. Aos borbotões, pensa no preço ouvido há pouco, na coragem para realizar a compra e faz a oferta numa abrasada indiferença.
-- Dou-lhe três tostões pelo romance.
-- Ah! Vale vinte, senhora.
-- Tanto assim? Está usado!
-- Porém, bem conservado! Publicação estrangeira e de capa dura.
De argumento em argumento, ofertas e contraofertas, o livreiro e a cliente chegam a um acordo: dez tostões.
Quitéria está surpresa com a desenvoltura de Páscoa: eta sangue forte, que nem o pai! Teria dado muito orgulho pra ele se fosse um menino...
Enquanto o pagamento acontece, a filha puxa a blusa da mãe. 
-- Sofia, por favor...
Páscoa para de falar diante do que vê.

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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