terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Capítulo Quinze

TANTOS MARES


Os passeios matinais ganham novo ritmo e cor, sem Herculano. As roupas tornam-se leves e o caminhar sobre as areias transforma-se em uma trilha serpenteada, sem riscado certo nem pressa, que adentra a praia um pouco mais a cada dia.
Quitéria acompanha de longe e de quando em vez. Na maior parte do tempo, limita-se a chegar ao portão, espichar o pescoço, conferir a ordem desordenada que patrocina e retornar para os serviços do dia. Outras vezes nem se dá a tanto trabalho. Resolve tudo da janela mesmo, quando Tião, encarregado também da vigia, pergunta sobre a sinhá e a menina.
-- Tão lá, ó! Que mal há?
-- É. Tá tudo certo. Vou pra roça.
A cada manhã, mais reservas, desconhecimentos e tristezas ficam pela praia. O mar os leva embora e deixa em seu lugar novas possibilidades e descobertas.
-- Veja, diz Sofia pinçando uma concha da areia molhada.
-- É linda, exclama Páscoa.
Levadas pela curiosidade, as mãos exploram o delicado achado e se tocam. Auxiliadas pelos olhares tímidos, oficializam a alegria que sentiram com aquele toque e a que sentem de estar juntas. Durante essa distração afetuosa, a arrebentação toma de assalto os pés. Em meio ao turbilhão da água e entre gritos febris, as mãos se entrelaçam, ajudando os corpos a se firmar e depois a correr para a segurança da areia seca. Lá, o susto evapora e as mãos se soltam para segurar a barriga de tanto que se ri e se lembra. Passada a algazarra, é hora de remediar o desalinho: torcem a barra da saia, retiram os sapatos e, com eles deixados na areia, seguem em nova estrepolia. Ora as mãos cortam o ar, ora apanham o chapéu, que teima em voar, e então suspendem as saias, que é para as pernas correrem melhor. Nunca essas mãos estiveram tão próximas e de comum acordo como ao longo desses instantes aventurosos.
Na sombra das pedras negras, entregam-se ao relaxamento. Sobre um degrau de areia, Páscoa e Sofia sentam-se, resfolegantes, coradas de energia e bem-estar. Porém na mãe algo mais palpita: a emoção de se saber tão próxima da fronteira natural com as terras além.  Um navio desponta no mar e Páscoa fala a primeira coisa que lhe vem à mente tentando se concentrar na filha.
-- Para onde ele vai?
-- Para o Congo, responde Sofia, sem pestanejar.
A julgar pelas histórias de Tião, o Congo é o lugar mais remoto que a sua imaginação infantil pode conceber.
Como eu, constata Páscoa, lembrando-se de que dera a mesma resposta ao pai, quando pequena. A semelhança perturba e o resgate chega.
-- Agora é a minha vez. Pra onde o navio vai?
-- Para o mundo sem fim, diz a mãe, com uma expressão de assombro humorado que torna o momento ainda mais fantástico para Sofia.
Enquanto pensa nessa eternidade geográfica, a menina roça os pés na areia. Páscoa a imita. Juntinhos, os pés das duas escavam e se cobrem, numa tola brincadeira. Sofia pergunta se esse não é o melhor passeio que fizeram. Páscoa diz que sim. A filha estende-se na areia e contempla o céu azul, em completa felicidade.
-- Deita também.
Páscoa hesita. Será adequado?
-- É bom, insiste a menina.
Vagarosamente, a mãe se deita. A sensação de prazer despertada pela terra firme e fresca percorre vértebra por vértebra da coluna e se irradia pelo corpo. A vida assim é tão leve. A prazerosa leveza suscita também reminiscências de brandura similar... E Sofia aponta para o céu.
-- Olha aquela nuvem.
-- Qual?
-- Aquela com cara de risada.
Novos risos, novas graças, um novo modo de ser e estar são experimentados. A garota se põe de pé.
-- Vamos subir nas pedras?  
O receio paralisa Páscoa. Não posso. O banhista... Pensamento e insegurança são desmobilizados pela travessura que se deslancha e a lança em direção à filha.
-- Cuidado.
-- É fácil, olha!
-- Espera, pede Páscoa, apoiando o pequeno corpo.
A menina sente o conforto do contato que a protege e a impulsiona para o estreito degrau de pedra. Vira-se e acha a mãe ainda mais bela. Estende as mãos – é a sua vez de apoiá-la. Entre suportes e dianteiras revezadas, as duas escalam as pedras, vibrando com a façanha. Param no alto, tomadas de prazer e com a visão das terras além.
     Num impulso, Sofia se enlaça à cintura de Páscoa e afunda a cabeça no seu ventre. Corpos saudosos de sempre se abraçam, entregues à ressonância de tantos mares. Lágrimas vêm ajudá-las a esvair dores e curar feridas, desencontros, ausências. Lavando faltas, culpas e medos nessas águas, Páscoa envolve Sofia com o amor que tanto temeu. Como o bem pode sobreviver ao mal? Deseja dar à filha o prazer do mar. 


Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos

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